Política,

Os vírus morais

Amin Maalouf fala sobre como a lógica capitalista, o cerco às liberdades e o sectarismo radical têm causado o declínio da nossa civilização

01out2020 | Edição #38 out.2020

Está em curso uma engrenagem que ameaça destruir nossas civilizações. Ninguém a iniciou voluntariamente, mas estamos todos encaixados à força em suas roldanas. É o que afirma o escritor franco-libanês Amin Maalouf em O naufrágio das civilizações (Vestígio), ensaio no qual expõe o perturbador paradoxo de um mundo que progride nas ciências, na tecnologia e na economia, mas empaca em quase tudo o que se refere às relações entre diferentes comunidades humanas. 

A edição brasileira chega com um epílogo escrito em julho de 2020 no qual o autor reflete sobre a pandemia de Covid-19, dizendo, por exemplo, que a digitalização, a desmaterialização e a robotização excessivas que vivemos podem ser tanto benéficas quanto calamitosas no longo prazo. Ele apresenta também o conceito do “laissez-faire sanitário”, em que dirigentes renunciam aos esforços para frear a pandemia deixando que o vírus se dissemine para a população adquirir a tal “imunidade de rebanho” — comportamento que, segundo ele, se mostrou politicamente insustentável e comprometeu gravemente a legitimidade moral do liberalismo econômico.

Autor traduzido para mais de cinquenta idiomas e ganhador dos cobiçados prêmios Goncourt e Príncipe das Astúrias, Maalouf fala a seguir da crise identitária que assola o planeta, de como poderíamos ter previsto os ataques terroristas dos anos 2000 e de uma possível derrocada das forças conservadoras em favor de novas revoluções à esquerda. Em tom mais leve, revela, também, sua admiração por Jorge Amado e Milton Hatoum.

Como foi receber a notícia da explosão em Beirute, sua terra natal?
Foi um choque. Embora você se acostume, depois de tantos anos, ao fato de que qualquer coisa pode explodir no Líbano, foi obviamente inesperado. Por horas, observei imagens espantosas tentando entender o que estava acontecendo. E, claro, conversei com amigos e familiares. Um de meus amigos morreu, muitos tiveram ferimentos e quase todos os apartamentos em Beirute sofreram danos graves.

O que achou da pronta visita de Macron à cidade após a tragédia? 
Foi um gesto de solidariedade e compaixão, e o povo ficou emocionado e grato. Eles precisavam sentir que o resto do mundo não estava indiferente à sua situação, e a visita do presidente francês significou exatamente isso.

Qual é o melhor caminho político para o Líbano agora — é hora de o confessionalismo acabar?
O país está em ruínas, precisa ser reparado e até reconstruído, tanto material quanto moralmente. É um trabalho imenso para os libaneses, que precisarão, por muitos anos, de ajuda da comunidade internacional. Penso que o esforço de reconstrução deve ser apoiado e facilitado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas e supervisionado coletivamente por seus cinco membros permanentes — França, Grã-Bretanha, Rússia, China e Estados Unidos. Todos devem fazer sua parte. Uma das principais tarefas será construir um novo sistema democrático que garanta que ninguém seja discriminado por religião, raça ou gênero — mas sem recorrer à repartição arcaica de cotas entre as várias “confissões”.

Como a pandemia tem lançado luz sobre os problemas morais do liberalismo econômico? 
A responsabilidade moral do liberalismo econômico na crise de saúde atual decorre do fato de que a lógica da lucratividade tem sido aplicada de forma rígida e dogmática a todos os setores, incluindo a saúde pública. O capitalismo foi tão triunfante no final da Guerra Fria que se tornou arrogante e insensível. Em todas as esferas da vida, o lucro tornou-se o principal parâmetro, às vezes até o único. Quem defendesse outros valores era considerado antiquado e burocrático.

