História,

Confronto com o passado

Como os “novos historiadores” israelenses retiraram a aura de singularidade que marcava os relatos sobre a fundação do Estado

28nov2018

No final da década de 1980, um grande debate público cindiu a sociedade israelense. Por efeito da Lei dos Arquivos, que impunha sigilo a certos materiais sensíveis até o limite de trinta anos, documentos sobre a guerra de 1948-49, conhecida como Guerra de Independência, haviam sido abertos aos historiadores. Os documentos não demoraram a ser publicados em livros que analisavam a criação do Estado de Israel em abordagens radicalmente distintas das conhecidas até então. Autores como Avi Shlaim, Benny Morris, Ilan Pappé e Tom Segev desafiavam narrativas tradicionais que moldavam tanto a percepção que a população do país tinha de si mesma — grosso modo, a de que havia sobrevivido a batalhas heroicas e justas, travadas em ambiente inóspito e francamente desfavorável —, como o próprio éthos nacional. Para designar essa geração de acadêmicos, Morris, um de seus representantes mais famosos, cunhou a expressão “novos historiadores”, embora aos historiadores tenham se somado antropólogos, sociólogos, filósofos e jornalistas.

A polêmica ganhou corpo na imprensa e suscitou questões relacionadas, por exemplo, à correlação de forças entre árabes e judeus durante a guerra, aos projetos políticos dos líderes de ambos os lados e à responsabilidade de cada um sobre o desfecho do conflito. A narrativa convencional, que circulava nas décadas anteriores, afirmava que os judeus eram mais fracos do que os árabes, que estes desejavam “jogar os judeus ao mar” e que a população árabe nativa, que havia se tornado refugiada, era responsável por seu próprio destino — uma vez que abandonara suas casas —, acreditando nas promessas dos exércitos árabes, que lhe asseguravam a futura libertação da totalidade do território, do rio Jordão ao mar Mediterrâneo, ao passo que a nova geração de acadêmicos dizia, basicamente, o contrário.

Para eles, já em 1947, os judeus eram mais fortes, tanto em número de combatentes como em armamentos; parte considerável dos árabes nativos fora efetivamente expulsa por milícias judaicas, com base em um plano previamente traçado; e, mesmo tendo a paz a seu alcance, lideranças do nascente Estado de Israel preferiram recusá-la, mantendo sob seu domínio os territórios conquistados durante a guerra e impedindo a volta dos refugiados. A história que passava a ser contada por esses historiadores se aproximava, em algum sentido, da narrativa árabe sobre aqueles anos, conhecidos como Nakba — isto é, “catástrofe”, “tragédia”.

O debate sobre 1948 acontecia pouco depois do início da Guerra do Líbano de 1982, um dos momentos mais polêmicos da história política de Israel

Não é correto afirmar que tudo o que estava sendo publicado e que gerou o debate nacional fosse inédito e desconhecido do grande público. Muitos dos fatos reportados já haviam sido divulgados e constavam nas páginas da historiografia israelense. Mas o encadeamento era outro, a narrativa era distinta, assim como eram distintas as suas consequências políticas. A repercussão também era diferente: o momento de publicação desses trabalhos revelava a disposição da sociedade para que certos temas fossem absorvidos e debatidos.

Àquela altura, israelenses — os judeus, em especial — foram obrigados a se confrontar com seu passado recontado e, também, com seu presente. Isso porque, vale lembrar, o debate sobre 1948 acontecia pouco depois do início da Guerra do Líbano de 1982, um dos momentos mais polêmicos da história política de Israel, que provocou uma divisão social sem precedentes. Além disso, os livros surgiam durante a primeira Intifada, revolta popular palestina ocorrida entre 1987 e 1991, que deu ciência a uma questão amplamente ignorada por grande parte dos israelenses judeus: de repente, ficou claro que a “questão palestina” seguia viva e estava longe de ser resolvida.

A presença de tropas israelenses nos territórios palestinos ocupados desde 1967, que colocava milhões de pessoas sob controle militar e fez o exército de Israel ter de lidar não mais com os exércitos nacionais dos países vizinhos, mas com uma população civil privada de direitos, dava sinais de esgotamento. Finalmente, a nova condição de Israel no Oriente Médio, após as sucessivas vitórias no campo de batalha e o desenvolvimento da presumida capacidade nuclear, afastando riscos existenciais, abriu as portas para a revisitação dos eventos de 1948. Assim, o presente ganhava forma no passado e contribuía para forjá-lo, servindo de lente para sua interpretação — e vice-versa.

