Política,

A literatura não cura ninguém, diz autora chilena

De origem palestina, Lina Meruane defende que é preciso desconfiar da linguagem, principalmente diante de conflitos políticos

02set2019

A escritora chilena Lina Meruane, de origem ítalo-palestina, desconfia da linguagem. Em vez de abrir a realidade, ela pode ocultar e distorcer. Ela diz aos outros onde nos posicionamos politicamente. E ela pode se voltar contra você. É preciso ter muita responsabilidade com a linguagem. Naturaliza-se, por vezes, posições dominantes, e, no lugar de libertar, ela aprisiona ainda mais.

Com relação à ideia de que é possível curar eventos traumáticos ao narrá-los, Meruane mostra-se cética. “Não sei se esse é o objetivo da literatura: curar enquanto se escreve. O papel da literatura é criar uma pergunta. A literatura, ao meu ver, não tem a necessidade de chegar a soluções. Isso está fora do âmbito da literatura. Ao mesmo tempo fazer as perguntas, trazer luz sobre essas questões pode oferecer ferramentas para ajudar as pessoas a pensarem com você sobre essas coisas e não normalizar certas situações.”

A busca pela linguagem mais precisa é uma das buscas de Tornar-se Palestina, que também é sobre a busca pelo próprio sobrenome, pela terra dos ancestrais paternos, pelas memórias dos antepassados, por um país que existe mas não é reconhecido. Realizada em 2012, a viagem à Palestina mudou Meruane e rendeu a obra que ela lançou originalmente em 2014, e que agora ganha tradução brasileira pela Relicário Edições.

Dividido em duas partes, “Tornar-se Palestina” e “Tornar-nos outros”, o livro é um híbrido, sendo ao mesmo tempo um relato de viagem, uma obra de memórias e uma reflexão sobre a linguagem e identidade escrito em tom de ensaio. A primeira parte foca na sua ida à Palestina, aliada às memórias do pai e às suas experiências no território de ondem veio a sua linhagem paterna – é quando descobre a Palestina, tanto a terra quanto a sua própria identidade. Já a segunda seção aprofunda ainda mais a discussão sobre a linguagem usada no conflito israelo-palestino, trazendo reflexões políticas e identitárias.

“Estou convencida que o conflito não é religioso per se. Há uma animosidade entre os muçulmanos e os judeus, mas o verdadeiro conflito não é sobre qual Deus é melhor, é um conflito pela terra. É um conflito político. É sobre quem tem domínio sobre a terra”, analisa Meruane. “Ao olhar friamente para a situação, é uma questão colonial, política, ligada ao controle do território. A religião é secundária, é um catalisador emocional. Você pode usar a religião para o seu objetivo. Mas a principal questão não é religiosa. É um problema colonial em um mundo dito pós-colonial.”

Autora de Sangue no olho (Cosac Naify) e Contra os filhos (Todavia), Meruane traz à tona grande parte das complexidades do conflito e das repercussões nos descendentes de palestinos, principalmente daqueles que “perderam” a língua árabe, através da sua experiência pessoal conseguida por meio da viagem, que ela chama de “privilégio da passagem”: a possibilidade de entrar e sair dos territórios ocupados que seus parentes recém-descobertos não possuem.

Meruane está no Brasil para lançar seu livro mais recente. Na madrugada do último domingo (1), ela foi promover a obra no Espaço Cultural Al Janiah, criado por palestinos e que está situado no bairro do Bixiga, em São Paulo. Meruane já tinha ido embora do local quando o restaurante que promove a cultura palestina foi alvo de ataques de um grupo ainda não identificado. “Não deixei de ficar impressionada com a proximidade dessa violência sem dúvida racista”, disse ela. “Dá uma medida do clima político que se está vivendo no Brasil”.

Em entrevista à Quatro Cinco Um, Meruane, uma ex-jornalista que hoje é professora universitária em Nova York, fala sobre como é ser e não ser palestina ao mesmo tempo – “Minha vontade diz que sim, minha realidade diz que não” –, como a literatura não foi feita para ser um tratamento para curar traumas e como o conflito a fez entender melhor alguns dos conflitos políticos no Chile.

