Infantojuvenil,

Águias em estado de poesia

Ao compor a mitologia de uma terra em uma fábula do nosso tempo, Mia Couto defende a riqueza de se conhecer a própria história

01abr2020 | Edição #32 abr.2020

António tinha dezessete anos e uma precoce fama de poeta quando foi chamado à casa de Samora Machel, líder maior da independência moçambicana que governaria o país na década seguinte. Julgava estar diante de um herói, de alguém de magnitude comparável à de Che Guevara ou de outros grandes revolucionários. Ansiava, como os outros convidados, pelas palavras transcendentes que aquele homem diria, pela incitação eloquente à luta e à resistência anticolonial. Então ouviu de Samora uma pergunta banal, anticlimática: “Quem aqui se lembra de alguma canção de infância, de alguma história de infância?”. António e os demais estavam em silêncio, seus rostos já esboçando uma desilusão ante a frivolidade do líder, quando ele completou: “Pobre é quem não tem histórias. O país que não conhece a sua história é um país pobre, e está fadado à morte”.

Quem conta essa breve anedota é Mia Couto, o escritor maior em que o jovem António se tornou. Narra com a simplicidade que lhe é habitual, sem propor que ali se enuncie nenhuma revelação, que ali se insinue um momento fundacional. E, no entanto, talvez não seja exagerado pensar que ele próprio assumiu as palavras de Samora como sua missão, que esse passou a ser o horizonte do seu aporte a uma revolução atemporal. Na vastidão de suas obras, com os fartos recursos de sua imaginação, Mia parece povoar de histórias um país tão pobre, ou melhor, parece propiciar o reencontro de um jovem país com sua rica história.  

É admirável a unidade de sua obra, tanto pela atenção ao passado mítico de um território de muitos povos quanto por sua encantatória dicção poética, a envolver o leitor num ritmo peculiar e a assombrá-lo com imagens poderosas. Mesmo quando se afasta do romance, o gênero que o fez célebre, mesmo quando se dispõe a escrever para crianças, a exuberância de seu universo pessoal permanece intacta — garantindo também o prazer de seus leitores usuais. 

Bicar os “is”

Seu A água e a águia, lançado pela Companhia das Letrinhas, se já estivesse escrito na época, poderia bem ser uma das histórias de infância recordadas pelos convidados de Samora, tal a sua exatidão e sua beleza, tal a sua maneira de compor pela ficção a mitologia de uma terra. 

“Aconteceu quando não era ainda nenhuma vez.” Com essa frase exemplar, Mia Couto abre o livro e inaugura um novo tempo, anterior ao próprio tempo. Nada mais há, nessa pré-história inventada, do que um rio e uma fartura de águias, voando no céu infinito, urdindo as ondas com o bater de suas asas. O tempo só existe como sucessão: súbito o paraíso das águias se rompe para dar lugar à seca, que míngua o rio e vai dizimando as aves. O que leremos, através das palavras do autor e das cores fluidas de Danuta Wojciechowska, será a batalha travada pelas águias para perdurar e para impedir que a totalidade de seu mundo colapse.

Na pré-história do mundo já existem as palavras: será bicando vocábulos que as águias tentarão se salvar

As nuances dessa batalha abrem, no livro, toda uma dimensão suplementar. Estamos na pré-história do mundo, mas já existem as palavras: será no campo dos símbolos, bicando os vocábulos, que as águias tentarão se salvar. Bicam os “is” de seus nomes e assim se fazem águas, tentando matar uma sede que nunca chega a se dissipar. Bicam o “i” do rio e assim o consomem, agravando a seca. E então descobrem que têm que repor as águas lançando-se das montanhas e vomitando “iiiiiiiis” que acabam por inundar a terra de rios plurais. 

Salta a atenção da história atemporal à própria escrita, ao código que se decifra, à poesia. Do sentido do mundo ao sentido da palavra, e de novo ao sentido do mundo: esse é o movimento contínuo da obra de Mia Couto que aqui se replica. E salta o leitor, também, de mito em mito, sem saber se está lendo a origem das ondas, a origem dos rios, a origem do voo das águias, a origem de seus gritos. É tão vasto e tão lírico o universo do escritor que tudo parece se criar a um só tempo, ou melhor, antes que o próprio tempo exista. 

Tanto imergimos no passado mais longínquo que pareceria provável perdermos o presente de vista. Mas não: o engenho da escrita realiza o improvável e transforma a história das águias numa fábula do nosso tempo, numa leitura aguda do mundo que também nós vamos destruindo com nossos voos, com nossos gritos. Na seca que atravessa o livro se inscrevem também as nossas secas, e os nossos dilúvios, nossos rios rebeldes, nosso ambiente em desalinho. As aves pousam no seu próprio cansaço e mantêm-se caladas, o narrador nos diz, “como se velassem o seu próximo fim”. Quando acontecerá de pousarmos em nosso cansaço e velarmos o nosso próximo fim, este leitor se pergunta, contagiado pela melancolia.

Mas a terra só está fadada à morte se não conhece a sua história, disse Samora, e a salvação das águias de Mia se realiza quando em estado de poesia. Talvez possamos ainda, então, bicar as letras das nossas palavras diárias, as letras dos nossos nomes, até que sejamos capazes de escrever outro mundo, um mundo em que o céu ainda seja infinito.

Estes textos foram realizados com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Julián Fuks

É autor de A ocupação (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #32 abr.2020 em março de 2020.