 Na televisão, por exemplo, qualquer programa que não tem alta audiência é abandonado em nome da competitividade. O papel social do governo é frequentemente considerado um incômodo e reduzido em nome da racionalidade e da eficiência. “Um trabalhador médico não produz riqueza, nem uma cama de hospital desocupada, então por que deveríamos manter tantos deles?”, questionaram os administradores “eficientes”. A pandemia mostrou que tal atitude deve ser revista. Lucro, competitividade e gestão racionalizada são, sem dúvida, importantes, mas não podem ser os únicos critérios. Nossas prioridades precisam ser cuidadosamente reavaliadas.

Como explica a tendência da sociedade moderna à fragmentação e à tribalização, tendo como exemplos recentes o Brexit e o movimento separatista da Catalunha?
A explicação não é a mesma em todos os casos, mesmo nessas duas situações europeias. Um dos fatores que levaram ao Brexit, por exemplo, foi o discurso demagógico facilitado pelo embaçamento da fronteira entre verdade e mentira — a verdade é tão frequentemente manipulada que muitos eleitores ficam perdidos, mesmo em uma velha democracia como a Grã-Bretanha. Mas há também, sem dúvida, um fenômeno mais amplo, que pode ser detectado no mundo inteiro. Um estado de espírito que encoraja todo particularismo e desestimula tudo o que é universal, global ou transnacional.

Qual é o equilíbrio saudável entre o sectarismo radical e o mito da homogeneidade (religiosa, étnica, linguística etc.)? 
Todos deveriam ser encorajados a reconhecer cada faceta de sua identidade em vez de reduzir sua identidade a um único elemento, considerado o único relevante — religião, cor, nacionalidade, etnia. Aqueles que se identificam com apenas um elemento de sua identidade se colocam em um estado de espírito que abre caminho para o conflito, a agressividade e a guerra. Essa é minha crença central sobre essa questão crucial.

Se você aceitar múltiplos elementos de sua identidade, estabelecerá vínculos com muitos outros membros da humanidade. Se você se limitar a apenas um elemento, não apenas estará se mutilando moralmente por ignorar e descartar elementos importantes de sua identidade real, mas pode até estar se transformando em um assassino em potencial.

Você escreveu livros sobre viajantes como Baldassare e Leão, o africano, nos quais também explora sua experiência com o exílio. Sente-se um “homme dépaysé” (homem desenraizado, termo de Tzvetan Todorov)?
Fico feliz que você tenha mencionado Tzvetan, que era um amigo muito querido. Costumávamos passar férias juntos e ter longas conversas, e nossas atitudes em relação ao exílio eram muito semelhantes. Ambos amamos nosso país adotivo, a França, e suas belas língua e literatura, sobre as quais Todorov escreveu páginas maravilhosas. Mas tínhamos um amor profundo pelos nossos países de origem, Bulgária e Líbano, e muito interesse pelo ambiente cultural da Europa oriental e do Levante. E, embora às vezes nos sentíssemos dépaysés e désorientés, isso não foi uma tragédia, mas uma oportunidade de observar o mundo à nossa volta de forma pessoal, não convencional e ligeiramente distorcida.

Você sabia que o Brasil tem uma das maiores comunidades árabes do mundo fora do Oriente Médio?
Durante o longo declínio do Império Otomano, muitas pessoas do Levante optaram por emigrar. Dependendo da data em que partiram, eram chamados de turcos, árabes, sírios ou “libaneses”. Foram a muitas partes do mundo, da África ocidental à Austrália e da Terra Nova à Patagônia. Meus próprios parentes foram principalmente para a Cuba e os Estados Unidos. Mas, para os libaneses como um todo, o Brasil sempre foi o destino preferido, um país onde pudessem construir uma nova vida e ter uma nova pátria, com a qual pudessem se relacionar verdadeiramente e na qual pudessem prosperar livremente, longe das realidades sociais e políticas deprimentes do Oriente Médio.