451 Como foi o processo de escrita do livro?
LM Eu não estava planejando em escrever esse livro até eu fazer a viagem. Então, escrevi um texto curto para um jornal. Era sobre mulheres que viajam sozinhas. Escrevi umas dez páginas. Um editor mexicano leu e me disse que gostaria de publicar o texto inteiro em uma coleção que a editora tinha. Aceitei e escrevi a primeira parte do livro em uma versão mais curta. O meu pai, ao ler essa versão, teve a sua memória ativada. Ele perguntava: “Mas eu não te disse isso?”. Incluí depois as partes que ele me contou. Escrevi tudo muito rápido em 2012, ano em que eu viajei. Daí minha editora chilena disse que tinha adorado, mas que estava muito curto e que precisava de mais páginas. Ela sugeriu, então, que eu escrevesse uma segunda parte sobre linguagem, porque isso aparece muito na primeira. Pensei em escrever quinze páginas. Mas claro que a questão da linguagem nessa área é tão complexa, foi tão manipulada, há tanto a dizer que demorei um ano para ler, pensar e completar a segunda parte do livro. Retornei à Palestina em 2018, e comecei a escrever uma terceira parte que lida muito mais com linguagem. É um texto muito mais multilíngue. A edição chilena, em espanhol, vai ganhar uma nova edição na qual vai ser incluída essa terceira parte.

É interessante que o título em espanhol é Volverse Palestina tem esse sentido de “tornar-se palestina” e de “voltar à Palestina”. E em português, a tradução perde um pouco isso, mas traz um novo sentido: tornar-se o país Palestina e torna-se uma palestina, fazendo uma associação entre território e identidade.
Isso se manteve na edição chilena também. Porque eu pedi par manterem a letra “p” maiúscula, porque se for do lugar, é um “p” minúsculo”, se for o próprio lugar é o “p” maiúsculo. Para mim, sempre foi com “p” maiúsculo. Talvez seja um pouco hiperbólico falar, em espanhol, que você se transforma em um país. Mas eu queria dar um caráter alegórico, pois traz esse significado de voltar a um país que era apenas um rumor na história da sua família e depois emerge com um significado tão complexo, que significa nação, pertencimento e saudade, além de outras coisas.

No livro, você diz que o árabe é a língua que foi perdida. Como é a sua relação com esse idioma?
A primeira imigração de árabes à América Latina era, em sua maioria, de cristãos ortodoxos que saíam do Levante [região que engloba Síria, Líbano, o atual Estado de Israel e os Territórios Palestinos], no fim do século 19 e começo do 20, por causa do controle do Império Turco-Otomano e da suspeita que tinha dos cristãos. Eles eram maltratados, pobres e eram enviados em batalhas para morrerem na vanguarda do exército. Esses árabes achavam que possivelmente seus filhos iam morrer por uma nação que os maltratava, que não era mesmo a nação deles. Então, partiam em grande número. Foi o caso da família do meu pai. A ideia, na época, era se assimilar. Porque se não se assimilassem nunca pertenceriam a algum lugar e não seriam tratados como iguais. Os árabes estavam preocupados com a discriminação, queriam mesmo ter certeza de que seus descendentes seriam assimilados de imediato. Não para negar a cultura, mas para apagar o sotaque. Isso aconteceu em outras comunidades. Apesar de algumas pessoas manterem a língua, muitos descendentes dessas comunidades estão reaprendendo a língua hoje, porque tinha sido perdida. É um fenômeno típico da imigração. A língua foi perdida. Meu pai não aprendeu árabe. Ele podia reconhecer algumas palavras, porque a geração anterior falava árabe entre si, mas não falava com as crianças. Além disso, minha avó tinha chegado muito nova, se sentia confortável em espanhol, mas não tanto em árabe. A língua dominante na família era espanhol. Agora, descobri que meu avô chegou aos quinze anos, então também era muito jovem. A língua foi perdida na minha família, mas algumas das tradições, a comida e a ideia de ser do lugar foi mantida. A gente pensa que pertencimento é igual à língua ou à religião. Mas acho que é algo muito mais complexo. Não é só sobre língua. Problematizei mais essa ideia no livro. Pois vivemos em uma época em que nos movimentamos muito. A ideia de que nos fortalecemos só com uma única língua em detrimento de outras não se sustenta mais. Acredito que somos as línguas que falamos, e ter mais línguas faz com que pensemos sobre as coisas de modos mais complexos. Fico triste de não ter aprendido árabe, pois isso me daria um acesso á cultura que não tenho. Mas tento contornar isso por meio de outras línguas também.