Anita Shapira já era, nessa época, uma historiadora renomada, ainda que em início de carreira na Universidade de Tel Aviv. Ela ingressou na discussão com os “novos historiadores”. Embora reconhecesse muitos de seus méritos, insurgiu-se, em especial, contra a reivindicação de serem eles “os primeiros escritores da verdadeira história da fundação do Estado de Israel”. Nesse sentido, questionava a perspectiva segundo a qual “tudo escrito antes deles sobre esse tema não passou senão de propaganda sionista”, como se não houvesse fontes que não aquelas controladas pelo Estado, conforme afirmou num famoso artigo publicado nos anos 90.

Síntese

De certa forma, Israel: uma história, que acaba de sair no Brasil pela Paz & Terra, é uma tentativa de síntese e de posicionamento derradeiro a respeito desse embate historiográfico, que encontra raízes bem mais fundas do que a simples procura pela narração mais fiel a respeito dos acontecimentos que se sucederam historicamente. O deslocamento metodológico e interpretativo estava calcado em opiniões políticas e ideológicas a respeito da própria natureza do Estado. Um embate, portanto, acerca do éthos da sociedade e sobre as várias memórias de um passado em disputa.

Evidentemente, a disputa não se restringia ao universo israelense ou judaico. A questão ultrapassava a tentativa de definição dos contornos identitários de um povo e se inseria nos debates mais efervescentes da segunda metade do século 20 no mundo, presentes ainda hoje.

Entre suas características mais destacadas estava a substituição do “paradigma da singularidade” pelo “paradigma do colonialismo”. De modo geral, isso significava deixar de tomar a história judaica em sua pretensa unicidade — que explicaria e, em certo sentido, justificaria o surgimento e as ações do movimento sionista no final do século 19 e início do século 20 — para inseri-la na história europeia da colonização de territórios localizados fora do continente, principalmente na África e no Oriente Médio. E, ainda, esvaziar o peso do desenvolvimento da sociedade israelense, focando no conflito entre árabes e judeus — ou israelenses e palestinos.

A história judaica passou a ser inserida na história da colonização europeia

Para alguns teóricos, isso significou o abandono de conceitos hebraicos que particularizavam a história judaica, considerados autorreferentes e propagandísticos, como aliá (literalmente, “subida”; refere-se à imigração para Israel), chalutz (pioneiro), galut (exílio), ishuv (“assentamento”, comunidades judaicas na Terra de Israel/Palestina antes da fundação do Estado). Esses conceitos foram substituídos por outros, pois a nova trilha teórica permitia comparações, antes impossíveis, e o uso de termos também utilizados em outros contextos históricos.

Assim, para alguns teóricos, o sionismo, movimento nacional judaico, surgido na esteira do desenvolvimento de outros movimentos nacionais e que culminou na fundação do Estado de Israel, deixava de ser percebido como resposta judaica à questão judaica. Deixava de ser percebido como um contraponto ao antissemitismo e como fuga das perseguições e chacinas europeias. Deixava de ser percebido, inclusive, como grito resignado por parte dos apaixonados pelo lugar onde nasceram, que relutavam em abandoná-lo, mas não tiveram escolha após a ascensão do nazismo e a Shoá. 

Em última instância, deixava de ser percebido como um movimento de libertação. O sionismo era agora interpretado como um empreendimento colonial, em nada diferente dos demais que proliferavam em seu entorno: imigrantes desembarcando num território previamente habitado e com interesse no desenvolvimento de uma sociedade própria, excludente. Vistos como “judeus” na Europa, subitamente se transformaram em “europeus” no Oriente Médio, mesmo que boa parte deles viesse de outros lugares do mundo.

Problemas

Se, pelo “paradigma da singularidade”, a história era estudada do ponto de vista de seus atores — o que não é necessariamente ruim, mas não funciona quando se confundem análise e autorrepresentação —, a inserção da história de Israel no âmbito do colonialismo europeu também colocava, de saída, diversos problemas. A começar pela fragilidade no uso do conceito de “colonização” — seja “colonização de exploração”, seja “colonização de povoamento” — num contexto em que não havia “metrópole”. 

Ao mesmo tempo, pelo fato de a opção comumente acarretar a representação dos “sionistas” como agentes e responsáveis únicos pelos processos em curso, enquanto os países árabes vizinhos e os palestinos figuravam, assim como a paisagem onde os acontecimentos se desenvolviam, como meros espectadores ou alvo da ação. Além disso, a organização de uma linearidade histórica relativiza ou até mesmo ignora a Shoá, fenômeno que transformou o sionismo, até então uma ideologia marginal, em força hegemônica entre os judeus.

Vistos como ‘judeus’ na Europa, subitamente se transformaram em ‘europeus’ no Oriente Médio, mesmo que boa parte viesse de outros lugares do mundo

Em Israel: uma história, Anita Shapira não está preocupada em trazer ao leitor os meandros das discussões conceituais. Há um esforço de pôr em prática e, em alguma medida, pôr à prova os princípios que nortearam seu posicionamento teórico no debate sobre os “novos historiadores”. Em outras palavras, uma tentativa de resposta à seguinte pergunta: passado o calor da discussão, como contar, agora, a história do Estado de Israel?

