Literatura,

A arte como norte

Romance vencedor do Goncourt promove encontro humanista entre Ocidente e Oriente

26nov2018 | Edição #15 set.2018

Às 2h20, Franz Ritter, o insone e delirante narrador de Bússola, lamenta: “Se já eram cinco da manhã eu poderia me levantar, exausto como toda manhã, vencido pela noite; impossível escapar àquelas lembranças de Sarah, e me pergunto se é melhor enxotá-las ou me entregar totalmente ao desejo e à reminiscência”. Paralisado na cama, desorientado em relação ao passado e ao presente — o futuro é um retrato incerto na parede —, ele deseja um despertador em formato de mesquita, uma bússola na cabeceira ou uma rosa dos ventos na escrivaninha, como só oferecem os hotéis muçulmanos. 

Melhor ainda — prossegue — seria ter um daqueles “tapetes de oração com uma pequena bússola integrada à tecelagem, tapetes que na mesma hora a gente tinha vontade de pôr para voar”. Com bússola e rosa dos ventos, Ritter pergunta afinal: e olhar para onde? Um tapete voador para seguir rumo a Meca, Roma, Viena ou Teerã?

Os dilemas de Ritter, mesmo que à primeira vista não pareçam, são de todos, são nossos. Podemos diferir profundamente dele: não precisamos ser músicos, nem viver extasiados diante de uma francesa chamada Sarah, vertiginosa na razão e na ilusão. Podemos atravessar a noite em sonhos idílicos e sobreviver ao amanhecer sem angústias aparentes. Podemos desconhecer o árabe, o persa e até o francês em que o romance de Mathias Enard foi escrito. Podemos ignorar a Revolução de 1979 no Irã e o orientalismo de Edward Said ou Homi Bhabha. Ainda assim continuaremos humanos e o humanismo — esse princípio hoje tão negligenciado — infiltrará em nós, junto com vontades e medos, a percepção, consciente ou não, de que o espelho às vezes revela “uma folha de papel diáfano que a luz atravessa para nela desenhar outras imagens”, e de que “o ser está sempre nessa distância, em algum lugar entre um eu insondável e o outro nesse eu. Na sensação do tempo. No amor, que é a impossibilidade da fusão entre o eu e o outro. Na arte, a experiência da alteridade”. Je est un autre, eu é um outro, diz Rimbaud; “Eu está na noite”, completa Ritter, que vive na noite e no outro. No outro e na noite também vivemos nós, humanos.

O dilema da pertença e da compreensão alheia e de si é recorrente nos livros de Enard. Está no horizonte e até na mira do atirador de La perfection du tir (2003), na busca de explicação das relações afetivas que se corroem em Remonter l’Orénoque (2005), no monólogo do viajante que troca de identidade em Zone (2008), na aventura de Michelangelo em Istambul — reconstruída em seu único livro já traduzido no Brasil, em 2013: Falem de batalhas, de reis e de elefantes (2010) — ou por trás do lirismo cheio de ironia de Rue des Voleurs (2012), belíssimo romance de formação. Está em Bússola, premiado com o Goncourt em 2015, que chega ao Brasil na boa tradução de Rosa Freire d’Aguiar.

No livro, o ácido que derruba muros entre Ocidente e Oriente é a arte

Bússola é um livro amplo. Sua agulha aponta para o Oriente. Ele circula entre referências eruditas, visita Beethoven e Damasco, Badr Shakir Sayyab e Paris, Flaubert e Teerã, Reza Shadjarian e Schubert, Schopenhauer e Istambul, Omar Khayyam e Viena. Lida com terras e gentes que se supõem distantes e, em tantas ocasiões, preferiram se acreditar inimigas. Investiga a história e se entorpece com ela — tanto quanto o ópio, a paixão e o debate que inebriam Ritter e Sarah. 

A história que o romance desenha, porém, jamais é a “mestra da verdade” de Cícero: nada ensina ou determina, não julga, absolve ou condena, não privilegia ou descarta, não se impõe à razão e às vontades humanas. Constrói-se nas tragédias e façanhas que afetam a vida pública e privada — como destaca Milton Hatoum na quarta capa — e abre espaço para a hesitação, cria intervalos de dúvida, instiga a imaginação, combina estratos do tempo e experiências distintas. A história registra os encontros do Ocidente com o Oriente e percebe como ambos foram afetados pela presença do outro — aquele que volta e meia ameaça, fascina e, até quando o rejeitamos, se torna parte do que somos.

No livro, o ácido que derruba muros entre Ocidente e Oriente é a arte. No mundo de Ritter e de Sarah, a história se desenvolve no âmbito da fabulação e é atravessada pela música, pela literatura, pela arquitetura. Ao afirmar a centralidade da arte, Bússola reage aos dias que vivemos, rejeita a atual disposição de pôr a política e a economia acima de tudo e ao hábito perverso de reificá-las para compor rápidas, rígidas e equivocadas classificações de Estados, povos, crenças e costumes. 

Quando os diversos tempos e espaços se encontram, desaparecem as representações intolerantes do outro e desponta a complexidade do diálogo entre Oriente e Ocidente; é assim, por exemplo, que o narrador pode recorrer à entonação ora flaubertiana, ora proustiana para incorporar à sua voz o relato da paixão de Morgan e Azra no Irã da Revolução Islâmica. Ou, então, interpretar os relatos ocidentais de viagens ao Oriente a partir do universo onírico das Mil e umas noites

Bússola assume, dessa forma, perspectiva cosmopolita e desprovida de qualquer ânsia de hierarquizar culturas; Oriente e Ocidente atestam suas diferenças e reconhecem analogias possíveis: enfatizam quão falsa é a suposição de que um abismo separe um hemisfério do outro, de que a alteridade seja absoluta. Bússola articula história e literatura para lembrar que a arte é sempre porosa e permeável, que Ocidente e Oriente podem, sim, se tocar — como as mãos de Sarah e Ritter, quando se aproximam, uma da outra, sobre o couro sintético do banco de um táxi em Teerã, encontram-se para agarrar “o calor e a luz do mundo” e não se soltam “mesmo quando, horas depois, a aurora vermelha inflamou o monte Damavand para invadir meu quarto”.

O erotismo deslumbrante e elegante das páginas finais — erotismo de todos os sentidos, na realidade e no sonho, no hálito, na pele, no olhar e nos cochichos — é, aliás, mais um dos lugares possíveis de reunião entre Oriente e Ocidente, um lugar iluminado pelo reconhecimento de que é preciso “mudar de perspectiva”, “encontrar […] uma nova visão que incluísse o outro em si. Dos dois lados”. Encontrar o outro, a si mesmo, reconhecer a infalível conjugação. Notar que ainda podemos evocar algum humanismo e nos orientar “pelo sol tépido da esperança”.

Quem escreveu esse texto

Julio Pimentel Pinto

Professor de história da USP, é autor de A pista & a razão: uma história fragmentária da narrativa policial (Peixe-elétrico Ensaios).

Matéria publicada na edição impressa #15 set.2018 em setembro de 2018.