Política,

Filhos impródigos

Em novo ensaio, escritor libanês questiona como os herdeiros das maiores civilizações se transformaram em grupos raivosos e vingativos

01out2020 | Edição #38 out.2020

O naufrágio das civilizações, novo ensaio de Amin Maalouf, mantém um diálogo com o livro As identidades assassinas, de 1998, mas focaliza a reflexão à luz dos mais relevantes acontecimentos políticos do século passado, decisivos para a compreensão do atual conservadorismo. 

No livro anterior, o escritor e jornalista libanês de expressão francesa assinala que a identidade não se compartimenta nem se delimita em margens fechadas; ela é “construída por todos os elementos que a moldaram, segundo uma dosagem particular que nunca é a mesma de pessoa para pessoa”. Maalouf enfatiza que a língua materna, essencial à construção da identidade, não deve ser dissociada de um pertencimento à humanidade. Daí a importância de recusar rótulos e classificações, e privilegiar trocas e diálogos culturais que geram reciprocidade, abertura e respeito entre sociedades distintas. 

Nesse novo ensaio — vencedor do Prix Aujourd’hui, que reconhece trabalhos políticos, filosóficos ou históricos publicados na França que retratam o período contemporâneo —, Maalouf entrelaça sua reflexão com as memórias de seus pais e avós: a família materna viveu no Egito, a paterna, no Líbano; ambas numa época em que o Cairo era metrópole da região, e Beirute, a capital mais cosmopolita e hospitaleira do Oriente Médio. As lembranças da infância e da juventude do autor, além de suas viagens como repórter por países da África, da Ásia e do Oriente Médio, foram também importantes para refletir sobre o nosso mundo em decomposição. 

Maalouf analisa vários marcos históricos e políticos que contribuíram, de um modo talvez decisivo, para o naufrágio das civilizações. Alguns desses marcos têm um forte vínculo com o colonialismo europeu e, segundo o autor, poderiam ter sido evitados. Por exemplo, a crise do Suez, em 1952, quando soldados britânicos mataram 52 egípcios, um massacre ordenado ou autorizado pelo primeiro-ministro britânico Winston Churchill. À época, o Egito era governado por Nahhas Pasha, “um patriota moderado, um patrício ocidentalizado, um modernista audacioso”. 

A insurgência do povo egípcio contra a matança levou à deposição de Pasha e “favoreceu a emergência do nacionalismo árabe”, cujo líder inconteste foi o militar Gamal Abdel Nasser. 

Na década de 1950, Churchill foi também diretamente responsável pela deposição do primeiro-ministro iraniano Mohammed Mossadegh, “um democrata cujo único crime fora o de reivindicar para o seu povo uma parte maior nas receitas petrolíferas”, até então controlada por uma empresa britânica. O golpe de Estado patrocinado pelas agências de inteligência britânica e norte-americana (e admitido formalmente em 2013 pelo governo dos Estados Unidos) depôs um político secular e democrata, que tentava modernizar seu país.

O autor pergunta por que fraturas identitárias, relacionadas ao sistema predador de vários colonialismos, não puderam ser evitadas

Maalouf refere-se a outro grande erro político, dessa vez da política expansionista de todos os governos israelenses após a Guerra dos Seis Dias, em junho de 1967, quando os exércitos da Síria, do Egito e da Jordânia foram derrotados. Depois dessa guerra, Israel ocupou militarmente Jerusalém Oriental, a Cisjordânia e as colinas de Golã (Síria) e construiu centenas de colônias judaicas em terras palestinas ocupadas. Esses “assentamentos”, considerados ilegais pela ONU e pela quase totalidade da comunidade internacional, inviabilizam qualquer perspectiva de paz duradoura na região.

