Literatura brasileira, Literatura infantojuvenil,

Um encontro com a magia de Carolina

Dois livros mostram a experiência ancestral e revolucionária de encontrar, pela primeira vez, os diários de Carolina Maria de Jesus

01out2022

    
Ilustração de Hannah23 [Divulgação]

Há quem acredite que a obra de Carolina Maria de Jesus não é para crianças. Há aqueles que argumentam que os escritos dela são muito duros para a consciência dos pequenos, que precisa ser construída a partir de uma experiência literária que possibilite a fantasia e o lúdico. A verdade é que as escrevivências de Bitita são para todos os leitores. O segredo é ter sensibilidade para as ler.

  

Procura-se Carolina, de Otávio Júnior, e Carolayne, Carolina e as histórias do diário da menina, de Simone Mota, provam isso. Por meio de histórias que narram o belo e transformador encontro entre a autora e duas meninas, Carolayne e Carolina, os livros reforçam a universalidade, a acessibilidade e a magia presente nos escritos carolineanos. Pelo olhar das crianças, vemos coisas que os olhares engessados dos adultos não conseguem ver. Sob a ótica infantil, Quarto de despejo não é um livro sobre fome, mas sobre a capacidade de realizar sonhos.

Em Procura-se Carolina, a protagonista é uma menina que não tem muito interesse pela leitura até deparar-se com Carolina de Jesus, ou melhor, encontrar uma caixa cheia de livros de uma autora que compartilhava do mesmo nome que ela. Já em Carolayne, Carolina e as histórias do diário da menina, temos Carolayne, uma assídua frequentadora da biblioteca, que, tomada pelo desejo de possuir um diário, acaba acessando Quarto de despejo, “um livro de adulto”.

Experiência ancestral

O que une as duas obras e as tornam leituras necessárias é a experiência ancestral e revolucionária que as personagens têm ao permitirem se achegar a Carolina de Jesus. É ancestral porque, à medida que se aproximam da autora, percebem que, mesmo sem nunca terem ouvido falar dela, ela era familiar. Dividiam as mesmas memórias de meninas-mulheres negras: “Nunca pensei que pudesse encontrar uma escritora com meu nome, com a cor de minha pele, com o cabelo igualzinho ao meu e que viveu em uma favela”.

É revolucionária porque, movidas pela curiosidade infantil, as meninas ignoram as recomendações dos mais velhos, que diziam que a autora era imprópria para crianças, e saem em busca por conhecer essa mulher. Assim, presenciam grandes metamorfoses em suas comunidades, como adultos que conseguem aprender a ler a partir do diário de Carolina de Jesus, meninas negras que desejam ocupar o lugar da escrita, iniciando um diário, como a autora, ou moradores que se unem para procurar uma caixa com os livros da autora que se perde em um certo momento da narrativa. “Nunca imaginei que esse livro diário ia fazer tanta coisa acontecer em tão pouco tempo.”

O ponto de vista infantil suscita em cada um de nós olhares novos para a vida de Carolina

Ler essas histórias foi um movimento de profundo afeto, identificação e cura. As sensíveis ilustrações me possibilitaram sarar feridas causadas pelas vivências de uma menina preta leitora, que ansiava por se reconhecer nas protagonistas dos livros infantis a que tinha acesso, o que era um movimento sem sucesso. Os enredos me permitiram reviver o meu encontro com a escrevivência de Carolina, que, embora não tenha sido na infância, como o das personagens dos livros, causou semelhante revolução naquela jovem universitária que buscava encontrar e ocupar o seu lugar no mundo. O ponto de vista infantil que os livros trazem para os diários de Carolina suscitam em cada um de nós, leitores — principalmente os adultos —, olhares novos para a vida da escritora, que tantas vezes nos foi apresentada sob o viés da carência e do sofrimento, mas que agora é retratada como uma mulher que cantava, compunha, amava o Carnaval…

Assim, saúdo e agradeço as crianças, que nos tiram das visões viciadas e, com suas meninices, nos dão a graça de olhar novos caminhos e construir novas histórias.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Amanda Crispim Ferreira

É doutora em letras e professora adjunta da Unespar e Pitágoras-Unopar