Educação,

O dia a dia dos Barracos-escola

Projeto de organização social em duas favelas da zona oeste de São Paulo é apresentado no segundo volume dos Cadernos Acaia

28abr2023

O trajeto entre o Ateliescola, escola experimental do Instituto Acaia, organização social que promove educação e cultura para redução das desigualdades sociais, e a Favela do Nove é curto, feito a pé. É preciso seguir uma rua tranquila, de sobrados com jardins, na Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo. A paisagem muda aos poucos, das casas ajardinadas aos muros de antigos galpões industriais, até a avenida Dr. Gastão Vidigal, onde fica o Ceagesp, maior central de abastecimento alimentício da América Latina. Depois de cruzar o tráfego intenso de carros e caminhões das duas pistas largas da avenida, as ruas se estreitam. Entre a caminhonete com o baú pintado com o rosto do Coringa (antagonista do Batman na caracterização de Joaquin Phoenix para o filme de 2019) e o Bar do Bidu, fica a entrada para a Favela do Nove. Seguindo por uma de suas vielas, onde mal entram carros e a luz do sol, está o Barraco-escola.

Se o trajeto entre o instituto da rua razoavelmente arborizada e os becos da favela é curto, a construção do barraco pintado em cores vivas, onde crianças, adolescentes e suas mães se encontram à tarde, é longa. A história desse projeto é o tema de Conexões: Barraco-escola, o segundo número dos Cadernos Acaia, publicados pela Letra da Cidade. O Instituto Acaia oferece oficinas de artes e marcenaria para moradores das favelas da Linha e do Nove e de um conjunto habitacional da região desde 1997. Também é responsável por uma escola gratuita de educação infantil e ensino fundamental aberta em 2017. 

Os Barracos-escola surgiram a partir de uma tentativa de aproximação com os residentes desses territórios. Elisa Bracher e Ana Cristina Cintra, diretoras do Acaia, começaram a visitar as comunidades, conhecer melhor as famílias das crianças que frequentavam a escola e ganhar a confiança dos moradores — incluindo o comando do tráfico de drogas, que, depois de descobrir o que a equipe do instituto estava fazendo por ali, autorizou a presença dos visitantes, como ficamos sabendo no livro sobre o projeto.

Para as crianças, as práticas se ancoram em jogos, brincadeiras e faz de conta. E muitos livros

Para surpresa das diretoras, pouco depois, o comando do tráfico no Nove mandou avisar que aprovava e permitia a presença da equipe na comunidade, não sem acrescentar uma advertência sobre as regras do jogo. “Teve um dia que um morador chegou aqui e falou: ‘Olha, eles pesquisaram tudo sobre vocês, eles sabem tudo da vida de vocês, e vocês podem entrar na favela. Mas, se forem sequestradas, têm que avisar eles antes de avisar a polícia’”, conta Bracher. Mais tarde, para garantir a segurança prometida pelo “movimento”, a equipe dos Barracos-escola passaria a usar jalecos amarelos com o nome do instituto.

Houve também uma negociação com os chefes do tráfico para a compra de um barraco próprio, em 2006, onde logo começaram as oficinas de xilografia, desenho, contação de histórias e bordado para mães. Na época, ainda não havia bancos e mesa no barraco hoje pintado em cores vivas, em contraste com o cimento ou os tijolos aparentes das outras moradias da região. Antes, o local era ocupado por uma caixaria (construção provisória de madeira para dar sustentação a uma estrutura de concreto) e um lixão. A equipe do Acaia perguntou à dona Maria, da caixaria, se poderia limpar aquela área. A limpeza foi feita e se abriu uma praça, que foi o espaço de trabalho até 2010. “A Andressa começou a ir para a favela com um carrinho, estendia o pano no chão, as crianças vinham, as mães bordavam. Os Barracos começaram com esse pano no chão, essa limpeza da praça”, escreve Elisa Bracher na apresentação de Conexões: Barraco-escola.

