Literatura em língua francesa, Meu Baudelaire,

No meio do caminho tinha uma carniça

O tradutor Júlio Castañon Guimarães interpreta os males de Baudelaire

19maio2021 | Edição #45

Se As flores do mal é o único livro de poemas de Baudelaire, acontece de ser também um dos mais importantes e influentes na história da literatura. Nascido há 200 anos, o autor ainda produziu um amplo e variado conjunto de outros textos extremamente significativos — poemas em prosa, crítica de literatura, de artes plásticas e de música, memórias, textos jornalísticos e traduções.

Desde então, estão sempre em proliferação traduções de seus trabalhos, estudos sobre eles, citações, menções, leituras e assim por diante — o centro W. T. Bandy de estudos sobre Baudelaire e literatura francesa da Universidade Vanderbilt registra em sua documentação mais de 70 mil itens de algum modo referentes ao poeta. Em um outro plano, pode-se lembrar um episódio mais ou menos circunstancial: em uma reunião pública durante a campanha presidencial francesa de 2017, o candidato do movimento França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon, encerrou o encontro com a leitura de um poema de Baudelaire, “O albatroz”.

Ler seus poemas não implica obviamente uma atenção a todo o complexo em que se transformou sua produção e o estudo dela, mas implica pelo menos ter noção desse complexo. Se há imensas diferenças e discussões entre algumas abordagens canônicas, ainda subsistem diferenças até mesmo no tocante aos textos — a ordem em que estão ou devem estar dispostos, dúvidas sobre a efetiva inclusão ou não pelo próprio autor deste ou daquele outro texto, e ainda dúvidas quanto à própria elaboração, no sentido de opções por tal ou tal versão. Sabe-se que o poeta sempre escrevia o título do livro de poemas com maiúscula em “Mal”, o que pode constituir indicação de uma determinada instância ou ser apenas efeito de uma época em que as maiúsculas abundavam. De um modo ou de outro, porém, não há dúvida de que o título comporta diferentes âmbitos.

Pedras e carniças

Em um dos poemas do primeiro livro de Drummond, tinha uma pedra no meio do caminho. Umas oito décadas antes, em um poema de Baudelaire, “au détour d’un sentier” (“na curva de um caminho”), tinha uma carniça. Aqui “caminho” não é tanto alguma via metafórica, central na reflexão sobre a existência. Tem-se mesmo a sensação de um caminho qualquer, onde se topa com uma decomposição, até banal — e o poema como que se compraz em acentuar essa banalidade, essa decomposição, enfiando com força e sem dó o dedo na ferida.

O poema como que se compraz em acentuar a banalidade, a decomposição, enfiando com força e sem dó o dedo na ferida

É verdade que aqui e ali há umas irrupções quase de alento — o artista que de algum modo termina seu trabalho, alguém que guarda a lembrança de seus amores ainda que descompostos. É bom lembrar que o encontro com essa carniça não é de modo algum algo inusitado e apenas conveniente para um poema. André Guyaux, em um livro sobre Baudelaire e Paris, ressalta que o fato não era nada incomum na velha Paris, suja e insalubre, que ainda subsistia ao tempo do poeta. Naturalmente não é todo o Baudelaire que está aí. Mas é nesse convívio entre o abjeto e a elaboração das melhores disposições humanas que se desenha a amplitude de sua poesia.

O poema “O cisne” é grandiosamente exemplar desse aspecto. Da tragédia grega, do personagem de Andrômaca, justamente a primeira palavra do poema, segue-se pelas ruas de Paris, passando-se pela praça do novo Carrossel (em uma referência às transformações urbanísticas da cidade), e se chega a nada mais que uma água empoçada. A cidade muda, mas há a pobreza que permanece, a do trabalhador, a dos vencidos. O poema se desenvolve entre a dimensão mítica do sofrimento e sua realidade cotidiana, palpável, apreendida por um transeunte.

É no convívio entre o abjeto e a elaboração das melhores disposições humanas que se desenha a amplitude de sua poesia

Por meio da figura desse transeunte, alguém que perambula pela cidade, ou que por ela se desloca por alguma necessidade prática ou algum impulso íntimo, o poema chega aos trabalhadores que madrugam, à negra tísica, aos órfãos, aos presos, aos vencidos, sem se afastar dos sofrimentos de Andrômaca. O cenário muda, mas a melancolia não. O cenário que muda é justamente a Paris de quem por ela perambula — e é justamente nesse poema que está uma das definições mais célebres de Baudelaire, a de que a forma de uma cidade muda mais rápido que o coração dos homens (de onde provém o título, La forme d’une ville (A forma de uma cidade), do belo livro de Julien Gracq que parece ainda não ter merecido a atenção de nossos editores).

As andanças podem até ampliar-se em viagens para bem longe, que na verdade não se afastarão muito da questão. A mesma decomposição, em um plano ainda mais violento, pode ocorrer em uma dimensão alegórica. É o caso do enforcado visto na ilha de Citera. No poema “Uma viagem a Citera”, a ilha de Vênus, a ilha dos amores, a voz do poema como que escangalha o mito, e de tabela obras como os quadros de Watteau e suas festas galantes na ilha. O enforcado em decomposição, com as vísceras a escorrer pernas abaixo, bicado e devorado por aves e vermes, compõe a cena alegórica que “amortalha o coração” do viajante. E do que se vê, vem a sugestão de que pelo menos se deve ver corpo e alma sem asco.

Sua lírica é sobretudo, mais que expressão individual, um drama de que ele participa

De volta a Paris. E no poema “O crepúsculo da manhã” o amanhecer da cidade é apresentado como um velho trabalhador que sai de manhã bem cedo com suas ferramentas para trabalhar. Nas andanças a poesia vai recolhendo, como os trapeiros presentes em vários momentos da obra, as misérias humanas, o mal cotidiano de cada um. Sucedem-se cegos, velhos, doentes, prostitutas, jogadores, desamparados, miseráveis. Até o vinho, mesmo inebriante, o vinho que lança seu “canto só de luz e de fraternidade”, é antes o vinho dos assassinos, dos solitários. E também justamente dos trapeiros, os que veem as pessoas encurvadas sob o lixo, o vômito de Paris. A perambulação pela cidade inclui os velhos bairros, a periferia abandonada, em um cenário de casebres e sarjetas. Circula-se pelo mal, não apenas em uma dimensão moral, mas física.

Esse aspecto forte da poesia baudelairiana faz parte da compreensão possível de seu universo mais amplo. Esse perambular pela cidade e sua periferia acompanha seu trânsito entre a busca do novo e as reticências ante o novo. Por exemplo, se, de um lado, há reticências em relação à novidade da fotografia, o poeta, de outro lado, abraçou a música inovadora de Wagner. Em sua percepção de que as mudanças da cidade não mudam necessariamente a vida de todas as pessoas, está também o enfrentamento das contradições do tempo que foi sua matéria (para citar mais uma vez Drummond). Sua lírica é sobretudo, mais que expressão individual, um drama de que ele participa, conforme expôs em um ensaio inaugural Barbey d’Aurevilly, que bem compreendeu o livro de Baudelaire como o “drama anônimo de que ele é o ator universal”.

Quem escreveu esse texto

Júlio Castañon Guimarães

É autor de Se dispersão (7Letras) e Em viagem (Tipografia do Zé).

Matéria publicada na edição impressa #45 em abril de 2021.