Literatura israelense,
Linguagem fraturada, mundo dividido
Gershon Baskin mostra que não haverá paz no Oriente Médio sem a construção de uma cultura compartilhada entre israelenses e palestinos
01jul2021Qualquer um que percorra a região de Israel, Palestina e os Territórios Ocupados se perguntará: “Por que não a Paz?” — uma alusão invertida a “Por que a Guerra?”, correspondência histórica entre Freud e Einstein, em 1939. As barreiras de circulação, checagens e placas de advertência sobre acesso a cidades, travessias por zonas brancas, azuis ou vermelhas, criaram uma vida bífida e mutuamente invisível, exceto por explosões emergentes, vividas com surpresa e terror, como os bombardeios de 2021.
Quem estuda percepção de segurança social sabe que a exposição contínua a armas, tanques e câmeras de vigilância cria um sentimento indeterminado de perigo, que depois se transforma em naturalização, quando não em diplopia da violência — como se cada olho visse uma realidade diferente que só pode ser estabilizada se fecharmos, a cada vez, uma das perspectivas. Ativistas e lideranças institucionais dirão que “o outro lado” não é confiável em uma mesa de negociação. Após tantas traições de parte a parte, a palavra se desgastou e só poderia ser reposta com a passagem geracional ou uma redistribuição demográfica.
Gershon Baskin foi testemunha e porta-voz vivo da formação desse desencontro da palavra. Nascido nos Estados Unidos, formado na efervescência dos movimentos pelos direitos humanos, antirracistas e feministas dos anos 70, nos quais a luta contra a Guerra do Vietnã teve papel decisivo, Baskin fez aliah e tornou-se o dirigente máximo do Israel/Palestine Center for Research and Information (IPCRI), depois renomeado Iniciativas Regionais Criativas Israel-Palestina, um think-and-do-tank, talvez único em sua espécie, dedicado à construção da paz.
Nos anos 80, ele se tornou mediador secreto em negociações entre Israel e a Organização para Libertação da Palestina (OLP), e depois com o Hamas. Seu papel decisivo na libertação do soldado israeli Gilad Shalit (cinco anos preso em Gaza) mostrou como o discurso institucional-formal de paz é um semblante para práticas que vão desde pequenas corrupções e favorecimentos locais até as peculiaridades psíquicas do rei da Jordânia e a boa vontade dos oficiais de segurança. No fundo, a permanência de Benjamin Netanyahu no poder por mais de doze anos pode ser atribuída à sua habilidade de provocar anomia e dissenso para criar urgência e demanda de tutela.
Einstein perguntava como é possível que uma pequena súcia consiga levar a maioria a tantas perdas
A forma mais simples de proliferar o mal-entendido é retornar perpetuamente ao desencontro entre geografia e história, adiando e aumentando indefinidamente as precondições da negociação: o protetorado britânico, as fronteiras de 1948, a tomada do Sinai, a ocupação de Golan, o retorno dos refugiados para suas casas. Nisso se pratica o recalcamento dos acordos de Oslo, efeito típico da construção social de um trauma. Por meio dele Yitzhak Rabin continuou a ser assassinado nos doze anos de errância no deserto do medo e do desamparo pré-fabricado. Quem assiste de longe ao desentendimento administrado não consegue ter uma justa medida de como elementos básicos de qualquer negociação estão sendo simplesmente negados no tempo: “Pouquíssimos em ambos os lados assistem à mídia do outro, leem sua literatura, assistem a seus filmes ou sequer sabem muito sobre a sua política interna”.
Até 2015 a exportação da crise Israel-Palestina servia de bancada para as mais diferentes mesas internacionais de negociação, de Camp David a guerras na Síria, no Iraque, no Kuwait. Negociações de paz precisam contornar obstáculos linguísticos e sociais representados pelo congelamento das relações entre árabes e israelenses, mas a realidade é composta de comunidades que majoritariamente não falam a língua do outro, mesmo que convivam a metros de distância. Uma Israel imaginária nunca poderá conter-se em seus próprios limites, assim como a Palestina imaginária se congela em algum dia de humilhação e desterritorialização infinito, um dia que nunca passa. As narrativas mágicas, míticas e religiosas são mobilizadas como um sintoma para unir no plano simbólico as deliberações, acordos e compromissos cujo marco é Oslo e a realidade da terra impossível de ser partilhada, desse universal fraturado, desse objeto fetichista de gozo chamado Jerusalém.
