Literatura,

Acalanto fatal

Obra de escritora franco-marroquina revela os desvãos obscuros dos casais modernos e suas babás perfeitas

21nov2018 | Edição #13 jul.2018

Quem escreve ou estuda literatura sabe que é praticamente impossível produzir um bom romance com a intenção de, com ele, transmitir uma mensagem. O resultado dessas tentativas é inevitavelmente panfletário, artificial e datado. Uma mensagem, por mais bem intencionada que seja, não pode ser a causa de um texto literário.

A conversa muda, entretanto, quando se pensa nesta ideia como consequência de um romance e não mais como sua origem. A própria palavra mensagem é complicada e mesmo inadequada, porque implica propósitos elevados e, de certa forma, morais. Melhor seria pensar em algo que se problematiza, uma intenção subjacente para que o leitor oriente o pensamento na direção de um problema, seja por intuição ou por esforço interpretativo. Mas tudo isso deve ser corolário da leitura envolvida e envolvente de um livro que resiste orgânica e autonomamente como narrativa.

Esse é o caso do romance Canção de ninar, da autora franco-marroquina Leïla Slimani. São tantas as minorias abordadas no livro, tantos problemas sociais urgentes e atuais, que o leitor pode pensar se tratar de um libelo ou uma convocação para a consciência e a ação. Mas essa hipótese não dura muito, pois Canção de ninar se sustenta firmemente em seus personagens, conflito, linguagem e, principalmente, em sua estratégia narrativa. 

Policial às avessas

Para começar (ou terminar, pois o romance começa pelo fim), Slimani inverte a função e a trajetória dos romances policiais. Já começamos a primeira página do livro sabendo quem matou quem: “O bebê está morto”. E, um pouco mais adiante: “Também foi preciso salvar a outra (a assassina). Ela não soube morrer. Ela só soube provocar a morte. Ela seccionou os dois pulsos e cravou a faca na garganta”. Não estamos mais interessados, portanto, em conhecer o assassino. Ficamos, como detetives algo inúteis, interessados em compreender suas causas, sabendo de antemão que isso quase nada mudará. Resta um desejo compassivo, mas também sádico e voyeurista, de descobrir os motivos que provocaram, na babá perfeita, o impulso de matar os dois bebês que ela, aparentemente, tanto amava.

A babá perfeita é Louise, o anjo de que Paul e Myriam necessitavam para cuidar de seus dois filhos pequenos, Mila e Adam. Depois de tê-los, Myriam, advogada promissora, deixa de trabalhar, mas vai ficando cada vez mais solitária e angustiada, sem saber nem querer cuidar o tempo todo dos filhos. Myriam recebe uma oferta de emprego irresistível e o casal decide-se por uma babá. 

Conscientes e burgueses, eles querem tudo da forma mais responsável. Depois de inúmeras entrevistas, decidem-se por Louise. Ela tem boas referências, experiência, é solteira, cozinha bem, cuida de tudo e adora as crianças. Elas também a adoram. Aos poucos, vai se estabelecendo uma relação de dependência doentia do casal em relação a ela e dela em relação às crianças. Além de simbiótica, contém, elementos de terror sutil. 

A vida íntima de Louise

O leitor vai conhecendo a intimidade da babá e percebe sua miséria material e os desvãos obscuros de sua vida: uma filha fugida, que a odeia; solidão e dívidas; casos amorosos desastrosos. E também as vidas das babás do parque, todas excessivamente responsáveis pelos filhos das patroas, que, por sua vez, tentam se realizar profissionalmente. São praticamente todas imigrantes, algumas ilegais, que encontraram um bico bem pago pelo qual devem se sentir agradecidas. 

Louise se sente diferente. Faz jantares maravilhosos para os amigos do casal, que, de tão fascinado (e igualmente dependente) leva a babá a uma viagem à Grécia. Sentem-se realizados com essa benfeitoria.

Aos poucos, à medida que Louise se dá conta de que seu emprego está em risco (Myriam fica sabendo de dívidas da babá), ela começa a pressionar o casal, subliminarmente, para que tenham outro bebê, salvação de sua precária estabilidade. O tempo presente, usado pelo narrador, faz com que cada lance se torne quase terrível, pela premência do instante e também porque já conhecemos o desfecho de tudo.

Em meio à trama, Slimani costura cenas de violência doméstica, machismo e preconceito de classe

Em meio à trama principal, Slimani costura cenas de violência doméstica, machismo, preconceito de classe — Myriam se sente inadequada junto às mães mais ricas, mas mantém distância da cafonice solitária de Louise. Em um trecho bem semelhante ao filme Que horas ela volta?, os donos de uma casa não querem que a filha de Louise entre na piscina. E o mais terrível, mesmo (ou principalmente) para uma patroa que se quer justa: a babá tem um corpo. “Louise tem nádegas”, é o que Paul percebe enquanto estão na praia. Ela sente dores, se maquia, quer caprichar nas roupas, teve um marido com quem sentia prazeres masoquistas.

Como é o corpo das crianças, das mulheres recém-paridas, dos casais que têm filhos, dos imigrantes e, principalmente, das empregadas que nos servem? Talvez seja nesse corpo misterioso e imperceptível que se ocultem enigmas capazes de levar a uma delicadeza ou um assassinato: “Nesse momento ela tem a convicção íntima, a convicção ardente e dolorosa de que sua felicidade pertence a eles. Que ela é deles e eles são dela”.

Quem escreveu esse texto

Noemi Jaffe

Escritora e crítica literária, é autora de Não está mais aqui quem falou (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #13 jul.2018 em junho de 2018.