Quem não sabe ler pede ajuda

As atividades na Favela do Nove começam às 14h. São crianças, bebês trazidos pelas irmãs adolescentes e pré-adolescentes. Alguns recém-chegados, outros, frequentadores antigos, como Manu, hoje com nove anos, que chegou ao Barraco-escola engatinhando e usando fraldas.

Mães, avôs e tios também participam. Há atividades para os adultos, como confecção de bijuteria e bordado — esse é um dos capítulos do livro, entre outras razões, pela importância na criação de vínculos entre a equipe “de fora” e as moradoras da favela.

Sentadas ao redor da mesa, as crianças escolhiam os livros ali espalhados, cada um com um recadinho

Para as crianças, as práticas se ancoram em jogos, brincadeiras e faz de conta. E muitos livros. “Como apresentar a literatura? Não precisa ser pura, seca, intratável”, diz a educadora Luciana Nascimento Sunsum, coordenadora dos Barracos-escola.

O “esquenta” costuma ser contação de histórias. No dia em que a Quatro Cinco Um acompanhou as atividades na Favela do Nove, foi um desafio. Sentadas ao redor da mesa, as crianças escolhiam os livros ali espalhados, cada um com um recadinho num pedaço de papel colocado dentro: encontrar uma imagem de afeto, uma imagem romântica, cinco palavras que costuma ouvir.

“Quem não sabe ler pede ajuda. E a Maria Eduarda brinca de massinha”, orienta Sunsum. Maria Eduarda, a mais nova participante naquele dia, está sentada no colo da irmã adolescente.

Painel vivo

A oferta de livros infantojuvenis é variada, com ênfase em literatura afrodiaspórica, literatura indígena e demais narrativas que se colocam do outro lado do espelho da princesa branca europeia. O racismo é um tema recorrente no Barraco-escola e a leitura, uma ferramenta para combatê-lo. No caderno Conexões, são apresentados alguns exemplos, como uma mediação de leitura sobre histórias de princesa: qual a cor dela? E por quê?

Em 2022, foi lido Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, que resultou em um sarau sobre a vida e obra da escritora. A dinâmica dos saraus, realizados semestralmente, também é descrita na publicação. Assim como outras atividades, estratégias (de roda de histórias aos mutirões de beleza e de limpeza), as rotinas e os desafios enfrentados pela comunidade e pelos educadores — a violência e o racismo em particular. Entremeado com depoimentos da equipe e da comunidade das duas favelas e poemas dos frequentadores do Barraco-escola, o caderno apresenta um painel muito vivo, repleto de reflexões e questionamentos, tanto sobre o projeto como sobre a realidade dessa população.


Jogos e brincadeiras na viela diante do Barraco-escola da Favela do Nove [Fabricio Remiggio/Instituto Acaia]

O fim da tarde e uma tempestade de verão se aproximam. É preciso correr com a arrumação e torcer para a chuva não causar muito estrago, como os residentes tantas vezes já viram. E atender mães, filhos e moradores que vêm buscar o “almojanta” oferecido diariamente. Algumas mulheres também vêm à procura de sacos de lixo, distribuídos no Barraco-escola. A chuva espera: dá tempo de a equipe varrer o barraco e arrumar materiais trazidos da sede do instituto em um carrinho para levar de volta.

Um pouco antes de a equipe chegar ao Bar do Bidu, cai o aguaceiro. É uma quinta-feira de março. No dia seguinte, e na semana, no mês, no ano seguintes, parte dessa história (contada brevemente aqui e detalhada no livro) se repetirá e novas serão construídas e contadas. Como escreve Sunsum em Conexões

Assim vai sendo trançado nosso trabalho: uma costura aos olhos de dentro, ancorados nos olhos d’água de Conceição Evaristo, com os ensinamentos sobre comunidade de bell hooks, as vivências e reflexões sobre a favela de Adriele Oliveira, e com os sonhos de Carolina Maria de Jesus. Uma soma que abre janelas para projetar sonhos e discutir perspectivas de futuro.

Quem escreveu esse texto

Iara Biderman

Jornalista, , editora da Quatro Cinco Um, está lançando Tantra e a arte de cortar cebolas (34)