Linguística,

Latim para todos

Livros de Paulo Rónai e Barbara Bell tornam a aprendizagem da língua muito mais fácil e eficiente

13nov2018 | Edição #7 nov.2017

Dois livros relativos à língua latina foram lançados no Brasil. Um, recente, é a terceira edição de Não perca o seu latim, do professor, crítico, ensaísta e tradutor húngaro-brasileiro Paulo Rónai com a colaboração do dicionarista Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. O outro, no mercado há dois anos, é tradução de um extraordinário método de ensino de latim criado na Inglaterra para crianças a partir de onze anos, em dois volumes, Minimus: conhecendo o latim e Minimus secundus: desenvolvendo o latim, de Barbara Bell, muito bem ilustrados por Helen Forte. A tradução e a necessária adaptação foram realizadas com engenho pela classicista Fábia Alvim Leite.

Quando Paulo Rónai lançou o livro em 1980, já fazia vinte anos que latim não era ensinado no ensino fundamental e no ensino médio. Ensinar latim visava instituir o repertório da maior parte de nosso legado cultural, fosse jurídico, literário, ou linguístico, e, para tanto, almejava transmitir também uma habilidade estratégica: comunicar-se com eficiência com a voz ou por escrito, viabilizada pela retórica. O latim era o centro do que ainda se chama “Humanidades”.

Ora, para o livro de Rónai não podia haver título melhor. “Não perca seu latim”, ou a variante “Não gaste seu latim”, é, na verdade, expressão que primeiro significa “gastar ou perder tempo com alguém que não entende ou não quer entender aquilo que lhe falam”, por isso significando também “esforçar-se em vão”. A palavra “latim” tem aqui o sentido de “cultura” e “capacidade de persuasão”, evocando o benefício de dominar a boa retórica, a faculdade de comunicar-se bem. 

A autora decidiu que a figura central do método fosse um ratinho, não um imperador ou um soldado, que tivesse o nome Minimus

Por razões várias (inclusive a inépcia de antigos métodos e a mentalidade de certos professores), o latim foi excluído da grade curricular das escolas, sobrevivendo só nos cursos superiores de letras. O livro de Rónai, com ironia, mas sem ranço, deixa claro que havia algo bom a preservar. Dividido em duas partes, traz primeiro, por ordem alfabética da primeira letra, uma recolha de palavras e expressões que, oriundas na maior parte da poesia e do direito romano, se transformaram em sentenças para todas as ocasiões. Qualquer leitor aprenderá ali que termos técnicos do economês, como deficit e superavit, são verbos que significavam apenas “faltou” e “sobrou”; saberá que o dito “pão e circo”, únicas coisas que bastam ao populacho, é a tradução do verso latino panem et circenses (muitas vezes citado erradamente — “panis et circenses” — por quem já perdeu o latim) e conhecerá que o data venia proferido por nobres juristas quer dizer “com a devida permissão”. A segunda parte do livro é voltada ao público especializado que necessite de consulta rápida a algum tópico do idioma. Dirigido a curiosos e especialistas, o livro é muito bem-vindo.

Método

Os dois volumes de Minimus deixam claro que atuais educadores ingleses acreditam que não se perde o latim ao ensiná-lo hoje às crianças, e que é possível fazê-lo com adequação pedagógica. O método é tudo que um professor de latim desejaria ter escrito, é uma ideia que, data venia, me crucifico por não ter tido. O título e a abordagem são sensacionais. Não é necessário ser latinista para saber que nomes de imperadores, escritores e títulos honoríficos na Roma antiga amiúde traziam a palavra maximus, o mais famoso dos quais era Pontifex Maximus, que designava a mais alta posição na antiga religião romana, por isso adotado pela Igreja Católica para designar o papa. Para hoje caracterizar uma personagem romana basta previsivelmente chamar-lhe Maximus, como se fez no filme Gladiador (2000). Pois bem, Barbara Bell, a autora, decidiu que a figura central do método fosse um ratinho, não um imperador ou um soldado, e que tivesse por nome Minimus, em vez de Maximus, o que faz delicioso jogo de palavras, pois “rato” em latim é mus, de sorte que minimus significa também “minirratinho”, pequenez e delicadeza oportuníssimas.

Nosso ratinho habita uma casa romana e é de seu ponto de vista que são apresentados os membros da família, inclusive os escravos e até um gato (que às vezes obriga nosso ratinho a retirar-se), o espaço todo da vila romana com os jardins, fatos de todo dia e seus objetos, os alimentos, os utensílios para escrita e cosmética, o dinheiro, veículos, armas e até matrimônios e funerais. Com os objetos, aprendem-se substantivos e adjetivos, e, com personagens, é possível tecer ações, com que se ensinam os verbos e os dados da cultura romana.

Se não é novidade apresentar um microcosmo — que de regra é a família — para ensinar idiomas, não deixou de ser brilhante fazer o mesmo para ensinar o latim e sua cultura. No Brasil, quando o latim era ensinado para as crianças, com frequência isso era feito mediante frases insípidas, descontextualizadas, ou mediante textos de César, Cícero e Virgílio, que, mesmo adaptados, não eram adequados à idade nem logravam, tal como ministrados, falar à realidade dos pequenos alunos.

O método Minimus, que é inglês, não parte apenas do universo da família, que faz sentido para qualquer criança, mas, depois de apresentar os membros da casa, nos capítulos seguintes situa as ações na Britânia romana, relacionando-as a objetos arqueológicos efetivamente ali encontrados, como os já citados utensílios, e principalmente as famosas Tabuinhas de Vindolanda, que são cartas verdadeiras, grafadas a tinta sobre madeira, escritas ou recebidas pelos habitantes da cidade (hoje Bardon Mill), situada perto da Muralha de Adriano. Assim, em vez de ações grandiosas e distantes, mostra-se primeiro o âmbito menor e tangível, que é a vida de todo dia, relacionada a fatos e sítios históricos que qualquer pessoa na Inglaterra pode ver. 

A aplicação do método foi muito bem-sucedida no Brasil, como prova a iniciativa de docentes em São Paulo

Com as cartas, o livro insere a seção “Notícias de Roma”, que permite, contextualizada e inteligentemente, tratar de fatos não relacionados à Britânia. A mesma relação familiar na casa também possibilita que as personagens adultas contem histórias às infantis, oportunidade para o método apresentar fábulas mitológicas gregas. Assim, o método, delicadamente, vai formando um conjunto de habilidades linguísticas e um repertório intelectual nas crianças. É fato curioso pois, se compararmos a quantidade de objetos e sítios da Roma antiga disponível a britânicos com a que italianos hoje têm diante de si, causa surpresa que a ideia que subjaz ao método Minimus tenha vindo da Inglaterra. O mesmo tem ocorrido com os métodos para adultos, dos quais os melhores, nas últimas décadas, foram feitos por ingleses e norte-americanos, não por falantes de língua neolatina, como nós. 

Ainda que as crianças brasileiras não disponham de dados imediatos da cultura material romana, a aplicação do método foi bem-sucedida aqui, como prova a iniciativa pioneira da professora Paula da Cunha Corrêa, docente de grego na Universidade de São Paulo, que propôs o método, e da professora Ana Elisa Siqueira, diretora da Escola Municipal de Ensino Fundamental Desembargador Amorim Lima, em São Paulo, onde Minimus é utilizado desde 2013. 

Quem escreveu esse texto

João Angelo Oliva Neto

Livre-docente em letras clássicas na USP, é autor de Falo no jardim (Ateliê).

Matéria publicada na edição impressa #7 nov.2017 em junho de 2018.