Você é uma falante nativa de espanhol, mora em Nova York, dá aula em inglês…
E estou aprendendo alemão, uma língua que meu avô sabia por ter ido a uma escola alemã na Palestina. Também precisamos lembrar que o espanhol – e provavelmente o português – possui uma série de palavras que vem do árabe. Todas as palavras que começam com “el” ou “al”, por exemplo. O artigo do árabe está ali. Temos uma conexão esquecida, uma invisibilidade da língua árabe. A influência árabe desapareceu na superfície, mas se assentou na língua e ainda temos isso dentro de nós. Mesmo que alguém não seja de um país árabe.

Você escreve no livro que vê a linguagem com desconfiança. É possível evitar equívocos com a linguagem?
Não, não acho que isso seja possível. Como escritora, eu acreditava – talvez de modo ingênuo – que a língua estava ali para mudar a realidade, de um jeito progressista, que abrisse a realidade. Mesmo acreditando nisso, não considerei as formas como a língua é usada para distorcer e esconder. É onde começo a segunda parte do livro. Reflito sobre os usos da linguagem e como pode abrir a realidade politicamente, permitindo ver o que estava oculto, ao mesmo tempo em que obscurece, fazendo parecer outra coisa. Isso é muito óbvio em situações de conflito, especialmente o israelo-palestino. É preciso ter muito cuidado com a linguagem, porque ela pode dizer aos outros onde nos posicionamos politicamente. E podemos acabar falando coisas que podem ir contra o nosso grupo, podemos ser homofóbicos, misóginos etc. Temos que ter cuidado, pois a linguagem é nossa responsabilidade. Naturalizamos, por vezes, as posições dominantes. Por exemplo, que os colonos israelenses estão construindo bairros – e isso é ilegal. Isso não conta toda a verdade, nem mesmo uma parte dela.

Você acredita que escrever ou falar sobre um evento traumático é uma forma de curar o trauma?
Provavelmente foi a psicanálise que abriu para essa ideia de que nos curamos pelas palavras, ao contar nossas histórias. Acredito que algumas pessoas podem se curar dessa forma. Ao mesmo tempo, não tenho certeza de que isso funcione sempre. Às vezes, contar o que antes estava protegido e esquecido, de modo voluntário ou involuntário, só porque é um mecanismo de proteção da nossa psique, você abre essa memória, e se você não tiver ferramentas para lidar com esse sofrimento, isso pode virar contra você e criar uma situação pior. Não que seja inevitável, ou que se as pessoas se abrirem e dizerem o que estão sentindo, não necessariamente traz paz e conforto. É bom fazer isso em sessões de terapia, mas não necessariamente na literatura. Não sei se esse é o objetivo da literatura: curar enquanto se escreve. O papel da literatura é criar uma pergunta. A literatura, ao meu ver, não tem a necessidade de chegar a soluções. Isso está fora do âmbito da literatura. Ao mesmo tempo fazer as perguntas, trazer luz sobre essas questões pode oferecer ferramentas para ajudar as pessoas a pensarem com você sobre essas coisas e não normalizar certas situações.

Você acha que criar empatia também faz parte do papel da literatura?
Sim, porque olhamos nas vidas de outras pessoas que, em geral, não têm um lugar na mídia. Todos os muçulmanos agora são terroristas. E isso é muito difícil de desfazer. Claro que há pessoas ruins e violentas em todas as religiões, culturais e países. A maioria dos crimes cometidos nos Estados Unidos não são de autoria de muçulmanos, mas de norte-americanos nascidos e criados no país. O meu livro pode convidar as pessoas a olhar as coisas sob um novo ângulo, ao mostrar pessoas reais e como eu via as coisas acontecerem lá.