Você coloca o mundo árabe no centro dos problemas mais graves da sociedade moderna. Por que não previmos que questões alarmantes, como a crise identitária, não ficariam restritas ao Oriente Médio?
Nações, como indivíduos, tendem a se concentrar em suas prioridades imediatas e deixar de lado tudo o que é de longo prazo. Quando no final dos anos 1970 o presidente dos Estados Unidos Jimmy Carter decidiu financiar os movimentos jihadistas que lutavam contra o exército soviético no Afeganistão, parecia ser a decisão certa. Naquela época, a União Soviética representava uma ameaça para os Estados Unidos, enquanto os militantes islâmicos eram pequenos grupos de homens mal equipados, mal organizados e que pareciam ser estritamente controlados por aliados norte-americanos.

 Poucos imaginavam que, vinte anos depois, o Afeganistão seria uma plataforma de lançamento para o mais violento ataque terrorista aos Estados Unidos. Em retrospecto, parece lógico e até óbvio. Mas os tomadores de decisão precisam travar as batalhas do presente e deixar de lado as do futuro. Um observador, sentado à margem, pode perceber sinais preocupantes que as pessoas engajadas na ação política preferem ignorar, mesmo quando os veem.

Você diz que o extermínio de 500 mil pessoas, sobretudo intelectuais, na Indonésia em 1966 nunca gerou indignação mundial. Mesmo na era da hiperconectividade, desastres só parecem ganhar atenção global se ocorrem no Ocidente. Por quê?
Se o massacre da Indonésia não gerou indignação mundial, não foi apenas porque ocorreu na Ásia, mas porque foi contra a narrativa vigente, segundo a qual havia “gente má” que cometeu genocídio e “gente boa” que nunca faria nada tão horrível. Esse crime não foi apenas um massacre de seres humanos, mas também impediu a nação muçulmana mais populosa da Terra de seguir o caminho do secularismo e, com efeito, resultou em um empurrão para o fundamentalismo religioso.

Você vê o fracasso dos Estados Unidos no papel de tutor de poder no pós-Guerra Fria como definitivo?
Quando a Guerra Fria terminou, os Estados Unidos se tornaram a única superpotência, e todos aceitaram sua preeminência. Nos primeiros dez anos do novo “pós-guerra”, de 1989 a 1999, poderiam ter construído uma nova ordem mundial. Se os líderes tivessem sido perspicazes, generosos e criativos, teriam colocado seu país no assento de direção global por muito tempo. Infelizmente, eles eram míopes, mesquinhos e sem imaginação. Não acho que o país já tenha perdido sua preeminência, mas, de agora em diante, terá que lutar muito para preservá-la.

Seu livro quase não menciona a América Latina. Acha improvável que uma nova potência surja daqui?
Se eu o tivesse escrito nos anos 1960 ou 70, a América Latina estaria muito mais presente. Na faculdade, a maioria dos meus debates costumava incluir referências a eventos, personalidades e comportamentos políticos vindos de sua parte do mundo. Mas a América Latina de hoje não é o campo de batalha que costumava ser. Seus conflitos religiosos e étnicos não são tão violentos e sangrentos como os de outras partes do mundo. O que certamente é bom para seus povos, mesmo que tenham sua cota de problemas difíceis de resolver. Sobre as potências emergentes que podem desempenhar papel importante no cenário global nos próximos anos, algumas sem dúvida serão latino-americanas, mas o lugar de onde se pode esperar o mais sério desafio à supremacia das potências mundiais hoje está no Leste asiático.

Você alude a 1979 (marcado pelas ondas conservadoras do aiatolá Khomeini no Irã e de Margaret Thatcher na Inglaterra) como o ano em que o conservadorismo passou a ser visto como revolucionário. Com a esquerda enfraquecida e a extrema direita em ascensão, é possível prever uma nova reversão de papéis?
Essa pode ser a principal consequência da crise global de 2020. Digo “pode ser” porque é muito cedo ainda. Mas me parece que o ciclo histórico iniciado há quarenta anos, durante o qual a noção de revolução foi apreendida pelos conservadores das mãos dos progressistas, pode estar chegando ao fim. A ideia dominante da revolução conservadora, segundo a qual o papel das autoridades públicas deve ser constantemente reduzido, perdeu parte de sua legitimidade durante a pandemia.

