Memória,

A lista infinita

Divagações da neta de Boris Schnaiderman ao encontrar o manuscrito com o índice da biografia que o professor e tradutor escrevia há anos

30jun2023

O papel apareceu em meio às janelas abertas no computador, uma foto de uma folha sulfite, um escrito à máquina anotado em caneta preta e achei tão legal: tinha encontrado um índice. Um manuscrito de um índice de um livro. Achei logo que era uma lista de títulos da Clarice Lispector, uma foto tirada na exposição da Veronica Stigger, Constelação Clarice — tinha toda uma ala de manuscritos e máquinas de escrever e marcações da autora, algum rabiscado, uma correção ali, outra aqui, e lembrei que as anotações eram sempre com caneta preta e achei igualzinho. Achei mais, achei que bom, vou usar na minha aula de listas, hoje à noite, a aula sobre enumeração, é verdade, a Clarice e os nomes alternativos para o A hora da estrela. Como não tinha pensado nisso antes, e ainda mais com o manuscrito!

Fui ver mais de perto, o papel estava virado na horizontal e não dava pra ler. Deixei o papel na vertical, as letras encaixaram melhor. Cheguei mais perto, queria enxergar melhor a lista da Clarice. Item um: Início.

Bem ela, pensei. Aquele sem fim de início. (Interrompo a escrita e levanto para pegar A hora da estrela. Usei em sala de aula e o livro está todo marcado. Post its coloridos segundo uma classificação cujo critério eu esqueci. Ficou um arco-íris de marcadores. Uma aluna, quatorze anos, veio me pedir ao final do curso por favor se eu podia parar de dar livros tristes.)

Como está a escrita de sua biografia? Tá difícil, Luana. Por que? Sabe, não quero falar mal das pessoas

Em passo lento até a estante, tento lembrar a lista dos títulos alternativos a A hora da estrela. É uma coisa que faço. Tento lembrar de cor. Escrevo o que lembrei. Depois comparo com o original e na comparação aprendo toda a diferença.

Sempre um pouco nervosa, a hora de pegar o livro na estante, são altas as chances de eu não achar e também são altas as prateleiras — às vezes tenho que subir num banquinho. Você abre o livro e tem quatorze títulos alternativos. A culpa é minha. Ela que se arranje. Uma sensação de perda. História lacrimogênea de cordel.

As listas catalogam, separam, selecionam, organizam, nomeiam, classificam. Aconchegam, acalmam, dão sono, vertigem e poder. A organização da biblioteca é a escrita combinatória de uma lista sem fim. Enumerações entrecruzadas: ficção teoria gente viva gente morta os mais amados, aqueles autografados, mulher homem clássico contemporâneo de onde veio já lido onde é que tá quem é pronde vai. Na minha estante, a Clarice mora ao lado da Virginia Woolf e da Katherine Mansfield. Imagina a conversa.

A fotografia que encontrei era de uma lista. Uma lista escrita à máquina. Estava fuçando imagens do meu computador para a aula de listas que eu daria dali a duas ou três horas. E lembrei que tinha uma série de fotografias já prontas do livro do Saramago, O evangelho segundo Jesus Cristo , a parte em que o Diabo pergunta pra Deus quem, afinal de contas, vai morrer por sua conta. Quantos? E Deus responde: você quer que eu enumere? Sim, um a um, sim, então eu vou, por ordem alfabética, e lá vai Deus, por cinco páginas inteiras. Tinha a foto, uma aluna mandou. Queria usar para a aula. Não conseguia achar. Escrevi no campo de busca: “.jpeg”, sei lá por quê. Aí apareceu a foto da garagem do pai da Ana. Ela foi aluna do curso de listas e mandou a foto da garagem do pai dela, uma grande e bela enumeração. Brinquedos ao lado do aspirador de pó antigo ao lado da bicicleta entre malas antigas e ferramentas. A segunda foto que apareceu foi esta. E eu pensei, que legal, uma lista de algum escritor para eu usar no meu curso de listas. E cheguei mais perto, mais perto da tela, da lista, do meu avô.