O que mais marcou você na viagem à Palestina?
Teve vários momentos que me marcaram intensamente. Escrevia todas as noites sobre o que via. Um dia, em uma situação dessas, tem tanta informação, tantas coisas novas, não é que tudo apareceu no livro, houve uma seleção das coisas que mais me impressionaram. Se tivesse que resumir, diria que ir até a Palestina me mostrou o conflito sob uma nova luz, porque fiquei emocionalmente conectada com o problema. E isso criou um sentido de conhecimento e de compromisso com a situação que não posso voltar a ser quem eu era. Mudou não só a forma como eu via o conflito, mas também de várias outras questões, como refugiados, linguagem, migração, campos de concentração, Holocausto.

Você se sente palestina?
Sim, mas claro que eu não sou. Sou e não sou ao mesmo tempo. Essa é a grande questão. Porque queremos pertencer aos lugares como se fossem categorias. Não sou porque não falo a língua, não vivo lá, nem cresci lá. Por outro lado, eu sou porque minha família veio de lá, tenho paixão pelo que está acontecendo lá, porque o lugar iluminou quem eu era e se tornou uma parte de mim. Minha vontade diz que sim, minha realidade diz que não. Porque eu não quero falar pelos palestinos, pois eles têm uma experiência de vida e uma autoridade de falar sobre a experiência deles, e eu posso contar a minha passagem, mas não como é viver lá. Quando conto essa história é de alguém que tem uma conexão e empatia, mas também de alguém que tem o privilégio de não estar ali e poder me movimentar quando eu quiser. A terceira parte que estou escrevendo fala sobre isso, pois olho para os palestinos, israelenses, egípcios, franceses, latino-americanos. Tenho o privilégio de estar de passagem. É preciso ter muito cuidado no modo como me apresento. A Palestina pertence a outras pessoas, e eu não estou autorizada a contar essa história. Mas sinto que tenho a autoridade de dizer que fui para lá e foi isso o que eu vi, e tenho um compromisso com essa realidade, porque também trago um pouco disso em mim. No entanto, eu também sou muitas outras pessoas.

A busca pelo seu sobrenome é algo que permeia todo o livro. Era você tentando se encontrar?
Essa questão com nomes vem antes do livro, porque meu nome Lina, que vem da família da minha mãe e da minha avó, é de origem italiana.  Então, Lina é um nome muito mediterrâneo. Em espanhol, é a segunda parte de outros nomes: Paulina, Carolina, Catalina. Cresci nessa situação paradoxal: com gente perguntando se esse era o meu nome verdadeiro ou se era um pseudônimo quando comecei a escrever. Ao mesmo tempo, em casa, com minha avó e minha mãe, se alguém chamasse “Lina”, nós três viraríamos. Meu nome, portanto, era o nome de outras pessoas. Havia a estranheza desse nome para algumas pessoas e uma coletividade absoluta em casa. Havia duas realidades com esse nome. Por causa disso, sempre pensei que a relação que se tem com o próprio nome é bem mais complexa, não é tão essencialista. Penso bastante sobre identidades essencialistas, como elas podem se tornar perigosas e como são necessárias em termos políticos. Eu me dei conta, na Palestina, que meu nome lá não é realmente um sobrenome. Recentemente, encontrei os registros de entrada do meu avô no Chile, e toda essa família que era conhecida com um único nome tinha um nome árabe diferente. Os irmãos do meu avô tinham um sobrenome que eles mudaram para algo mais fácil de ser reconhecido em espanhol quando entraram no Chile. O mesmo com meu avô, que se chamava Issa, e no Chile se transformou em Salvador, que é uma tradução para “Jesus”. Eles também mudaram de sobrenome, pois chegaram como “Marwani”, que significa que houve um “Marwan”. Pois os nomes dos árabes são Issa, filho de X, filho Y etc. Os nomes vêm de um clã também, e o clã do meu avô era Saba. Deve ter havido um Marwan, o primeiro nome de algum ancestral, que depois foi transformado em “Meruane”. Demorei um pouco para achar isso. Mas também foi um choque descobrir que meu primeiro nome sempre esteve em questão e que meu sobrenome não é um sobrenome. Concluindo: tomamos como certa a ideia de que sua identidade está ligada a um primeiro nome e sobrenome, mas é tudo mais complexo. Muitos imigrantes tiveram seus nomes transformados e os irmãos acabavam tendo diferentes sobrenomes. Penso, então, que não devemos ter muito apego sobre quem somos, como somos nomeados e qual o status que esse nome dá, porque podemos descobrir que, na verdade, não somos quem acreditamos ser. E por que isso teria importância?

