Música,

Brasões sonoros do galope nordestino

Série contará em três livros a história da música armorial a partir da obra de seu principal compositor

01set2023

É natural que a expressão mais visível de um movimento que nasce dentro da universidade para costurar as culturas eruditas e populares seja a retórica. Por isso, é praticamente impossível pensar no movimento armorial sem dar todo crédito a seu principal idealizador, o filósofo, escritor e dramaturgo Ariano Suassuna.

Por outro lado, se há um lugar onde as ideias de Suassuna ganham uma materialidade inequívoca é por meio da música. Nenhuma tentativa de aproximar o universo erudito, sobretudo o do barroco, com o popular é mais bem sucedida do que a que resultou na obra do Quinteto Armorial e de seu principal compositor, Antonio Madureira, o Zoca.


Quinteto Armorial: do romance ao galope nordestino; volume 1, de Antonio Madureira e Francisco Andrade

A história da música armorial a partir da obra de seu principal compositor será contada em três volumes, com textos e partituras feitas a partir da pesquisa de Francisco Andrade. O historiador iniciou seu mergulho na obra de Madureira no ieb (Instituto de Estudos Brasileiros) da Universidade de São Paulo, materializando pela primeira vez as partituras dessas composições, que foram então revisadas pelo próprio Zoca. Algumas já se encontram no primeiro volume — Quinteto Armorial: do romance ao galope nordestino —, recém-lançado pelo Instituto Çarê, que prevê lançar os outros dois volumes também neste ano.

No começo de julho, encontrei o historiador em um evento sobre o modernismo no IEB. No intervalo, Andrade fez a seguinte análise sobre as composições de Madureira:

A música armorial enquanto conceito é muito ampla, não dá para reduzir o que seja. Mas no caso da obra de Madureira é muito claro como ele trabalha os elementos populares dentro das composições. Ele é um compositor intelectual. Todas as composições têm os emblemas. Se você pegar o repente, tem a modalidade da sextilha e a melodia está lá dentro. Se você pegar o toré, vai reconhecer os toques do perré, do baiano, do guerreiro dentro da composição, aí tem lá a melodia de um toré de quilombo. Se você pega um romance, é como a melodia de um romance cantada. […] A música dele não tem retórica como a música erudita romântica, que tem todo um desenvolvimento para só em dado momento vir uma citação. Ele não tem isso, ele faz do próprio elemento da cultura o esteio da composição.

Antonio Madureira está com 73 anos e vive no Recife. Não consegui entrevistá-lo ao vivo, mas o compositor respondeu a algumas perguntas por WhatsApp.

O que é o armorial para o senhor?
O armorial para mim é uma música de signos. São emblemas sonoros que remontam à origem dos brasões, que conhecemos ligados a uma expressão plástica, mas antes foram signos, ideias e ideogramas sonoros. O toque de trombeta identificava um grupo, um feudo, uma confraria, um cavaleiro: era um brasão, palavra que vem de “brass”, instrumentos de metais. Esses signos sonoros se tornaram poemas, e esses poemas se tornaram expressão visual. Na arte da heráldica, a palavra armorial é o nome do livro onde se guardam os desenhos desses brasões. A analogia que eu faço, que está na dissertação de mestrado do professor Francisco Andrade, é exatamente isso: timbres brasões, porque são composições criadas como brasões sonoros, voltando à origem da palavra.

‘Ariano Suassuna tinha novas ideias de uma música erudita brasileira e aprendi muito com ele’

Qual o papel de Ariano Suassuna no seu desenvolvimento como músico e compositor?
O de abrir caminho para eu não desenvolver uma música nos moldes do nacionalismo. Ariano tinha novas ideias de uma música erudita brasileira e aprendi muito com ele. Ele me indicava muitas obras, da literatura e da música erudita europeia, como referência. Foi o caso de “A história do soldado”, de [Igor] Stravinski, do “El retablo de Maese Pedro”, de Manuel de Falla, o quinteto para clarinete de Mozart. Ele dizia: isso são referências. Por que até então eu vinha começando a caminhar só na escola de música, norteado pelos escritos de Mário de Andrade, principalmente o livro Ensaios sobre a música brasileira.

Como Mário de Andrade influenciou seu pensamento musical?
Mário de Andrade é a grande referência na formação do músico brasileiro, não esquecendo no entanto de Guerra-Peixe, e tantos outros que se sacrificaram para documentar aspectos da música que vem do Brasil, sem subsídios necessários para desenvolver essa pesquisa. Mas muitos contribuíram, e nós fazemos parte de uma corrente. Cada um dá a sua contribuição.

Como avalia a contribuição do Movimento Armorial para a difusão da música do Nordeste nos anos 70?
Um grande avanço na divulgação de um mundo sonoro até então desconhecido para o resto do país. Não são minhas palavras, são de Aluízio Falcão, diretor artístico da [gravadora] Marcus Pereira, quando lançamos o primeiro álbum. Quando gravamos, ele disse que eu podia mostrar minhas fontes de influência, e fizemos o disco Instrumentos populares do Nordeste (1976), onde mostro gravações autênticas de grupos que conheci estudando.

É importante dar acesso às suas composições por escrito?
A música foi, por muitos séculos, de tradição oral, passada por gerações de famílias que se dedicavam a esse ofício. Mas sempre houve a preocupação de torná-la documentada. Naturalmente, o registro fonográfico dá uma grande contribuição para perpetuar uma linguagem musical, porque você não tem só a música em si como a forma de executá-la, a performance. Mas, para os músicos, que até hoje vinham tocando a partir da escuta das gravações, é um grande apoio ter a partitura escrita. Você tem mais acesso aos detalhes, à instrumentação e a técnicas de execução e de interpretação.

É justo dizer que o movimento armorial abriu portas para outras investigações musicais que lançam luz sobre a riqueza da cultura popular?
Em cinquenta anos, já é possível ter uma amostra de como o movimento armorial inspirou muitos grupos, muitos pesquisadores, muitos professores de música, grupos de dança, artistas plásticos, atores. Sem dúvida que o movimento armorial, arrastado pela música do Quinteto Armorial, teve um grande papel nas gerações seguintes. Atualmente existem vários grupos com trabalhos estabelecidos que recriam ou interpretam peças do repertório antigo do Quinteto Armorial e do Quarteto Romançal, muitas vezes já absorvendo a linguagem e criando composições próprias. Esse é o grande legado do movimento armorial.

Quem escreveu esse texto

Guilherme Werneck

Jornalista, é autor da newsletter Ladrilho Hidráulico.