A primeira decisão da autora tem a ver com o ponto de partida para a análise. Enquanto os “novos historiadores” costumavam tomar o período de 1947 a 1949 como marco zero em seus trabalhos, Shapira retorna ao ano de 1881. Assim, aborda o surgimento do movimento sionista na Europa, a chegada dos imigrantes judeus numa Palestina — ou Terra de Israel — já povoada, o período do mandato britânico e a formação das primeiras instituições que precederam a fundação do Estado. À Guerra de Independência são dedicadas apenas 24 das 628 páginas do livro. Mas Shapira inclui informações sobre a Nakba, a expulsão de palestinos em cidades como Lydda e Ramla, assunto amplamente estudado pelos “novos historiadores”.

O livro está organizado em ordem cronológica. Um de seus méritos é dar visibilidade à sociedade civil israelense, às suas divisões internas e guinadas ideológicas ao longo da história.

A partir da revisão do arcabouço historiográfico acumulado — as fontes utilizadas são, principalmente, secundárias — Shapira traça uma biografia do país até os anos 2000, que não se pretende definitiva — daí o artigo indefinido no subtítulo, menos por modéstia que pela ciência de que a história está sempre em construção — e desconstrução. O objetivo ambicioso faz com que o livro tenha mais características de voo panorâmico que de mergulho profundo, o que o torna uma boa introdução ao assunto. Essa característica é reforçada pelas sugestões de leitura ao final do volume.

Amadurecimento

O distanciamento temporal revela que o aparecimento e o legado dos “novos historiadores”, assim como a contenda com os “velhos historiadores”, eram indícios de um amadurecimento sociológico e historiográfico israelense, a partir de um saudável afastamento em relação a amarras ideológicas de um Estado em construção. Para Anita Shapira, a razão de esse movimento não ter ido ainda mais longe tem a ver com a criação de novas amarras, notadamente o uso recorrente do “paradigma da colonização” para classificar o sionismo como “força obscura” e para estigmatizar e deslegitimar o Estado de Israel num mundo em que o colonialismo já não é aceitável.

A preocupação com representações do Estado de Israel e com movimentos pela sua deslegitimação está no centro de outro livro recém-lançado no Brasil. Em O espírito do judaísmo, da Três Estrelas, o filósofo, escritor, jornalista e cineasta francês Bernard-Henry Lévy tem como alvo o “novo antissemitismo” ou a “nova roupagem para o mais antigo dos ódios”.

Como o autor afirma, ao longo da história sempre foi necessário conferir à irracionalidade do antissemitismo “uma aparência de razão”. Assim, o vírus do antissemitismo sofre mutações de acordo com os valores de cada época e, atualmente, o ódio ao Estado de Israel estaria no centro de sua expressão. Sendo um fenômeno irracional, que utiliza argumentos racionais apenas para se legitimar, adiantaria combatê-lo? Lévy confessa que se vê frágil e tem dúvidas se é possível reverter o quadro ou, ao menos, atrasá-lo, mas junta as forças que lhe restam para se dedicar à tarefa de contrapô-lo.

As respostas que oferece nem sempre são satisfatórias. Ao abordar a questão do antissemitismo, falta perspectiva contextual que o matize, inserindo-o em processos históricos determinados. Afinal, não foi sempre assim, nem em todos os lugares.

Shapira de certa forma tem o intuito de normalizar o povo judeu. O título do livro em hebraico, ‘Um povo como todos os outros’, revela essa dimensão

Ao contrário de Shapira, que de certa forma tem o intuito de normalizar o povo judeu. O título do livro em hebraico, “Um povo como todos os outros”, revela essa dimensão —, Lévy por vezes parece querer torná-lo excepcional. Assim, responde a críticas ao Estado de Israel com base na ideia da “exceção israelense”, isto é, trazendo um apanhado de fatos, alguns idealizados, no intuito de revelar um milagre que se passou naquela terra, em vez de tentar explicá-lo.

Ao mesmo tempo, o autor é bastante perspicaz ao destrinchar os argumentos sobre os quais, hoje, sustenta-se o antissemitismo, num trecho de caráter mais ensaístico, que vale, por si só, a leitura do livro.

Num momento em que caricaturas ideológicas acerca do Estado de Israel saíram das margens e adentraram a esfera pública brasileira, à esquerda e à direita, publicações como estas, traduzidas para o português, são bem-vindas e contribuem para renovar os ares de uma atmosfera por vezes sufocante.

Quem escreveu esse texto

Michel Gherman

É historiador e colaborador do Instituto Brasil-Israel.

Daniel Douek

É cientista social e colaborador do Instituto Brasil-Israel.