No livro, você mistura todos os nomes: Issa-Salvador, Ibrahim-Abraão. Porque não é uma identidade única, são muitas.
Sim. Quem é você quando é Salvador? E quem é você quando é Issa? Você é e não é. É você mesmo, mas também um pouco diferente.

A religião está no livro, mas não é uma questão central. Como você se relaciona com essa questão religiosa?
Eu não sou uma pessoa realmente interessada em religião. Depois de criar uma espécie de irmandade com a mulher muçulmana do meu amigo, em cuja casa fiquei durante minha viagem, descobri uma pessoa linda, que vai contra todas as ideias propagadas sobre muçulmanos. Queria mostrar que existe uma grande diversidade entre os homens e mulheres muçulmanos, e como eles se relacionam com todos os tipos de questões. Mas não estava olhando pelo viés religioso. Estou convencida que o conflito não é religioso per se. É verdade que os protagonistas são o povo judeu de Israel, que assume essa identidade com muita força, tanto em termos raciais quanto religiosos, e é em contraposição aos palestinos, quem quer que eles sejam. Há uma animosidade entre os muçulmanos e os judeus, mas o verdadeiro conflito não é sobre qual Deus é melhor, é um conflito pela terra. É um conflito político. É sobre quem tem domínio sobre a terra. De acordo com a Torá e algumas interpretações do livro sagrado do judaísmo, toda a terra é deles. Não acaba na Cisjordânia e Gaza. Vai até a Jordânia. A questão da propriedade da terra é tão presente que a religião é secundária. Em primeiro lugar, esse processo não reconhece a preexistência de palestinos nessa terra, e como não conseguem evitar que são uma maioria em suas áreas e uma minoria em Israel, o projeto é expandir e apagar os palestinos. Querem que eles sejam árabes com o resto dos árabes, que eles se misturem e desapareçam entre libaneses, jordanianos e egípcios. E isso não é possível, pois são comunidades diferentes. A questão para Israel é o controle da terra. Enquanto os israelenses têm uma área legalizada de assentamentos nos territórios ocupados, eles têm expandido essas terras sem a necessidade de uma guerra e colocando cada vez mais pessoas lá, tornando cada vez mais impossível para essas pessoas saírem de lá. A ideia de trazer mais pessoas é que, em algum momento, eles serão a maioria nesses assentamentos, repopulando a área, controlando toda a terra. Ao olhar friamente para a situação, é uma questão colonial, política, ligada ao controle do território. A religião é secundária, é um catalisador emocional. Você pode usar a religião para o seu objetivo. Mas a principal questão não é religiosa. É um problema colonial em um mundo dito pós-colonial.

Acha que é um regime de apartheid?
Sim, não é muito bem visto dizer isso, mas é um regime de apartheid. Não exatamente do mesmo jeito que o sul-africano. Tem todas as características de um regime de apartheid. Com uma diferença. Na África do Sul, os brancos ainda se relacionavam com os negros, porque eles trabalhavam para os brancos e eram uma grande maioria. Nos territórios que chamamos de Israel, os árabes são uma minoria, e cada vez mais não são permitidos a entrar em Israel para trabalhar. Há uma segregação cada vez maior da comunidade palestina. Os descendentes das chamadas Tribos Perdidas, vindos da Etiópia, do Marrocos etc., que entraram em Israel são tratados de modo racista e, alguns estudiosos acreditam que esses grupos foram trazidos para fazerem os trabalhos antes realizados pelos palestinos, para não precisarem mais deles. É um apartheid bem forte, na realidade. Porque se controla pessoas com quem você não tem contato em nenhum nível.
O paradoxo da situação é que os judeus, depois de serem perseguidos e tidos como o “bode expiatório” para os problemas na Europa, conseguiram um Estado. O problema deles agora é que estão repetindo essa mesma atitude com os palestinos. Carregam essa dor do passado que terminou no Holocausto, o que permitiu que eles ganhassem o território que têm hoje. Não estou questionando essa decisão. O que acontece depois é que de vítimas eles se tornaram os algozes. Adotaram essa atitude violenta com os palestinos, que não tinham nada a ver com a situação. Pois era um problema europeu, não um problema árabe. A questão foi revertida. É um paradoxo para quem consegue enxergar o que está realmente acontecendo. Muitos judeus estão se conscientizando mais sobre essa questão.