Manuscrito de Boris Schnaiderman (1917-2016) para sua autobiografia [Acervo pessoal]

Um titulo escrito à máquina que foi inteiro rasurado e depois outro por cima escrito à mão e também rasurado e quatorze itens, enumerados em ordem crescente. Uma lista datilografada em folha sulfite. Um número, ponto. Quatro ou cinco palavras, ponto. Espaço. Hífen. Outro número. Ponto. Linha seguinte. A música da máquina e quando mudava de página a delícia da alavanca e a máquina deslizando de volta para a esquerda. Eu chegava para almoçar, e às vezes chegava antes e dava para escutar o meu avô na máquina de escrever. Ele sentava à mesa da sala, caderno, lupa, caneta. Lia e anotava o lido. Se era de um autor vivo, amigo, amiga, ligava depois para comentar. O telefone de discar. O relógio. A agenda telefônica. A boina. Vamos sair, vô? Vamos. Ele, sempre elegante, me dava o braço e seguia pelo lado de fora da calçada.

1. Início. – 44.

Meu avô escreveu verbetes para uma enciclopédia. Tinha acabado de casar, estava procurando emprego e viu o anúncio: precisa-se de homens cultos. Eu me qualifico, pensou meu avô. Conta que chegou e viu uma grande sala, repleta de moças datilógrafas e o mar das teclas das máquinas de escrever. Eu gostava de ouvir meu avô e a datilografia do meu avô. A mesa da minha mãe ao fazer o mestrado, um sonho de papelaria, papéis, tesoura, cola, canetas coloridas, régua. Ela datilografava e depois arrumava, uma parte, outra, tesoura e cola e a correção, a letra da minha mãe, e ela usava sempre as mesmas canetas e um sistema de três cores. Eu olhava fascinada, as pilhas de livros e minha mãe bordando o texto em recorta e cola de parágrafos, frases, palavras, letras.

Uma vez perguntei para meu avô onde ele comprava tinta para a máquina de escrever. Deve ser difícil, hein, vô, encontrar. É fita, Luana, é fita!

A fita da máquina de escrever deixa uma impressão desigual. Algumas partes da mesma letra são mais fortes que outras. Pela datilografia, a gente vê o peso da mão. Depois de Início, um hífen e o número 44.

2. Mar bravo. 21

Havia algo entre o um e o dois. Foi escrito à mão e depois rabiscado. Sempre há algo entre o um e o dois. As listas são infinitas. A lista do telescópio e tudo o que há sobre a lua; o microscópio e tudo o que há na célula da minhoca, as conchas da praia e todas as estrelas do mar. Basta olhar e a lista se amplia. O que o Robinson Crusoé tinha com ele para viver na ilha deserta. Quem amou e quem foi amado no Amor dos homens avulsos. As atribuições do tempo no Lavoura Arcaica e o tempo de cada coisa no Eclesiastes. Os navios e os homem que chegaram em Troia, e tudo o que havia no escudo de Aquiles. Os nomes dos planetas e os signos do céu. Os peixes do rio Juruá e as árvores da floresta no Acre.

Havia um castelo na Normandia. Um castelo enorme, com tantos quartos que era impossível contar. Mas precisavam saber, precisavam saber o número de quartos que havia no castelo. Tiveram uma ideia: entrar em cada quarto e em cada quarto acender uma vela, e quem estivesse do lado de fora ia fazendo a conta das janelas iluminadas. E assim fizeram. Mas havia sempre uma janela escura.

E mesmo no supermercado. A gente vai, volta, e esquece alguma coisa.

O terceiro item me despertou.

3. Peripécias no interregno. – 31

Isso a Clarice não ia escrever. Cheguei mais perto, ampliei a foto. Por baixo da rasura torta, o título: “Meu século, minha fera”. O título da biografia que meu avô estava escrevendo. Um verso do Mandelstam, o século 20 inteiro, da Revolução às Torres Gêmeas, e depois, ditadura, Segunda Guerra, a revelação dos crimes de Stálin, a ditadura, o curso de russo, as prisões, a ida à Rússia, a outra ida à Rússia, casamento, os livros, os amigos a família, os escombros e o mito, a guerra em surdina e todos os livros e todos os encontros do meu avô, todos os noventa e nove anos. Vô, como está a escrita da sua biografia? Tá difícil, Luana. Por que, vovô? Sabe, eu não quero falar mal das pessoas.