Medo do outro
Outras colunas de
Christian Dunker
“Uma ideia comum tanto entre israelenses e palestinos é que ‘nós’ (em ambos os lados) queremos a paz, mas ‘nós’ não temos um parceiro para a paz do outro lado”, diz Baskin. Pessoas com medo das quase pessoas, pessoas que não se encontram, não conversam e têm ideias incrivelmente equivocadas sobre os outros. Líderes de parte a parte já disseram que isso só poderá ser resolvido “pelo contato direto entre as populações”. Talvez só assim o desencontro imaginário pode se tornar real, consequentemente tratado pela palavra. O sucesso econômico de Israel contrasta com a relativa estagnação da Palestina, onde a água e os insumos são controlados. Há anexações ilegais e áreas ocupadas sob litígio, mas como compará-las com as gerações de apátridas nascidas nos campos de refugiados na Síria e no Líbano? Gaza bombardeada nunca poderá ser posta em proporção com os mísseis feitos à base de postes de rua enxertados com pólvora e pregos enferrujados. O peso das vidas israelenses parece ser sensivelmente maior do que o das palestinas, mas nisso nos esquecemos da obscenidade que é a contabilidade de vidas. O problema da Israel imaginária e de seu duplo palestino é que isso nos leva ao analogismo pelo qual existe um único objeto e disputamos versões comparativas, perspectivas ou interpretações em torno da verdade da coisa.
Nas grandes metrópoles brasileiras, com suas extensas periferias, semiadministradas com violência pelo Estado, desenvolvem-se formas de vida autóctones, com baixa convivialidade interseccional e efeitos continuados da segregação. Sua expansão é previsível, mas não simétrica, para seu duplo imaginário — a vida em forma de condomínio, murada, vigiada e atormentada pela violência potencial intrasseccional. Lá e cá o lado mais poderoso está começando a ter sua legitimidade questionada, com o desmascaramento do discurso da segurança. Por isso a situação Israel-Palestina é um paradigma para tratar conflitos no mundo reorganizado pelo capitalismo em chave neoliberal, assim como Auschwitz é um paradigma para pensar processos de segregação.
Em 1932 a Liga das Nações convidou Albert Einstein e Sigmund Freud para debater o sentido da guerra. Relembremos as perguntas do físico:
1. Existe alguma forma de livrar a humanidade da ameaça de guerra?
2. Como é possível a essa pequena súcia dobrar a vontade da maioria, que se resigna a perder e a sofrer com uma situação de guerra, a serviço da ambição de poucos?
3. Como esses mecanismos conseguem tão bem despertar nos homens um entusiasmo extremado, a ponto de estes sacrificarem suas vidas?
4. É possível controlar a evolução da mente do homem, de modo a torná-lo à prova das psicoses do ódio e da destrutividade?
As perguntas de Einstein são um roteiro sintético das dificuldades enfrentadas ao longo de décadas por Baskin como mediador. A guerra adquire aqui valor da ameaça a ser evitada, não só como atos ou efeitos de bombardeios e ações militares ou paramilitares. Contudo, há um sucedâneo dessa ameaça que é a violência capilarizada, doméstica, endêmica, étnica e racialmente distribuída. Essa forma de vida, tão conhecida dos brasileiros, marcada pela violência, contingente ou colateral, representada pela bala perdida, pelo fogo amigo, pela violência de Estado — ali onde o Estado nega a si mesmo. A cooptação dos estados de insegurança por uma pequena súcia, disposta a produzir o mal-estar da qual se apresenta como gestora.
