A Feira do Livro, Literatura,

Mia para os íntimos

O escritor moçambicano Mia Couto fala sobre a necessidade do esquecimento e o papel da literatura na conciliação com o passado

25maio2022

Sua vida de escritor começou com uma espécie de violência. Seu apelido vem da infância entre os gatos. Suas narrativas contam histórias passadas, mesmo se considerando desmemoriado. É assim que Antônio Emílio Leite Couto, mais conhecido como Mia Couto, descreve a publicação de seu primeiro poema, explica a origem do seu apelido e traduz esquecimento e construção de memórias, temas que atravessam obras como o recém-lançado O mapeador de ausências (Companhia das Letras).


O mapeador de ausências, de Mia Couto

Seu livro de estreia foi lançado em 1983, Raiz de orvalho; o romance que o consagrou internacionalmente, Terra sonâmbula, há trinta anos; e seguiram-se contos, crônicas e prêmios, incluindo o Camões, em 2013, e o Neustadt, em 2014. Além de escritor e biólogo, Mia Couto é ativo no florescimento do livro em Moçambique, difusor da literatura moçambicana no mundo e será um dos convidados d’A Feira do Livro, em São Paulo. Em entrevista à Quatro Cinco Um, o escritor fala dos papéis sociais que a literatura cumpre e compartilha lembranças e esquecimentos de sua própria vida.

Você é um dos convidados d’A Feira do Livro. Como vê a importância do livro na praça pública?
Estou muito marcado pela minha própria pertença a Moçambique, em que o livro tem uma presença muito tênue na praça pública e não pública também. O livro faz ainda uma espécie de primeira guerrilha para existir. Este é um país que teve uma independência muito recente, e metade do tempo como país independente foi gasto em guerras que destruíram a capacidade básica de produzir aquilo que é essencial. O livro é essencial, mas foi sempre posto para um segundo plano. Agora, sim, está-se a construir bibliotecas, há já algumas poucas escolas apetrechadas com livros. Basicamente, o livro em Moçambique é o livro que circula nas escolas. Há talvez em todo o país cinco livrarias, meia dúzia. E elas existem em apenas duas, três cidades. Então, em Moçambique, há um grande esforço para fazer com que o livro circule por via de feiras, eventos e festivais. É uma das grandes portas de entrada do livro no país.

Diante desse cenário restrito de circulação em Moçambique, como é o cenário da produção literária?
É uma situação quase paradoxal. Publicamos poucos livros, mas há muita gente que produz, que entrega às editoras e às casas de cultura manuscritos muito bons. Os jovens que estão a ser publicados hoje em Moçambique são muito promissores. E isso tudo após um período longo em que não havia senão alguns nomes que estavam consagrados no território moçambicano. Até havia um debate se a literatura teria morrido em Moçambique; um debate falso, mas que traduzia a ideia de um deserto aparente. Agora há muitos jovens trazendo propostas muito diversas, com estilos diferentes, e já não só centrados na poesia. A produção moçambicana gravitava muito à volta dessa herança literária com que os grande poetas moçambicanos marcaram o país.

‘Em Moçambique, há um esforço para fazer com que o livro circule por via de feiras, eventos e festivais’

Você e seus irmãos têm uma fundação para promover a literatura entre jovens. Como surgiu o projeto?
A fundação tem o nome do meu pai, Fernando Leite Couto. Ele era um poeta e dedicou uma grande parte de seu tempo a apoiar jovens escritores. Fazia uma espécie de oficina em casa, e ali trabalhava com esses jovens tanto na cidade onde nasci, na Beira, como depois em Maputo, onde ele foi morar. Quando ele morreu, há nove anos, percebemos que a dimensão desse trabalho era muito maior do que nós pensávamos. Recebemos cartas de centenas de jovens e alimentamos a ideia de que é preciso dar continuidade a esse trabalho. A instituição vem trabalhando há seis anos, não só na área literária, mas na pintura, na escultura, no teatro, na música. E temos um prêmio anual que consagra aquilo que são os primeiros livros dos jovens, e de não jovens também, moçambicanos. Esse prêmio tem crescido muito, há grande adesão, e o que nos satisfaz é que já não são só jovens da capital que estão concorrendo e ganhando. Nos últimos casos foram jovens de outras províncias.