Fraturas ideológicas

Na passagem da década de 1970 à de 1980, as eleições de Margaret Thatcher, na Inglaterra, e de Ronald Reagan, nos Estados Unidos, somadas à revolução iraniana, seriam outros grandes acontecimentos que se desdobrariam em ondas conservadoras nas esferas econômica e religiosa. Mas no mundo moderno essas esferas são interligadas: as lideranças fundamentalistas das três religiões monoteístas — o islamismo, o cristianismo e o judaísmo — têm laços estreitos com o poder econômico. Em alguns países, fundaram Estados religiosos; em outros, tentam solapar a laicidade do Estado a fim de implantar um governo teocrático. Maalouf dá vários exemplos do triunfo do sectarismo ou fundamentalismo religioso no Oriente Médio, onde, num passado nem tão distante, o Líbano foi capaz de reconhecer e promover a coexistência de todas as comunidades religiosas.   

O autor pergunta como “os herdeiros das maiores civilizações e os portadores dos sonhos mais universais se metamorfoseiam em tribos raivosas e vingativas”. Por que essas fraturas identitárias e ideológicas — sem dúvida relacionadas com o sistema predador e divisionista dos vários colonialismos — não foram ou não puderam ser evitadas?

Com perplexidade, com melancolia e sem disfarçar uma nostalgia do tempo de sua infância — um paraíso perdido para sempre —, Maalouf sonda várias respostas a essas perguntas. 

No Oriente Médio prevalecem os sectarismos religiosos e regimes totalitários, mas é latente a erosão da democracia em alguns países ocidentais, como os Estados Unidos, a Inglaterra e a Itália, governados por populistas e nacionalistas de uma direita ultraliberal. Nesses e em outros países instaurou-se o reino do individualismo extremado, em que cada pessoa age de acordo com seus próprios interesses, e o Estado se reduz a um mero coadjuvante na organização social e nas políticas públicas. Um nacionalismo patrioteiro e autoritário que tem gerado ondas violentas de xenofobia e racismo. Tudo isso é agravado pelo negacionismo das ciências, do aquecimento climático e das catástrofes ambientais, movido pela indústria criminosa de fake news e congêneres. 

Para o autor de livros como Os desorientados (Bertrand) e O mundo em desajuste (Difel), “o desaparecimento da bússola moral que representa o princípio de igualdade contribui, em cada um de nossos países, e para a humanidade inteira, à desagregação do tecido social”. O naufrágio das civilizações pode ser lido também como uma metáfora da grande tragédia do nosso tempo: homens, mulheres e crianças que, em busca da sobrevivência na Europa, morrem afogados nas águas do Mediterrâneo, ou são condenados a uma vida indigna em campos de refugiados. 

Mandela

Não por acaso, Maalouf elogia Nelson Mandela, sem dúvida o maior líder político do século passado. Mandela combateu com coragem, firmeza e paciência o racismo e o regime de apartheid na África do Sul. Até onde pôde, evitou confrontos com as forças repressoras, sabendo que seria uma luta desigual. Não estimulou revanchismos, mas exigiu reparação histórica (material e simbólica) a seu povo escravizado, explorado e humilhado pelos colonizadores europeus. Além disso, prestou solidariedade a outros povos oprimidos e humilhados, e não apenas da África. 

Um nacionalismo patrioteiro e autoritário tem gerado ondas violentas de xenofobia e racismo, o que é agravado pela indústria criminosa de ‘fake news’

Como recuperar, na política e na vida social, valores éticos e morais, hoje totalmente desprezados, quando não escarnecidos pelos donos do poder e seu séquito de celerados? Amin Maalouf sugere um esforço coletivo no sentido de recuperar um humanismo solidário, universal, que se contraponha à tendência de fatiamento da sociedade em grupos étnicos e religiosos. Esta sugestão, formulada como pergunta, é um desejo ou uma utopia, mas pede uma reflexão no tempo presente:

Não seria interessante, realmente, ver emergir, face a todas as irrupções identitárias, um vasto movimento capaz de operar uma mobilização maciça de nossos contemporâneos em torno de valores universais, e para além de todas as fronteiras políticas, étnicas e culturais?

Quem escreveu esse texto

Milton Hatoum

Escritor e tradutor, é autor de A noite da espera (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #38 out.2020 em setembro de 2020.