Literatura,

Pequenos detalhes

Em romance, a busca de informações sobre o assassinato de uma jovem beduína em 1949 é metáfora para tratar da ocupação da Palestina no presente

01dez2021 | Edição #52

O que é um detalhe menor? Algo irrelevante, de pouca importância, secundário, que não faz diferença? Ou, ao contrário, aquilo que faz toda a diferença, que muda o curso dos acontecimentos, dos fatos e das ações? É com esse título, de sentido dúbio, que Adania Shibli publicou em 2016 sua terceira obra, depois de Estamos todos igualmente longe do amor (2004) e Touch (2002), além de contos e ensaios, ainda inéditos no Brasil. Lançado pela Todavia, Detalhe menor tem a tradução direta do árabe feita por Safa Jubran, professora da Universidade de São Paulo. Chama a atenção que a obra tenha sido escrita em árabe, já que Shibli vive na Alemanha e domina diversos idiomas, inclusive o coreano. Escrever na própria língua, na língua materna, pode ser um detalhe menor, mas no caso da autora, de origem palestina, é uma marca de identidade e de resistência para narrar o sofrimento de seu povo.

A obra está dividida em dois capítulos marcados por oposições: o primeiro ocorre no tempo passado, precisamente em 1949, um ano depois da criação do Estado de Israel, rememorado pelos palestinos como a Nakba, a catástrofe; o segundo é narrado no presente, na Palestina sob ocupação. Enquanto no primeiro capítulo a narrativa em terceira pessoa gira em torno do ponto de vista do oficial do Exército israelense, um homem metódico, detalhista, sem sentimentos ou emoções, no segundo somos guiados pelo relato em primeira pessoa de uma jovem mulher gaga, ansiosa, insegura, medrosa. Ambos obcecados pela rotina, pela organização, pela limpeza, pelos pequenos detalhes. Não conhecemos nenhum aspecto físico desses personagens, com exceção dos pelos loiros da barba do oficial. Não sabemos seu nome, sua idade, seus gostos, suas características. Nenhum detalhe…

Em torno deles há outros soldados e uma jovem beduína de longos cabelos escuros; cães latindo; pássaros chilreando; camelos blaterando; a menina chorando; o vento soprando e árvores se contorcendo; há tiroteios e explosões; cheiro de combustível, de piche, de sabonete, de suor, de putrefação. Há o acampamento, as barracas e os móveis; há a casa e as cortinas. Há o deserto, a nascente de água, o crepúsculo e o anoitecer; há as barreiras, o aterro sanitário, a Prisão Ofer, o Muro e os desenhos de Banksy. Há o cotidiano de um acampamento militar e a vida cotidiana sob a ocupação. No passado é construir uma nova nação; no presente é viver sob a ocupação. Há vários detalhes menores, secundários, que ajudam o leitor a compreender a ação que desencadeará a trama: no passado, dura alguns dias; no presente, também. É verão, antes e depois.

A obra foi escrita em árabe, embora Shibli viva na Alemanha e domine diversos idiomas, inclusive o coreano

É 13 de agosto de 1949: uma jovem beduína é capturada, violentada, assassinada. Já 13 de agosto de 1974 é a data de nascimento da jovem narradora, 25 anos depois do trágico destino da jovem beduína. Um detalhe secundário em relação aos detalhes principais, trágicos, do extermínio de todo o grupo de beduínos e seus camelos. E é esse detalhe menor, a coincidência das datas, que chama a atenção e instiga a jovem mulher do presente a descobrir o que ocorrera com a jovem mulher do passado, naquela precisa data, no deserto seco do Neguev, ao sul do território da Palestina/Israel. O ano de 1974 também é a data do nascimento de Adania Shibli. Uma mera coincidência ou um detalhe menor?

No primeiro capítulo, o oficial comanda uma tropa de soldados com o objetivo de demarcar a fronteira do recém-criado Estado de Israel com o vizinho Egito, expulsando árabes remanescentes, beduínos e infiltrados (quem são eles, não sabemos). O ataque ao grupo de beduínos e seus camelos, enquanto estavam imóveis numa nascente, é justificado pelo oficial. Para ele, a ocupação do deserto ao sul do território, assim como já ocorrido no centro e no norte do país, é tanto um direito milenar como um direito natural por esse espaço, além do dever moral de ocupar o deserto para receber os exilados que desejem regressar à sua pátria, auxiliando na construção do jovem Estado para as futuras gerações. Não se trata de uma ação militar; é antes uma missão nacional.

