Literatura,

Aqui é o fim do mundo

Projeto literário do The New York Times sobre a pandemia reúne escritores como Margaret Atwood e Mia Couto

01maio2021 | Edição #45

Pandemia, ano 2. Assolados pela morte que não cessa de nos rondar, entramos em 2021 combalidos e exaustos, e o período que se iniciou em 11 de março de 2020 ainda está longe de acabar. Os que restarão vivos terão a tarefa árdua de tentar contar essa história (caso sejam humanos, é claro — ou não: faz décadas que a literatura e o cinema de ficção científica especulam sobre o que virá depois que as máquinas se tornarem mais potentes e espertas do que a humanidade).

De certa forma, a ideia central do Decamerão (1353), de Giovanni Boccaccio, é muito parecida com a que norteou “O projeto Decamerão”, da The New York Times Magazine. No século 14, a peste que matou cerca de um terço da população europeia, segundo estimativas recentes, marcou a passagem da Idade Média para a Renascença. Florença, então uma cidade-Estado com atividade artística e intelectual característica do que seria a tônica do período moderno, foi um dos centros urbanos europeus mais duramente atingidos pela praga. Ali, em 1348, um jovem entusiasta da obra de Dante Alighieri começou a escrever uma série de contos sobre como era a vida antes de a doença transformar a cidade em um lodaçal de cadáveres insepultos. Boccaccio organiza essas crônicas da vida urbana de uma cidade que poderia morrer por meio de um estratagema característico de obras como Os contos de Canterbury (Geoffrey Chaucer) e As mil e uma noites: dez jovens nobres isolam-se em uma casa de campo e driblam o tédio contando uma história por dia, em dez ciclos temáticos, totalizando cem histórias.

Em março de 2020, quando a pandemia do novo coronavírus era ainda uma previsão, já bastante assustadora, de como a mutação de um vírus de letalidade certa e comportamento desconhecido poderia fechar populações de grandes cidades dentro de suas casas, cobrir países de luto e dor e impor o silêncio da tragédia em um mundo barulhento, o livro de Boccaccio (assim como A peste, de Albert Camus) voltou a ser referência bibliográfica para lidar com o inimaginável. À falta de notícias da Idade Média sobre a doença, o século 21 contrapôs o excesso de informações desse mundo hiperconectado com todo o seu arsenal de perversidades: as notícias falsas, as mentiras manipuladas para fins políticos e econômicos e tudo o mais que nos atormentou no ano passado. 

Releituras

A sólida tradição nova-iorquina de fazer do jornalismo cultural uma janela também para a produção literária levou a revista dominical do The New York Times a criar sua própria antologia de contos a partir de uma proposta da romancista Rivka Galchen de reapresentar o Decamerão do século 14 para o leitor contemporâneo. Foram convidados 29 escritores, entre alguns dos mais bem-sucedidos ficcionistas em atividade, como a canadense Margaret Atwood, o moçambicano Mia Couto e o irlandês Colm Tóibín, mas também nomes muito recentes da cena literária. Em 29 contos, a revista conseguiu, com uma agilidade impressionante (a edição especial foi publicada em 12 de julho, quatro meses depois que o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde, Tedros Adhanom, ensinou a muitos de nós o sentido exato da palavra pandemia), contar como o horror da morte nos esmagou como a insetos, apesar de toda tecnologia, ciência e riqueza.

Quando a pandemia ainda era uma previsão, Boccaccio voltou a ser referência bibliográfica para lidar com o inimaginável

O destaque mais ou menos óbvio entre os contos é “Griselda, a impaciente”, de Margaret Atwood, cujo romance O conto da aia (1985) anteviu com precisão rara aquilo que a guinada político-fundamentalista do final dos anos 10 do século 21 iria fazer com toda a nossa ideia de presente. Atwood revolve com ironia um enredo clássico da ficção científica na literatura e no cinema. Após um evento apocalíptico, extraterrestres de aspecto externo assemelhado ao de animais terráqueos repugnantes (insetos, moluscos, a lista é longa) e de inteligência superior invadem a Terra e tentam reeducar um grupo variado de humanos mostrando a estupidez suicida das atitudes negacionistas, da indiferença ao sofrimento alheio etc. 

Colm Tóibín revisita a “história de estrada” norte-americana, formato que influenciou diversos escritores, cineastas e músicos e ajudou a criar uma certa mística dos Estados Unidos, em crise evidente na breve e pavorosa era Trump. A “História do rio de Los Angeles” troca os espaços abertos do Oeste estadunidense pela melancolia do confinamento a dois. Irlandês residente nos eua, com os olhos cansados do europeu que conhece a desgraça desde sempre, Tóibín vê o Novo Mundo incessamente falando do tal do “novo normal” quando o anormal domina o presente.

Se a irregularidade é característica de qualquer antologia, mesmo as bem editadas, como é o caso desta, isso é equilibrado pela representatividade dos autores novos. Muitos autores de línguas pouco traduzidas para o inglês, como o brasileiro Julián Fuks, e outros tantos de segunda ou terceira geração de imigrantes que formam a teia multicultural dos Estados Unidos contemporâneo, como Wu Ming-yi, de Taiwan, trazem questões a respeito dessa nova Idade Média do futuro que nos ajudam a lembrar a única certeza possível da vida, a inevitabilidade da morte, e alertam para uma máxima da política em qualquer tempo: a corda sempre arrebenta do lado mais fraco.

No Brasil de 2021, a tradução da Rocco é bem-vinda não apenas no sentido da fruição literária e para ter contato com uma lista de autores na qual se deve prestar atenção (minha dica de sucesso: traduzam Kamila Shamsie). No dia em que este texto está sendo fechado, estamos a poucos dias de completar mais uma marca na casa das centenas de milhares de vítimas fatais. A velocidade entrópica do número de mortos (em 7 de janeiro, eram 200 mil) tem transformado o país em uma combinação funesta de nau de insensatos com colônia de leprosos. Pessoas estão morrendo nas ruas, todos os dias — “da fome, do medo, e muito principalmente da morte”, como dizem os versos de “Marginália II”, de Gilberto Gil e Torquato Neto. 

Alguns de nós, no entanto, se arriscam a morrer é de raiva. A impotência diante do sofrimento humano deixa o país em um estado de tensão permanente que consome nossos dias em insônias, angústias várias e, agora sim, as chamadas comorbidades dessa exaustão sem fim.

Quem escreveu esse texto

Bia Abramo

Jornalista, é autora de Aperto de mão (Conrad).

Matéria publicada na edição impressa #45 em abril de 2021.