História,

Uma viagem rumo ao éthos libanês

Livro reconstitui a história da imigração libanesa no Brasil e a contribuição dos ‘brimos’ para a cultura nacional

19ago2021

Ler Brimos: imigração sírio-libanesa no Brasil e seu caminho até a política foi para mim uma experiência saborosa. Era como se eu tivesse embarcado em uma longa viagem. Que fique claro: não me refiro aqui a viagens comuns — para fora, para lugares distantes e pouco conhecidos. Não me refiro, portanto, a experiências recheadas de orientalismo e de exotismo, que marcam parte da literatura sobre a imigração árabe — ou sírio-libanesa — no Brasil. Ao ler as páginas de Brimos, eu me senti fazendo uma viagem de volta para lugares profundamente conhecidos e caros para mim. Reconheci cheiros, sotaques, narrativas e dilemas. De fato, nas páginas de Bercito me reconheci.

Bercito traça a história dos libaneses no Brasil a partir da análise de testemunhos e conversa com as memórias dos imigrados

Reconheci a casa de minha avó e de meus tios. Reconheci suas histórias e suas questões. Reconheci a saudade do Líbano de lá e o orgulho dos libaneses daqui. Revi primos e histórias que me pareceram muito familiares. Nasci e cresci em um ambiente parecido com aqueles que Bercito traz em Brimos. Sou de uma família libanesa de origem judaica. Desde criança isso parecia natural. Era como se todos tivéssemos crescido escutando árabe misturado com francês em casa. Até determinada idade eu achava que o Líbano era uma espécie de paraíso na Terra, para onde ainda voltaríamos um dia. Somos uma família de libaneses para quem o Líbano e o judaísmo ocupam o mesmo lugar em nossa saga identitária.


 

No prédio em que a minha avó morava, na praça Sáenz Peña, no Rio de Janeiro, havia outros “libaneses” — tanto cristãos como judeus e muçulmanos. De vez em quando a minha avó me levava nas suas visitas às amigas. Falavam muito, falavam em árabe e em francês. Falavam juntas e alto. Alto demais. E tinham certeza de que nós, os netos, não entendíamos nada. Estavam erradas.

Foi ali que entendi que havia “os libaneses e o resto”. Foi nesses lugares que escutei que meu pai era “russo” (termo usado para designar judeus europeus) e que eles eram diferentes de nós. Foi lá que entendi que Beirute, o Líbano e os libaneses eram, “antes da guerra”, um paraíso. Paraíso que fora destruído. Pelo menos era isso que escutava nas conversas de minha avó. Foi lá que virei libanês. Claro que virei libanês também comendo bem, e comendo muito. Virei libanês saboreando histórias deliciosas em “portuárabe”. Mas, efetivamente, virei libanês quando entendi que havia algo especial, um éthos em ser libanês no Rio de Janeiro, em terras brasileiras.

A mim parece que é isso que Diogo Bercito escreve em seu Brimos. Em um exercício delicioso que mistura o talento de escrita de um jornalista com reflexões de um historiador em formação, o autor aponta na imigração libanesa (ou sírio-libanesa, a partir dos arranjos linguísticos brasileiros que deram conta das contradições dos habitantes do antigo Império Otomano) justamente esse éthos, que no Brasil supera questões religiosas e culturais e aponta para uma origem nacional, que parece existir mesmo antes de o país se constituir como tal.

Em um exercício literário-historiográfico, Bercito traça a história do caminho dos imigrantes libaneses no Brasil a partir de camadas distintas e complementares. De um lado, o autor estabelece um potente diálogo com a história política e das elites, feito a partir de pesquisa e análise de testemunhos — tanto de imigrantes libaneses no Brasil quanto de seus parentes no Líbano. De outro, ele conversa com as memórias dos libaneses imigrados, método típico da história oral.

Trajetória coletiva

Bercito não pretendeu, no livro, reconstruir o passado a partir dessas conversas. Ele conhece a limitação da memória e deixa isso claro no seu texto, mas quer construir a trajetória coletiva de imigrantes, da imigração e, por que não dizer, de um país inteiro.

Nesse contexto, o autor nos remete até as origens da imigração libanesa no Brasil. Discute os efeitos na população libanesa causados pelo enfraquecimento e pelo fim do Império Otomano, mostra as esperanças e os desejos de libaneses emigrarem para o Brasil e chega até a discutir os efeitos migratórios da visita do imperador d. Pedro 2º à região onde seria, futuramente, estabelecido o Estado do Líbano.

Os conhecimentos da cultura, da política e da geografia libanesas fazem com que Bercito tenha clareza quando discute os processos políticos e étnicos da formação do Líbano, chegando inclusive a analisar a presença de Antoun Saadeh, libanês fundador do Partido Social Nacionalista Sírio, que chegou a emigrar para o Brasil, onde consolidou suas posições políticas antes de voltar para o Líbano — onde foi executado em 1949. Mas, a meu ver, o ponto fundamental do livro de Bercito talvez seja mesmo a compreensão do éthos libanês na formação política do Brasil. Ele lembra que os parcos estudos sobre a imigração no Brasil quase não levam em consideração o papel dos libaneses. Pesquisas até existem, diz o autor, mas elas não formam uma tradição intelectual.

Nada se compara ao sucesso dos libaneses na política brasileira, onde se tornaram figuras incontornáveis

Acredito que Bercito tenha razão, mas acho que Brimos tem uma função mais importante. O autor usa o caso da imigração libanesa no Brasil para, em um quebra–cabeça interessante e sedutor, reconstruir as origens de uma nova elite no país. Os libaneses (e as libanesas, como ele faz questão de lembrar) surgem no cenário industrial e comercial brasileiro em vários campos: literatura, medicina, indústria, academia e, principalmente, política. Nesse sentido, Bercito propõe que o éthos político do Brasil pós-Vargas tenha se constituído usando, dentre outros, os talentos e a tradição cultural dos imigrantes que aqui chegavam. Nada, porém, se compara ao sucesso deles na política. Rapidamente ganharam espaço na vida pública e se tornaram, para o bem e para o mal, figuras incontornáveis na sociedade brasileira. Tão incontornáveis como esse livro de Diogo Bercito, que teve a sensibilidade de perceber a importância dos libaneses na vida cultural e política do Brasil.

Quem escreveu esse texto

Michel Gherman

É historiador e colaborador do Instituto Brasil-Israel.