Literatura em língua francesa,

A gênese do Goncourt

Diário dos irmãos Edmond e Jules evoca o ambiente cultural e social em que nasceu o mais importante prêmio literário francês

28jul2021

Entre 1850 e 1870, os irmãos Edmond e Jules de Goncourt registraram, na forma de diários, os bastidores do ambiente sociocultural da França. Ao todo, foram escritas 4.500 páginas. Parte foi publicada em 1872, mas a íntegra só veio a público nos anos 50, conforme determinado por Edmond em seu testamento. Um recorte que abarca os escritos de 1860 até 1896, quando Edmond morreu, sai agora pela editora Carambaia em uma edição numerada, limitada a mil exemplares. Em Diário: memórias da vida literária, fofocas do métier das letras e frivolidades aristocráticas dão um toque bem-humorado a uma narrativa que ilumina a compreensão do leitor contemporâneo acerca da gênese da Academia Goncourt e do prêmio concedido anualmente desde 1903, hoje a mais importante distinção literária para títulos em língua francesa.

O livro nasceu de um projeto de longa data do tradutor Jorge Bastos, que assina ainda a organização, as notas e a introdução. Bastos leu os diários pela primeira vez nos anos 80, quando tinha uma livraria e uma pequena editora no Rio de Janeiro, e comprou uma edição francesa em três volumes com a íntegra dos originais. “Achei engraçadíssimos e muito informativos. Como bom livreiro, a ideia para o corte final foi transformar aquilo tudo em um livro agradável para o público de hoje, com boa cultura média”, conta ele, que incluiu na edição um índice onomástico e, a cada início de capítulo, que corresponde ao ano em que os trechos foram escritos, contextualizações diversas, do pano de fundo histórico à identificação de livros, personagens e lugares mencionados. Há fatos como o lançamento de As flores do mal, de Baudelaire (1857), e a construção da Ópera de Paris (1861), além de curiosidades como a “moda” do haxixe entre intelectuais e artistas.

Aristocratas, os irmãos eram inseparáveis e compartilhavam não somente os interesses literários, mas até a eventual amante. Tinham uma vida social intensa, preenchida por recepções, banquetes e que tais, de onde vinha boa parte das fofocas. Em uma das inúmeras idas ao restaurante Magny, por exemplo, conheceram o escritor russo Ivan Turguêniev, “um encantador brutamontes, um meigo gigante de cabelos brancos”. Após uma visita à escritora George Sand, afirmam que ela tinha “aspecto autômato” e “um quê de madre superiora de instituição para mulheres arrependidas”. Com mais de cem menções, Flaubert é dos personagens mais recorrentes. Ora surge como vítima das línguas ferinas dos irmãos — “É um exemplo claro de inferioridade do homem em relação à obra” —, ora como exemplo de suas afinidades literárias. “Sentimo-nos como seus irmãos em termos de sensibilidade intelectual. […] Concordamos quanto ao fato de raras pessoas se interessarem pelo bem-feito literário, pelo ritmo de uma frase.”

Faits divers à parte, a leitura revela ao menos dois vetores que levaram à criação da Academia Goncourt. De um lado, os irmãos queriam perpetuar seus nomes e garantir uma sobrevida à própria produção literária. Escritores naturalistas fervorosos, assinam juntos, entre outras publicações, seis romances. De outro, havia um desejo de se contrapor à vetusta Academia Francesa: “É a única instituição a sobreviver no passado, cavando o próprio suicídio, fugindo de onde houver vida e juventude, coroando anônimos, livros que não são lidos, poetas desconhecidos — é a apologia da fruta seca”, escreveram. Criada pelo cardeal Richelieu no século 17, a Academia tinha como uma de suas atribuições a regulamentação da língua. Segundo Bastos, os Goncourt se opunham à sua “política de distinguir ‘notáveis’ e não prioritariamente escritores”. De fato, foi somente a partir de 1911 que a Academia Francesa passou a premiar escritores pelo conjunto de suas obras.