Você acha que a maioria dos israelenses ignora o que está acontecendo nos territórios palestinos?
Existe uma pequena minoria em Israel que critica muito as políticas nos territórios. E eles são chamados de “traidores”, “antissemitas”, que eles odeiam a si mesmos. Há grupos muito importantes, como Breaking the Silence [Rompendo o silêncio], que são ex-soldados que são contrários ao que é feito por Israel nos territórios palestinos; há pessoas que defendem o BDS [Boicote – Desinvestimento – Sanções]; advogados judeus israelenses que defendem os palestinos; há jornalistas bastante críticos no jornal Haaretz. Todos são muito criticados e tentam não deixar os israelenses esquecerem o que está sendo feito. Mas tem uma comunidade muito comprometida com as ideias religiosas e identitárias mais restritas do governo. Podemos chamá-los de fanáticos. É um grupo que cresceu ao longo das décadas. E é muito difícil negociar com eles, pois são muitos, influentes e determinados.

Você pensa em alguma solução para o conflito?
Não, não penso. É uma questão muito complexa, em termos de terra e história. Os palestinos têm muito pouco poder no mundo no momento atual, e eles são muito divididos entre eles. Yasser Arafat [1929-2004, líder do partido Autoridade Nacional Palestina], para o bem e para o mal, era ao menos uma figura que unia as pessoas. Dividir os palestinos é, inclusive, uma política israelense. Há muitos palestinos que não acreditam nos seus políticos. E isso é uma fraqueza para os palestinos. Há um governo de ultradireita em Israel – Benjamin Netanyahu está cada vez mais à direita, e com um apoio popular muito forte, apesar das acusações de corrupção. E nos Estados Unidos, você tem um presidente pró-Israel. E a Europa está dividida nesse ponto, porque ela carrega muita culpa, pois participou do que aconteceu e não quer ser vista como antissemita. E toda política contra o Estado de Israel é vista como antissemita, e isso é muito complicado. Nem ousaria oferecer uma solução menor.

Qual a importância de a América Latina, incluindo o Brasil, saberem sobre esse conflito?
Compreender o conflito palestino é uma forma de compreender muitas das coisas que estão acontecendo no mundo. Como se a Palestina fosse um pequeno modelo das coisas que acontecem no mundo. Por exemplo, o muro. Há um muro na Palestina, nos Estados Unidos, na Europa. Há algo acontecendo na Palestina que também acontece em algum lugar do mundo. Entender esse conflito capacita você a ver outros conflitos e outras questões, de imigração, religião, territoriais. Para a América Latina, mais especificamente no Chile, temos a questão das comunidades indígenas, que é uma grande comunidade no sul. Os mapuches declaram que foram expropriados de suas terras pelos chilenos, e eles foram mesmo. E são tratados como terroristas. A lei antiterrorista que passou há uns dez anos não está sendo usada para combater terroristas, mas sim para combater os movimentos indígenas. Há muitos paralelos, até na linha do tempo. Ao mesmo tempo, existem muitas variações. Não se pode colocar tudo no mesmo saco, mas podemos usar algumas das ideias, como o conflito linguístico. A ideia de que todos os conflitos são disputados não só na terra, mas também no campo linguístico. Ao olhar a forma como a imprensa trata a revolta mapuche, a sua luta por terra, como são chamados de terroristas, como sua existência é negada, podemos achar muitas similaridades. Ao ativarmos nossa mente crítica com essas ferramentas, podemos usá-las para outras situações. Para mim, me fez olhar para a questão mapuche de um modo diferente. Às vezes, a violência é o único recurso que eles têm disponível.

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de ireito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).