O ciclo histórico durante o qual a noção de revolução foi apreendida pelos conservadores das mãos dos progressistas pode estar chegando ao fim

Você apresenta um possível cenário em que a robotização prospera e bilhões de pessoas ficam desempregadas e marginalizadas. A renda básica seria uma solução?
Certamente seria desejável, mas não tenho certeza de que isso seria sustentável no longo prazo. Se uma parte significativa da humanidade perder seu papel na produção de bens e serviços, não sei se os ricos e poderosos continuarão a alimentar, vestir e apoiar bilhões de pessoas “ociosas”. Não quero imaginar os cenários cataclísmicos que poderiam resultar de tal situação, mas pode-se facilmente adivinhar que não teríamos um final feliz.

O cerco às liberdades por meio da vigilância excessiva (ou orwelliana, como você bem coloca) nos choca tanto quanto deveria? Como escolher entre liberdade e segurança?
O controle e a vigilância, mesmo quando percebidos como excessivos, não nos chocam mais. Estamos nos acostumando a ter todos os nossos movimentos monitorados, as nossas contas examinadas minuciosamente, as nossas conversas ouvidas. Isso foi uma consequência do terrorismo, do nosso temor legítimo dele e da nossa luta igualmente legítima contra ele. Esse “legado” da era do terror provavelmente permanecerá conosco para sempre. Ele já foi reforçado neste ano pelo nosso medo da pandemia, que demonstrou que mesmo nossos gestos mais mundanos podem ser perigosos e, portanto, devem ser cuidadosamente observados. Além disso, é de esperar que surjam outros medos nos próximos anos e décadas, que podem estar ligados às mudanças climáticas e demográficas ou a novos tipos de guerra não convencional.

O Brasil parece estar vivendo o auge de um marketing enganoso que convence os pobres a apoiarem reformas que beneficiem os ricos, com nossa própria versão da “welfare queen” (“rainha do bem-estar”, termo depreciativo cunhado pelo presidente americano Ronald Reagan). Como desmistificar noções tão enraizadas na cultura de uma nação?
Meu conhecimento da vida política e intelectual do Brasil é insuficiente, mas a percepção do bem-estar como um presente generoso para pessoas indignas é um tema recorrente que tem sido e continuará sendo parte importante da doutrina do laissez-faire. O que é profundamente intrigante é o fato de que defensores da “revolução conservadora”, como Reagan, conseguiram convencer os trabalhadores de seu país de que a previdência, que deveria ajudá-los, era dirigida contra eles, porque favorece aqueles que não trabalham e que usufruem de um sistema de ajuda extremamente generoso. Essa propaganda inteligente se provou muito eficiente politicamente e mudou as regras do jogo ao fazer os pobres apoiarem políticas que obviamente favorecem os ricos.

Que aspectos da cultura brasileira você conhece?
Sempre me interessei pela literatura brasileira e tive a oportunidade de conhecer personalidades importantes. Durante uma de minhas viagens ao seu país, fui com minha esposa à casa de Zélia e Jorge Amado. Eram pessoas maravilhosas e foi um momento inesquecível. Mais recentemente, tive o prazer de conhecer Milton Hatoum durante sua presença no Salão do Livro de Paris. Ele é um grande escritor do nosso tempo e tivemos uma conversa pública maravilhosa. Em seguida, almoçamos juntos e conversamos longamente sobre a família dele e a minha, que vieram do Líbano. Descobrimos muito em comum e prometemos nos encontrar novamente e continuar nossa conversa, seja na França, no Líbano ou no Brasil. (Com colaboração de Paula Carvalho)

Quem escreveu esse texto

Marília Kodic

Jornalista e tradutora, é co-autora de Moda ilustrada (Luste).

Matéria publicada na edição impressa #38 out.2020 em setembro de 2020.