Selvagem e civilizado

Os acontecimentos seguintes colocarão em questão quem é o selvagem e quem é o civilizado. As tropas israelenses massacram um grupo de beduínos e seus animais, sem chance de reação ou defesa. A menina que sobreviveu ao massacre — o que fazer com ela? Abandoná-la no deserto, colocá-la para trabalhar na cozinha, levá-la ao quartel-general, entregá-la a uma das aglomerações árabes, protegê-la? Limpar é a primeira ação: “ela fede”. A menina é despida, lavada, vestida com as roupas dos soldados, seus longos cabelos desinfetados e cortados, para evitar que seus piolhos se espalhassem. Uma obsessão pela limpeza, pela ordem, pela homogeneização. A menina não é ninguém, é uma estranha, articula uma língua diferente, geme, chora, não sabemos nada dela, porque a vítima não tem voz, tanto que é descrita por seu algoz. O oficial que se coloca como protetor torna-se o perpetrador, o violador, o que permite a violência coletiva; é o assassino. A tentativa de fuga como única reação da menina é interrompida por um tiro certeiro na cabeça e outros seis para garantir a morte. Depois disso “reinou de novo a calma”, pois como lembrou o oficial à sua tropa: “Não é o canhão que vence, mas o ser humano”.

É a busca da humanidade da menina capturada, sucessivamente violada, morta e enterrada em algum lugar do Neguev no ano de 1949 que moverá a ação da jovem no presente, narrada no segundo capítulo. Quer conhecer a história da beduína para além do que foi narrado pelos soldados, quer ouvir e fazer a menina falar. Para isso é preciso superar barreiras físicas e psicológicas. É preciso ter a carteira de identidade e a placa do carro na cor correta, usar um nome não árabe, não falar a própria língua, ocultar a nacionalidade, não deixar nenhum detalhe à mostra que possa denunciar sua identidade. É preciso passar pelas barreiras sem levantar suspeitas, enquanto as outras pessoas (os israelenses) podem se mover livremente. É preciso percorrer o território e confrontar as marcas da ocupação.

Onde procurar a verdade? Nos mapas, que podem guiar ao local do assassinato, se sobrepõem a Palestina antes de 1948 e a Palestina depois de 1948; há novas estradas, novas aldeias, novas cidades; há o que foi destruído, ocupado, substituído. Nos arquivos e nos museus, que podem guardar fotos e documentos da ação militar, impõe-se a visão dos vencedores, e não a dos vencidos. Mapas, arquivos e museus apagam uma história (a palestina) e iluminam outra (a israelense). O relato oral de um contemporâneo do evento fala de uma jovem beduína punida por crime de honra, um costume bárbaro… Não há nada mais que faça referência à jovem beduína… Assassinato e estupro são partes do cotidiano de uma terra ocupada, não a excepcionalidade. Por que se apegar a esse detalhe menor, se “a menina não era ninguém e continuará assim, sem que ninguém ouça sua voz”? Por que sofrer pelo passado?, pergunta-se a jovem. Porque é um passado presente, um passado que não passou, um passado que continua a atormentar e assombrar o presente.

É a busca da humanidade da menina morta no passado que moverá a ação de uma jovem no presente

O detalhe menor, que acompanha e atormenta a jovem, é um caminho possível para chegar à verdade e, mesmo não a tendo encontrado, o desfiar dos fios conduz a novos detalhes, da ocupação, da opressão, do sofrimento palestino. Fala-se do micro, o assassinato da jovem, para tratar do macro: a ocupação da Palestina. Como alerta a narradora, é no detalhe menor, simples, secundário, que podemos desmontar as falsificações. É no detalhe menor, nos dados marginais, nas pistas, nos sinais, nos vestígios, nos sintomas, nos indícios que podemos alcançar a verdade, que pode ser enterrada, silenciada, sufocada, mas que insistirá por emergir se apenas um fio for puxado.

Quem escreveu esse texto

Samira Osman

Professora de história da Ásia na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), escreveu Imigração árabe 
no Brasil
(Xamã).

Matéria publicada na edição impressa #52 em outubro de 2021.