Havia outro motivo para que os Goncourt se contrapusessem à velha instituição, segundo Zadig Gama, doutorando em letras neolatinas na UFRJ, cujos estudos de mestrado e doutorado se debruçam sobre a vida e a produção literária dos Goncourt e sua repercussão no Brasil. No século 19, os principais gêneros reconhecidos pela Academia Francesa ainda eram escritos em verso, o que para os irmãos era um “posicionamento antiquado”. “O que está no cerne da criação da Academia Goncourt é uma tentativa de legitimação da prosa, que encontra no gênero romance seu estandarte”, diz Gama. “Mas não era qualquer romance. A concepção de romance dos Goncourt não passa pelo romance-folhetim, com tramas rocambolescas, tampouco pelos romances ditos ‘decentes’. A forma séria a que se referem no prefácio de Germinie Lacerteux [1865] é fruto de observações atentas, de pesquisa, de tomada de notas, em suma, os ‘documentos humanos’.”

Valor simbólico

A  Academia Goncourt só começou a tomar forma após a morte de Jules, em 1870. Edmond reformou a casa, inclusive o quarto do irmão, e em 1885 começou a reunir no Grenier (sótão) Goncourt os amigos das letras, sempre aos domingos. Um deles era o escritor Alphonse Daudet, a quem Edmond incumbiu, em seu testamento, a tarefa de criar a Academia. De início, não havia a ideia de oferecer um prêmio, mas uma bolsa equivalente ao “salário de um assessor de ministro”, segundo Bastos. “O objetivo era afastar escritores considerados talentosos de empregos em jornais e revistas e no mercado editorial, vistos como corruptores de talentos. O patrimônio que garantia [a bolsa] foi completamente tragado pela crise financeira posterior à Primeira Guerra. A partir daí se tornou um prêmio, e não em dinheiro exatamente, já que o valor é simbólico. Em geral, os livros premiados vendem milhares de exemplares.”

Quase 120 anos depois, o Prêmio Goncourt continua a ter um valor meramente simbólico, de dez euros. Os autores premiados costumam emoldurar o cheque. Para participar, o romance deve ter sido escrito originalmente em francês e ter uma comprovada distribuição em livrarias. Todo ano, as editoras têm até 1o de setembro para enviar um exemplar a cada um dos dez membros da Academia. O vencedor é anunciado no início de novembro, durante um encontro dos acadêmicos no restaurante Drouant, frequentado por Edmond até a sua morte. Finalista do Goncourt no ano passado com Les Funambules (Os equilibristas), o crítico literário do Le Figaro Mohammed Aïssaoui conta que a cada ano os editores têm o desafio de convencer os membros da Academia a ler seus livros — tarefa nada simples, visto que há cerca de quatrocentos novos títulos a cada rentrée littéraire, a temporada de lançamentos editoriais, posterior ao verão francês.

A imprensa também tem papel importante, segundo Aïssaoui: “Quanto mais se fala de um livro, mais os jurados se sentem no dever de lê-lo. E a Academia adora premiar um romance que já tenha caído nas graças do grande público”. Membro da Academia Goncourt desde 2012, o jornalista e escritor Pierre Assouline defende, no entanto, que a crítica não exerce influência alguma sobre a decisão. “É o inverso, e por uma boa razão: logo que divulgamos nossa primeira lista, ela dá o tom da rentrée e revela, às vezes, autores desconhecidos, como Joël Dicker [finalista em 2012]. Muitas livrarias organizam suas vitrines tendo em mente essa lista.”

Para Raphaëlle Leyris, crítica literária do Le Monde, a imprensa especializada permite aos membros da Academia descobrir livros que eventualmente tenham lhes escapado e faz também com que percebam qual o clima em torno de determinado título. “Mas os jurados gostam cada vez mais de contrariar os prognósticos. Quanto mais os jornalistas dizem que um livro tem boas chances no Goncourt, mais é provável que não tenha”, diz.