Há nomes da literatura moçambicana atual que você destacaria para os leitores brasileiros?
Há muitos, tenho quase medo de os enumerar porque não sou uma pessoa de grande memória e vou me esquecer de alguns. Há aqueles que já são publicados no Brasil, como Paulina Chiziane, Ungulani Ba Ka Khosa, João Paulo Constantino Borges Coelho, Eduardo White. Quero saudar o trabalho da editora Kapulana, que é notável e tem ajudado muito a romper a distância e o desconhecimento daquilo que é moçambicano. Mas a maior parte dos jovens a que estou a me referir como portadores de uma nova tendência ainda não está publicada no Brasil.

Você fala que quase não há como não ser escritor em Moçambique. Por que diz isso?
Esta é uma nação em que a oralidade está absolutamente viva. A oralidade é de todos nós, mas aqui ela é um sistema de pensamento, de sentimento do mundo que é absolutamente dominante. As pessoas pensam contando histórias. Isso é de tal maneira presente que faz com que os escritores sejam parados para darmos um autógrafo, tirarmos uma fotografia, mas na maior parte das vezes é para transmitir recados. Isto é, sou visto como um mensageiro. O escritor habita esse território que ainda é muito de elite e que tem acesso aos centros de poder. As pessoas dão recados: “Olha, fale sobre isso”, “Diga-lhe”. Por aqui, as pessoas rapidamente falam de coisas que em uma perspectiva mais europeia seriam completamente do círculo íntimo. Aqui, de repente, você vai à rua e regressa à casa cheio de histórias. Portanto, difícil no Moçambique é não ser escritor.

Você nasceu em Beira, filho de portugueses, em 1956. Como é a sua relação com cada cultura?
Eu sinto-me moçambicano completamente, mas faço parte de uma elite que do ponto de vista cultural é muito crioula. Não é o facto de eu ser filho de portugueses que me marca essa característica, tem muita gente que é filho de moçambicanos e está no mesmo lugar que eu: um lugar de trocas, cosmopolita, em que mesmo sendo negros já tiveram a língua portuguesa como língua materna. Aqui essas culturas não são uma coisa que está em uma geografia particular. Essas culturas de raiz bantu estão vivas. Há em Moçambique mais de 25 línguas que se falam cotidianamente em todo lugar. São um bocado regionalizadas, mas são faladas.

‘Estamos construindo uma identidade, múltipla, mas que nos pode dizer que somos moçambicanos’

A maior parte dos moçambicanos tem o português como segunda língua. Portanto, isso obriga a um trânsito, um intercâmbio cotidiano de gente que, mesmo que seja da mesma raça, da mesma região, percebe que há de estar em permanente viagem para poder trocar aquilo que é a cultura dos outros, que também são moçambicanos. Ainda é flagrante que estamos construindo uma espécie de identidade, múltipla, mas que nos pode dizer que somos moçambicanos.

Você se lembra de alguma história que marcou a sua infância?
Lembro-me, de maneira um pouco nebulosa, do facto dos meus pais, sempre quando nos convidavam para dar uma volta… Nós não percebíamos, mas ali já havia uma lição quase silenciosa. Os meus pais, para andarem cem metros, demoravam vinte minutos. Não que andassem devagar, mas eles paravam junto de qualquer pessoa, porque qualquer pessoa merecia que eles parassem e dessem uma palavra. E estamos a falar de uma sociedade que era colonial, estratificada, com um alto nível de racismo. Para mim nunca foi estranho, porque eu nasci assim, mas eu estranhava por que era que os outros não faziam. Por que, por exemplo, para os brancos da minha cidade os negros eram invisíveis, e quando eram visíveis era para ser objeto de alguma violência?

