Memória,

O milagre dos Andes

A história dos sobreviventes de um avião que caiu na cordilheira é reeditada cinquenta anos após o acidente

25ago2023 | Edição #73

Deve ter sido algum maldito cientista louco que teve a ideia: em vez de cobaias, vamos deixar seres humanos no gelo. […] Vamos ver se são capazes de resistir 72 dias, até que três deles e depois apenas dois tentem caminhar durante dez dias toureando o abismo, escalando a montanha para conseguir chegar aos vales. Vamos descobrir nesse laboratório sinistro como se forma a sociedade da neve.

As palavras são de Roberto Canessa. O laboratório sinistro são 72 dias no ar rarefeito, sem comida, dentro de um abrigo improvisado na fuselagem de um avião acidentado. A sociedade da neve são os dezesseis sobreviventes de um avião que se chocou contra a cordilheira dos Andes num voo que ia do Uruguai para o Chile, em 13 de outubro de 1972.

A sociedade da neve é também o título de Pablo Vierci, publicado originalmente em 2008 e que agora ganha uma edição especial da Companhia das Letras, celebrando os cinquenta anos do “milagre dos Andes”.

Colega de colégio dos que sobreviveram, o jornalista uruguaio Pablo Vierci começou a escrever esse livro logo depois do acidente. Nando Parrado pediu ao amigo que o ajudasse a relatar sua epopeia na montanha. Mas foi só em 2005, quando o documentarista uruguaio Gustavo Arijón compartilhou com Vierci entrevistas de outros dois sobreviventes, Roberto Canessa e Gustavo Zerbino, que o autor pôde terminar a obra — mais de trinta anos depois —, finalmente publicada em 2008, com o depoimento de todos os sobreviventes.

Mesclando informações objetivas sobre o acidente com relatos em primeira pessoa dos dezesseis passageiros do bimotor Fairchild FH-227 que sobreviveram, A sociedade da neve “é uma história extraordinária, totalmente atemporal, protagonizada por gente comum”, como afirmou Carlos Páez Rodríguez, sobrevivente que tinha dezoito anos no dia do acidente, filho do famoso pintor uruguaio Carlos Páez Vilaró.


O time de rugby do Old Christians, com os Andes ao fundo, um ano antes do acidente. Chile, 1971 [Divulgação]

Os depoimentos das vítimas são comoventes, como o de Pedro Algorta:

Percebi que a pulsão por viver mais 24 horas transcende idades e culturas e está presente em todos os seres humanos, num campo de concentração ou perdidos numa montanha. Numa situação limite surge um impulso que o leva, sempre, a fazer um novo esforço que ultrapassa os seus limites.

Pacto pela sobrevivência

Foram muitos os milagres que a pulsão por viver garantiu aos jovens do time amador de rúgbi do Old Christians Club.

A antropofagia é um tema incontornável nessa história. A decisão se deu dez dias depois do acidente, quando os sobreviventes souberam, por um rádio de pilha, que as buscas pelos destroços haviam cessado. Canessa, à época estudante de medicina, disse que “quando surgiu a ideia de nos alimentarmos dos cadáveres, não me pareceu algo novo”. Ao longo dos dezesseis depoimentos, fica claro que o dilema, moral e religioso, foi resolvido quando encontraram “a paz para as nossas consciências que se (eu) morrer, entrego o meu corpo para que os outros o utilizem […] e façam parte do projeto de vida”, como disse Canessa.

O pacto pela sobrevivência, a entrega mútua dos próprios corpos forjou a sociedade da neve, expressão repetida dezenas de vezes no livro. Outra característica notável é a semelhança no tom dos depoimentos: a narrativa direta, a sobriedade estoica na descrição das privações imputadas pela natureza, o distanciamento da sociedade que encontraram depois do resgate. Pancho Delgado, por exemplo, “não entendia o sentido das coisas, não compreendia como alguém podia se preocupar com o futuro, porque na verdade o futuro não existia”.

Eles experimentaram solidão e sofrimento. Mas são capazes de expressar com clareza a gratidão

A clivagem entre a sociedade civilizada e a sociedade da neve permeia o livro e é intensificada pela alternância entre os depoimentos dos sobreviventes e a narrativa do autor. O leitor se transforma em um observador das sociedades. A da neve e a nossa. Esse formato permite um mergulho nas sensações dos protagonistas do “milagre”. Eles experimentaram solidão, incerteza, humilhação e sofrimento. E são capazes de expressar com clareza a gratidão por estarem vivos.


Os destroços do avião caído no Vale de Las Lágrimas, nos Andes chilenos, em janeiro de 1973 [Divulgação]

Ao longo dos 72 dias, Gustavo Zerbino resgatou objetos dos mortos. Correntinhas, cartas, documentos. Ao lado de Adolfo Strauch, foi o último a ser resgatado:

Enquanto o helicóptero se afastava, eu chorava. Não sei se de alegria ou tristeza, mas chorava, com a sacola entre os pés, com Adolfo ao meu lado. Éramos os últimos, não tinha ficado nada para trás, nem ninguém, pois eu os trazia comigo.

A nova edição de A sociedade da neve — com fotos de antes, durante e depois do desastre — enriquece a experiência do leitor, aproximando-o ainda mais dos protagonistas. O novo prefácio, assinado pelo autor, adiciona detalhes da vida dos rapazes resgatados.

Durante a preparação para as filmagens de O impossível (2012), filme estrelado por Naomi Watts e Ewan McGregor, o direto espanhol J. A. Bayona descobriu A sociedade da neve e usou o texto de Vierci em sua pesquisa para trazer às telas a história da família que sobreviveu ao tsunami de 2004, na Tailândia. Uma carta de Bayona endereçada aos integrantes da sociedade da neve integra a nova edição do livro. Nela, o diretor diz que a história apresenta uma “visão profundamente humana e otimista do homem”, e que deveria ser contada nas telas com a mesma intensidade das páginas do livro. O desejo de Bayona foi atendido. A Netflix promete para 2023 o lançamento do filme baseado no livro de Vierci.

A história da espécie humana remonta há pelo menos 200 mil anos. Ao observar o mundo que nos cerca, com guerras, fome, desigualdade e indiferença ao sofrimento alheio, costumamos nos questionar: foi sempre assim? A resposta invariavelmente se apoia ou na visão de Jean- Jacques Rousseau e seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens — o Homo sapiens inocente em uma sociedade igualitária —, ou no Leviatã, de Thommas Hobbes — seres levando uma vida brutal e egoísta.

Além de ser uma história de esperança, A sociedade da neve nos dá pistas sobre a real natureza humana.

Quem escreveu esse texto

Arthur Mello

É sócio da Livraria Megafauna — Livros no Centro, em São Paulo

Matéria publicada na edição impressa #73 em agosto de 2023.