Meu avô chegou no lugar indicado, o anúncio do emprego na mão. Um grande galpão coalhado de mesas e datilógrafas. Foi contratado. Ganhou mesa, máquina, dicionário e começou pela letra A. Na letra F, a editora estrangeira que estava financiando a empreitada caiu fora e meu avô contava que, ao chegar ao M, era o único funcionário restante a datilografar verbetes na mesa solitária. Na letra P, foi demitido, não iam continuar. 

Vô, por que você não fez letras? Meus pais achavam que letras era perfumaria.

Fui fazer letras. Vô, qual curso devo fazer na faculdade de letras? Grego, Luana. Fui estudar grego. Na minha estante, os gregos estão logo abaixo do meu avô. Ao lado deles, o Machado de Assis. Cheguei mais perto. O nariz na tela. Atrás do rasurado, do traço tremido do meu avô, dava pra ler: “Meu século, minha fera”. Era isso mesmo. Aquele era o índice da biografia do meu avô. E como vão seus alunos, Luana? Ele sempre perguntava. E o que eles estão lendo? Uma época li os contos do Tchékhov com a turma do terceiro colegial. Meu avô veio conversar com eles. Um dos contos chama “Pamonha”. E um aluno perguntou: por que pamonha? Tem pamonha na Rússia? A classe toda riu. E meu avô respondeu: não tem pamonha da Rússia. Você tem razão, não foi uma boa tradução, eu vou mudar.

Entre as edições, as reedições das traduções que ele fazia e refazia, a letra cada vez mais tremida

A fotografia daquele índice havia aparecido em explosão e sem aviso na tela do meu computador. Antes dela, a foto da garagem do pai da Ana. Depois, as latas de sopa de tomate do Andy Warhol. Entre as duas imagens, a foto com o índice da biografia do meu avô, uma folha sulfite sobre madeira. Não lembro quando tirei a foto, se fui eu quem tirou, não sei quem me mandou, não sei onde está esta a folha original, muito menos o resto. 

Tenho: a caneta preta do meu avô, a linha tremida, a fita falha, o traço torto, o título rasurado e cada palavra, cada letra sobre a sulfite branca. Cada título e toda a imaginação. Vô, por que você rasurou o título? Eu gostava tanto. Meu século, minha fera. Faz seis anos que meu avô morreu. Um dia perguntei: Mas vô, você fica com medo de falar mal de quem? Do meu pai e da minha mãe, respondeu.

Do alto da minha estante me olham os russos. Entre os russos, os que meu avô traduziu. Entre as edições, as reedições das traduções que ele fazia e refazia, a letra cada vez mais tremida. Olhei a fotografia em busca do movimento da mão do meu avô.

Eu também coloquei na prateleira a Ana Cristina ao lado da Hilda e da Lygia. Prelas ficarem conversando. Tem a parte dos amigos. Da América Latina e de Cuba. Os livros de receitas. Uma lista é uma conversa, só que mais organizada. Ou não. A lista das sete faces. Tem todo tipo de lista; só sei que aquela foto, aquele conhaque me botaram comovida como o diabo.

Os nomes do diabo, no Grande Sertão. O capítulo “Branco”, no Moby Dick. O livro do travesseiro. O que há para fazer num cruzeiro, como morrem as lagostas. O maravilhamento com o detalhe do mundo, como diz o George Steiner. Cada folha em cada árvore, cada gota em cada chuva. A enumeração do universo inteiro. Só Adão, e a mando de Deus. E mesmo assim. Nem dá pra falar. O nome de D’us inteiro.

E quais são, meu Deus, quais são as Pílulas de Sabedoria que o meu avô tinha para contar?

Cada copo em cada festa, a bebida, quem trouxe, o que pensou enquanto comprava, esperou? Como poderá alguém saber de tudo? Fazer o inventário? O Steiner começou a escrever listas, dia e noite. Se a lista estiver completa, ele ganha. O pesadelo da lista incompleta: se há um item faltando, você perdeu a aposta contra a totalidade. O núcleo inviolável do particular, do específico, do irrepetível, e a importância de falar o nome de cada coisa. O nome inteiro. E olhar de perto e contar a história do começo ao fim.