‘Para os meus pais, o sentimento não era uma coisa desvalorizada, mas um modo de estar no mundo’

Sua primeira publicação foi um poema, ainda jovem, para o seu pai?
Sim, talvez tenha sido um dos primeiros poemas que escrevi. Escrevi um poema para o meu pai, e esse poema foi até objeto de uma zanga minha. Meu pai, sem pedir, publicou isso em um jornal. Obviamente, ele ficou muito vaidoso que o filho fizesse um poema que lhe era dedicado. E aquilo para mim foi uma espécie de violência. Ele não pediu, aí, de repente, eu fiquei envergonhadíssimo. Eu fiquei com uma raiva enorme, disse ao meu pai que nunca mais o perdoaria, mas, na verdade, acho que ele fez muito bem. Se não fosse essa violência, acho que eu não seria escritor.

Neste ano, faz trinta anos da publicação de Terra sonâmbula. Qual a sua relação com esse romance?
Terra sonâmbula me marcou muito. Foi o único livro que sofri ao escrever, porque tinha ali uma relação com alguns fantasmas, os meus amigos que tinham morrido na guerra civil. Colegas de profissão, jornalistas. Eu vivi aquilo. Aquele texto foi vivido de uma maneira muito dramática e sofrida.

Você atuou como jornalista durante a guerra civil moçambicana (1977-92). O que levou você a entrar na profissão e a deixá-la?
Entrei por um acidente. Eu era membro da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), antes da independência, e na clandestinidade recebi uma instrução para “infiltrar” os órgãos de informação coloniais. Obviamente gostei, não fui lá contrariado. Durante um tempo era jornalista e estudava medicina, e amei muito ser jornalista porque percebi que aquilo de que eu mais gostava era fazer reportagem e trabalho de rua com as pessoas.

Eu queria uma outra relação com as pessoas, não a relação da cultura jornalistíca, do acontecimento. O que me entusiasmava era o que estava para além do acontecimento. O que aparentemente não estava a acontecer me seduzia mais. A vida das pessoas que não aparecem no jornal. Isso implicava uma outra relação, e eu por aí escolhi. Mudei de curso, formei-me biólogo, sabendo que na biologia eu podia dispor mais de mim. Era ecologista, trabalhava no campo. Queria ter esse tempo de ganhar intimidade com as pessoas e com a vida.

Falando em intimidade, como é que António Emílio virou Mia?
Foi uma coisa que aconteceu quando eu tinha dois, três anos [risos]. Meus pais é que me contam, e eu acredito que seja assim, porque há até fotografias minhas com os gatos. Havia ali uma grande varanda, era uma casa colonial, minha mãe deixava restos de comida para os gatos da rua, e eu ali ficava fascinado. Misturava-me com eles. Acho que acreditava ser um deles e disse a minha mãe que queria chamar “Mia”. E isso é uma homenagem à minha relação com os gatos.

O esquecimento é um tema que atravessa suas obras. Como foi voltar a Beira, cidade da sua infância?
Eu estava a escrever esse último romance, O mapeador de ausências, que é uma história da minha infância. Portanto, tive que regressar à minha cidade. Eu já sabia qual era o resultado desse desafio. Eu sou muito desmemoriado. Convidei meus irmãos para irem junto comigo, fizemos uma viagem a três à nossa cidade. Ia mostrar, muito entusiasmado, a casa onde vivemos, e meus irmãos diziam: “Nunca vivemos nesta casa, vivemos numa casa que era próxima desta”. Então, fui construindo muito desse livro na base de equívocos da memória.

‘A memória é feita de ficção, não é uma conquista dos factos, o passado não vem ali revelar-se inteiramente’

Mas eu vivia essas memórias como sendo tão verdadeiras que percebi que a grande briga não é com o esquecimento; a grande briga é pensar que ele é sempre construido. De alguma maneira, esse esquecimento não é um lapso. A memória é feita de ficção, não é uma conquista dos factos, o passado não vem ali revelar-se inteiramente. O esquecimento não é uma falha, é uma substituição de narrativas. Abandonamos uma narrativa porque há outra que se sobrepôs. Eu aceitei isso e fiquei tranquilo com o que trouxe para o livro como a minha própria infância.