Fofocas do ‘métier’ das letras e frivolidades aristocráticas dão um toque bem-humorado ao ‘Diário’

Gigantes do mercado editorial francês, como Gallimard e Actes Sud, estão entre as editoras com mais autores premiados no Goncourt, mas Assouline garante que elas não têm influência sobre a Academia. “Isso já existiu, mas terminou desde que nosso regulamento interno nos proibiu de trabalhar para uma editora. É o preço de nossa independência. Livros publicados por pequenas casas, como Minuit, Le Tripode e Verdier, aparecem regularmente em nossas listas.” Leyris acredita que a regra, imposta há cerca de dez anos, “saneou o ambiente”, mas há um porém: “É óbvio que um jurado publicado por determinada editora pode acabar sendo mais sensível a ela”.

Estima-se que um livro vencedor do Goncourt venda, em média, 300 mil cópias após o anúncio. Segundo Aïssaoui, o prêmio garante “três a quatro anos de tranquilidade [financeira] para a editora, uma dezena de traduções e, frequentemente, uma adaptação audiovisual”. O vencedor do ano passado, L’Anomalie (A anomalia), de Hervé Le Tellier (romance que a Intrínseca lançará no início de 2022 no Brasil), tornou-se o terceiro livro mais vendido na história do Goncourt, atrás apenas de O gavião louco, de Jean Carrière, e O amante, de Marguerite Duras. Mais de 1 milhão de exemplares já foram comercializados e uma adaptação para a tv, na forma de série, está por vir. Para Le Tellier, o prêmio traz a certeza de que seus livros anteriores serão redescobertos. “E os próximos, quer eles agradem ou não aos leitores e críticos literários, não vão passar despercebidos”, diz.

A questão da diversidade, urgente em todo o mundo, também tem reverberado no Goncourt. Zadig Gama lembra que a revista Vie Heureuse criou o prêmio Femina, em 1904, por considerar misógina a láurea dos Goncourt. “A primeira premiação de uma mulher com um Goncourt aconteceu somente em 1944, quando Elsa Triolet foi a vencedora. Posteriormente vieram Simone de Beauvoir (1954) e Marguerite Duras (1984).” Para Leyris, trata-se, sobretudo, de um “eco da misoginia persistente no meio literário, de que os Goncourt também eram um exemplo”. “Na França existe a tendência de levar menos a sério os livros escritos por mulheres”, diz a crítica.

Na última década, apenas duas mulheres receberam o Goncourt, entre elas Leïla Slimani, pelo romance Canção de ninar, que no Brasil se tornou o título mais vendido do selo Tusquets, da Planeta. Porém, diferentemente da França, onde os editores correm para colocar uma cinta com o nome do prêmio logo que o vencedor é anunciado, no Brasil o impacto de premiações, mesmo locais, é baixo. “Já estávamos negociando o livro com a Gallimard e o prêmio acabou dando um empurrãozinho. Outras editoras também foram atrás e tivemos que fazer uma oferta mais alta pelos direitos”, conta Cassiano Elek Machado, diretor editorial da Planeta. “Ter o Goncourt acabou ajudando, mas não é algo automático, como na França, onde eles colocam na capa, e pronto: já vendeu. No Brasil, primeiro o título chama atenção da imprensa e a partir daí se consegue alavancar as vendas.” Por aqui, ocorre desde 2019 o Choix Goncourt, em que um júri de dez alunos de francês de universidades públicas brasileiras elege uma obra entre as quatro finalistas do Goncourt para ter a tradução para o português apoiada pela Embaixada da França no Brasil.

O sucesso de vendas de um livro premiado com o Goncourt não deixa de satisfazer ao menos um dos objetivos dos irmãos Edmond e Jules: dar apoio financeiro a escritores. Já o desejo de perpetuar sua própria produção literária na posteridade não foi exatamente cumprido. “Acho que nem dez exemplares de suas obras são vendidos a cada ano”, diz Hervé Le Tellier. “Mas o Diário permanece sendo um testemunho interessante da vida intelectual do fim do século 19, e eles legaram à França e à francofonia um prêmio que não para de ser contestado, criticado, detestado e que fabrica um rei a cada ano — e tem um papel incontestável de fazer da literatura um acontecimento cultural”.

Este texto foi realizado com o apoio da Embaixada da França no Brasil.

Quem escreveu esse texto

Eduardo Simões

Jornalista.