A gente andava na rua e muitas pessoas cumprimentavam o meu avô, bom dia, professor. A moça que vendia frutas, bom dia, professor; o jornaleiro, bom dia, professor; os vizinhos, bom dia, professor, e eu ficava espantada com a quantidade de alunos que meu avô tinha.

Outro dia me sentei para um café no boteco da esquina de casa. Bom dia, professora, falou o seu Alexandre. Comovi.

Uma folha sulfite fotografada sobre uma superfície de madeira. Qual madeira, onde? Será a mesa da minha sala? A escrivaninha do meu avô? Quem tirou a foto? O que ela está fazendo entre a foto das sopas e a foto da garagem do pai da Ana? Eu não lembro. E enquanto escrevo, não, não sei onde está o resto. O miolo. Eu não sei. Minha mãe não sabe. Ficou aflita, onde será que está? Ainda não comecei as investigações. Confesso que estou adiando um pouco.

4. Plantando no asfalto. – 12

5. Dúvidas no ar.

E a letra tremida do meu avô, qual a idade da mão, a mão que segurou a caneta que segurava a tinta que manchou a página que foi fotografada que apareceu um dia na tela do meu computador enquanto eu preparava a aula para o meu curso de listas?

Tudo o que a Szymborska prefere. Tudo que é tão contrário a si, o mesmo amor. As “Águas de março” e as variações sobre o cinza do Mateus Aleluia. As fugas de Bach e os lugares para onde ir antes de morrer. E todos os círculos do inferno.

Eu tenho a agenda de telefones do meu avô. E os nomes riscados. Os telefones ampliados. O casal que separou, o amigo que morreu. A casa, será que ainda existe? A gente discava e sentia o dedo rodando e também era um som bom, um som e um gesto bons, o de discar o telefone, e eu adorava quando o número era cheio de noves, que nove era quase uma volta inteira. Eu ainda sei o telefone do meu avô. Eu queria ligar para ele. Ligar pra ele e perguntar: Vô, o que são esses vasos comunicantes?

6. A vida num fichário. – 6.

7. Vasos comunicantes. – 14.

Vô, por que você se alistou para lutar na Segunda Guerra? Para lutar contra os fascistas. Não tinha como não ir.

Meu avô tinha noventa anos e sonhava com a guerra, pesadelos. Será que “A vida num fichário” é o capítulo em que ele conta sobre a enciclopédia? Vasos comunicantes. O S juntado ao O pela linha dos dedos do meu avô. Comunicantes, o te para baixo. — 14.

E quais são, meu Deus, quais são as pílulas de sabedoria que o meu avô tinha para contar?

8. Pílulas de sabedoria. – 7.

9. Céu de chumbo, coração aos trancos. – 11.

10. Paulo Rónai à contra-luz. – 6.

11. Da confraria à dispersão – 3.

12. Um caso encerrado. – 5.

13. O poeta s. i. em S. Paulo? – 6.

14. Etapas de desencontro. – 12. (à mão, tinta azul: há manchas de tinta e o ponto é quase um risco).

Eu não sei o que o meu avô contou sobre o Paulo Rónai, qual confraria se desfez, que caso encerrou e não sei quem é o poeta s. i. Não sei também se ele estava ou não em S. Paulo, nem por que isso era importante, não sei o que deixou o coração do meu avô aos trancos, se o céu de chumbo é o da guerra, da ditadura, não sei. Não tenho as pílulas da sabedoria, nem os inícios, tampouco vasos comunicantes. Sei da letra do meu avô, juntando s e e em corda abaulada.

Vô, do que você estava falando, vô?

Eu morava com minha mãe num prédio e meu avô morava com a minha avó em outro, mesmo quarteirão, mesma calçada. Às vezes, depois da janta, meu avô ia até a minha casa contar histórias para eu dormir. Na escola, escrevia as histórias que meu avô me contava e fingia que eram todas minhas. Sempre tirei a. Não sei o que o meu avô ia achar se soubesse desta história, nunca contei pra ele, era um grande segredo. Talvez ele fosse gostar, talvez achasse ruim, não sei.

Eu só sei que as listas, elas são sempre incompletas. 

Quem escreveu esse texto

Luana Chnaiderman de Almeida

Escritora e professora, é autora de Os animais domésticos e outras receitas (Perspectiva).