A atual “Engenhoca” israelense, como promessa de um governo duplo e partilhado no tempo, recupera o pacto pela palavra, a confiança mesmo na precariedade e o reconhecimento do verdadeiro inimigo dos processos de paz. A questão não é fazer ou não fazer alianças, chegar ao poder puro ou sujo, mas recuperar a aposta na palavra como processo, o que também se chamava antigamente “política”. Políticas de afastamento e redução da diversidade experiencial, o engajamento e instrumentalização de retóricas do ressentimento, pontuadas por entusiasmos indignantes, levam a vidas em estado sacrificial vetorizadas pela violência, ainda que institucionalmente perfeitas.
O pessimismo de Freud
Freud é pessimista quanto à estabilidade e à extensão da autoridade necessária para manter a paz. Por exemplo, Yitzhak Rabin é um herói nacional em construção porque em sua memória buscaremos cumprir sua palavra formulada em Oslo, ou é um herói da guerra que deve-se vingado contra seus herdeiros, árabes e israelenses? Certas experiências traumáticas têm o efeito de coagulação da realidade. Como se a partir delas o tempo deixasse de passar do passado ao futuro, sendo substituído por uma temporalidade circular, na qual o futuro repete compulsoriamente o passado.
Mas voltemos à respostas dadas por Freud às questões de Einstein sobre os contextos preventivos da guerra e da paz subornada:
1. A relação entre direito e poder ou violência não pode ser pensada como eliminação do perdedor.
2. O reconhecimento de que à força superior de um único indivíduo pode se contrapor a união de diversos indivíduos fracos: a violência pode ser derrotada pela união.
3. “A fim de que a transição da violência a esse novo direito ou justiça pudesse ser efetuada, contudo, uma condição psicológica teve de ser preenchida. A união da maioria devia ser estável e duradoura. Se apenas fosse posta em prática com o propósito de combater um indivíduo isolado e dominante, e fosse dissolvida depois da derrota deste, nada se teria realizado.”
4. “A comunidade abrange elementos de força desigual — homens e mulheres, pais e filhos — e logo, como consequência da guerra e da conquista, também passa a incluir vencedores e vencidos, que se transformam em senhores e escravos.”
No conjunto, Freud está fornecendo elementos para questionar a tese de Walter Benjamin de que a história é sempre feita pelos vencedores, pois estes jamais se tornam verdadeiros vencedores se não puderem reconhecer e ser reconhecidos pelos vencidos: a relação entre senhores e escravos se desdobra dentro de qualquer comunidade enquanto a violência não for trasladada em pacto de reconhecimento pela palavra. Isso não é feito de uma vez por todas, mas continuamente reeditado em reatualizações periódicas como trabalho da cultura.
O termo comum entre vencedores e vencidos, entre dominados e dominadores, é o sofrimento. Essa lição atravessa o testemunho de Baskin de ponta a ponta. Desde a sua aliah em uma pequena vila árabe até a sua viagem com passaporte falso a Túnis. É a trajetória de alguém capaz de experimentar-se no sofrimento do outro e do um, sem ter que escolher qual deles teria a prerrogativa decisiva.
“O principal motivo para o fim do Movimento Juvenil Pioneiro Árabe era o fato de seus membros árabes terem sido bem-sucedidos demais na absorção dos valores e princípios do movimento socialista-sionista, o Hashomer Hatzair”, afirma Baskin. Atuando na vila de Kufr Qara, ele percebeu os efeitos prolongados da indiferença, que se cristaliza quando a diferença cultural é fonte de sofrimento e segregação, bem como a estereotipia do outro que prospera em tais situações. Narrando por dentro a discriminação de cidadãos em função de sua religião, raça ou etnia, e observando os efeitos continuados da distribuição desigual de recursos simbólicos como saúde e educação, com alunos que respondem com excesso de conformidade e reverência às perguntas do professor judeu, interpretado como autoridade de Estado. Teria sido a continuação dessa política ao longo do tempo que levou cada vez menos jovens israelenses e palestinos a acreditar na solução baseada em dois Estados. Isso aconteceu em razão de uma lógica cultural sobrecarregada pela experiência identitária.