No livro, o pai do protagonista é poeta; a mãe, pragmática. São inspirados nos seus pais?
Essa é a verdade, se é que a gente pode separar assim. Eles emigraram de uma maneira forçada, por uma razão política. Meu pai estava muito envolvido na luta contra o regime colonial fascista em Portugal e, por isso, teve de sair do país; veio para Moçambique muito jovem e casou com a minha mãe. Minha mãe tinha, ao contrário dele, uma origem muito humilde, ligada à terra. A aldeia dela era feita de pedra, e eu percebi por que é que ela tinha que ter ao mesmo tempo aquele lado agreste e uma profunda doçura. Ela era mais poeta do que ele. Tenho mais dívida com a minha mãe sobre a construção de uma outra relação com o mundo, que passa pela ternura, pelo afeto etc. E é aí que nasce a poesia, não é? Sobretudo, ela era uma grande contadora de histórias. Para os meus pais, o sentimento não era uma coisa desvalorizada, mas um modo de estar no mundo.

Em outra entrevista, você fala sobre a habilidade dos moçambicanos em esquecer os “fins de mundo” do país. Como vê esses esquecimentos?
Esses esquecimentos funcionam como uma dificuldade de assumir o passado, porque nós tivemos uma guerra civil que nos dividiu profundamente. Basicamente, os moçambicanos tiveram de um e do outro lado, não é clara a linha de fronteira. Portanto, para construir uma nação, uma unidade básica, é preciso uma narrativa que apague as feridas que estão ainda muito presentes. Aconteceu na guerra civil, que demorou dezesseis anos, e antes na guerra colonial, que nós chamamos de Guerra de Libertação Nacional, em que havia 60 mil moçambicanos lutando no Exército colonial, contra os moçambicanos, que estavam também de armas na mão, lutando pela independência e liberdade do país.

Então, houve uma necessidade de esquecer isso, e esse esquecimento não creio que seja vontade de uma pequena minoria que detém o poder, não. É uma coisa diluída, uma vontade generalizada. As pessoas não querem lembrar, com receio de que esses fantasmas não estejam ainda bem resolvidos. Recuando para mais longe, por exemplo, a memória da escravatura também não é uma memória que aqui seja muito convocada. Há uma espécie de necessidade de esquecer.

Como enxerga o papel da literatura de relembrar essas histórias?
É fundamental. Nunca pensei que eu tivesse um papel ali, que à literatura fosse pedido ter uma missão, mas no caso de Moçambique é muito claro. É preciso que as pessoas deixem de ter medo de aceitar o tempo em que estivemos divididos, que houve fraturas, e nos conciliarmos com esse tempo, com essa herança do passado. E a literatura pode fazer isso de uma maneira mais tranquila, pode transformar isso em histórias, pode humanizar e mostrar que não eram os soldados o problema, era a guerra, que nos transformou em outras coisas. Fomos manipulados, usados como ferramentas, como armas.

Há uma terapêutica que pode ser feita por via da palavra. Eu acho que agora nós já estamos a fazer isso em Moçambique. Por exemplo, eu fiz uma trilogia [As areias do imperador] sobre um império do africano Ngungunyane, que dominou, até o final do século 19, todo o sul do Moçambique, repartindo a ocupação do nosso território com os portugueses. Quando tentei recolher elementos dessa história, as pessoas diziam: “Não escreva sobre isso, não vá despertar fantasmas que não nos ajudam”. Mas, depois de a trilogia ser publicada, noto que muita gente se aproxima de mim e diz: “Eu disse para você não escrever. Mas agora acho que fez muito bem em ter feito, porque estou mais sereno com aquilo que era a minha história passada”.

Quem escreveu esse texto

Beatriz Muylaert

Jornalista e editora executiva da Quatro Cinco Um.