A hospitalidade árabe é um outro tipo de dignidade e um outro tipo de honra. A não simetria surge como modelo
Pensando em minha experiência pessoal, Israel e os Territórios Ocupados são uma região caracterizada pelo multiculturalismo que percebe a si mesma como um sistema dual de oposições. Judaísmos de inúmeras raízes e ortodoxias, árabes de diversos credos, beduínos, circassianos, drusos, muçulmanos xiitas e sunitas, cristãos maronitas, cristãos ortodoxos, cristãos romanos. Um país com 27% de imigrantes da Europa e da América e 10% da África e da Ásia, 20% de judeus seculares, 17% de ortodoxos. Tudo isso deveria representar uma experiência de indeterminação identitária, mas sucede o contrário. Os tochavim, megorachim do Magreb e do norte da África, como antes deles os russos do sul, os etíopes e sudaneses, nos dão o exemplo de um enorme esforço de produção do comum. Basta lembrar a existência de um braço dos Panteras Negras em Israel nos anos 70.
“Os judeus israelenses e os árabes palestinos estão presos na visão do inferno de Sartre, ou seja, que o inferno são os outros. Não há saída. A separação não pode funcionar em uma terra tão pequena, não mais do que podia o apartheid […]. Portanto cabe a nós fornecer a resposta que o poder e a paranoia não podem dar. Não é suficiente falar em paz em termos gerais. Devem-se fornecer as bases concretas para isso, e estas só podem vir de uma visão moral, e não do pragmatismo ou da praticidade. Se nós temos que viver devemos conquistar a imaginação, não apenas de nosso povo, mas de nossos opressores. E temos que agir de acordo com os valores democráticos humanos”, afirma Edward Said.
A inversão perspectiva, a suspensão da pressão identitária, acompanhada da imersão cultural e política, surge assim como uma propedêutica a toda solução possível. Ao reunir-se com a olp, ao negociar pessoalmente com Abu Mazen e Yasser Arafat, assim como indiretamente com a equipe de Rabin, Baskin mostra como sem um espaço de experiência compartilhada da cultura não haverá caminho para a paz. Enquanto cada qual demandar que sua própria língua seja o esperanto para qualquer conversa possível, continuaremos a viver de monólogos e a perseverar na desigualdade.
Nesse ponto o livro traz uma preciosa ideia do mundo islâmico: hospitalidade. Ao caminhar pelas vilas palestinas e escutar o fdadel (pode entrar), ao ser incitado a falar hebraico (porque nós queremos entender a língua do outro), ao aprender a deixar um pouco de comida para que o prato não fosse cheio novamente, Baskin descobre como a hospitalidade árabe é um outro tipo de dignidade e um outro tipo de honra. Aqui a não simetria e a intradutibilidade de experiências surgem com um modelo. Em vez da tradução perfeita e do universal da linguagem que fariam todos nos compreendermos sem ruídos e sem ambiguidades, a reparação da palavra. O reconhecimento de zonas de incomensurabilidade, na qual o dualismo das identidades se vê substituído por um perspectivismo da escuta.
Outro caso exemplar é o lugar do diwan, ou seja, algo análogo ao divã dos psicanalistas. Nele entramos deixando os sapatos de fora e acolhendo as mulheres e as crianças. Não é como a sala de estar para ocidentais, onde nossos papéis e posições são respeitados ou postos à prova pela fria diplomacia. O divã é o lugar da mistura e do estrangeiro, da palavra compartilhada como indeterminação produtiva. Foi assim como xamã e diplomata entre mundos que Baskin nos contou sua aventura. Com a hospitalidade daquele que se sabe estrangeiro a si mesmo.
Este texo foi realizado com o apoio do Instituto Brasil-Israel.
Porque você leu Literatura israelense
O Fim da Nova Paz
Putin está mergulhando a humanidade em uma nova era de guerras e a sobrevivência de nossa espécie pode estar em risco
FEVEREIRO, 2023