Literatura japonesa,

Vozes de Hiroshima

Primeira edição em português de clássico sobre a bomba atômica é alerta contra as catástrofes de nosso tempo

28jul2022

Uma hecatombe cabe num haicai. Escrito em prosa, Flores de verão é poroso à poesia. A árida e cálida grafia de Tamiki Hara (1905-51), ao observar a paisagem e a transfiguração da natureza em reflexo emocional, teria um quê de Bashô: “Essas montanhas pareciam olhar para as pessoas embaixo em meio às ruínas e se questionar o que teria acontecido”. No conto, que dá título ao livro, o autor-narrador confessa: “Seria mais adequado apresentar as minhas impressões em formato de verso”, e oferece uma estrofe: 

Ofuscantes escombros,
Plúmbeo-esbranquiçadas cinzas, 
Como num vasto panorama. 
O estranho ritmo dos cadáveres humanos queimados, em carne viva. 
Tudo era real? Podia ter sido real? 
O mundo futuro despojado num relance.

O tema é uma das mais brutais atrocidades perpetradas pela humanidade: o bombardeio atômico a Hiroshima, em 6 de agosto de 1945, pelos Estados Unidos (em 9 de agosto, outra bomba nuclear foi lançada em Nagasaki). Com todo o pudor factual ao aproximar experiências distintas, poder-se-ia dizer que Hara é um correspondente japonês da literatura de testemunho do italiano Primo Levi (1919-87) e do espanhol Jorge Semprún (1923-2011), também sobreviventes, mas do Holocausto nazista.

No conto “Flores de verão”, o autor afirma sua profissão e missão de fé: “O que nos ameaçara por tanto tempo, o que era iminente, acabou chegando. Sentindo-me aliviado, fiz um retrospecto de tudo o que obtive durante a vida. Antes, imaginava que teria grande probabilidade de não escapar, mas o fato de estar vivo me fez agora entender subitamente o significado da vida. Preciso deixar tudo isso por escrito, pensei comigo mesmo”.

Sombra

O primeiro conto, “Prelúdio à destruição”, traz um exemplo de rara visualidade verbal: “Num instante, a calha do sobrado em frente e a copa do pinheiro do jardim se refletiram em suas retinas com uma intensidade anormal”. Se a bomba atômica desintegra o corpo em sombra, não deixa de ser uma triste e perversa alegoria da literatura: a transubstanciação do real em signo, a elaboração da palavra e do luto pela projeção e representação da coisa em figura. A famosa foto da sombra humana impressa numa escadaria, resultante da explosão da bomba e da imediata desaparição de uma pessoa, encontra no terceiro texto, “A partir das ruínas”, uma possível legenda: “Aquelas macabras lembranças parecem vividamente gravadas nos degraus de pedra que eu via ali”.

A foto integra a edição brasileira de Flores de verão, entre as imagens aterradoras da cidade arrasada. São fotografias de vestígios. Fotografias são vestígios — indício de destruição e índice de sobrevivência. As imagens que ilustram o livro são um exemplo perfeito daquela afortunada formulação de Didi-Huberman, inspirada em Aby Warburg: “Não é uma iconografia, mas uma sismografia da história”.

Publicado na revista Kindai Bungaku de janeiro de 1949, “Prelúdio à destruição” narra o desconforto do regresso à casa da família, “em um momento inconveniente”, de Shozo, após a morte da esposa. “Nostalgia” é, homérica e originalmente, a dor do retorno ao lar. A casa é assombrada pelos hábitos da guerra e por comportamentos esquisitos dos membros da família, dotados de “inaptidão perante a sociedade”.

Shozo diz ao irmão Seiji: “Mas as falsidades desta guerra não estariam arrasando agora o espírito de todas as pessoas?”. Seiji orava: “Senhor, fazei com que em até três dias Hiroshima sofra um intenso ataque aéreo”. Outro irmão, Junichi, explica a bizarra e pragmática súplica: “Casas queimadas em um ataque aéreo são cobertas por seguro, mas aquelas destruídas devido à evacuação não recebem nem um tostão”. O narrador conclui: “Shozo se esforçava para se convencer de que poderia haver algum significado em tudo aquilo”.

Sob a hipótese de Hiroshima se tornar “o derradeiro baluarte” da guerra, Shozo se pergunta se é capaz de “lutar com disposição para perder a vida”. O texto critica a estupidez do patriotismo e as bravatas de bravura que em nada dignificam os heróis.

Publicado na Mita Bungaku de junho de 1947, o segundo conto, “Flores de verão”, traz um narrador em primeira pessoa, dois dias antes da explosão. Naquele dia, ele foi comprar flores para visitar o túmulo da esposa; pareciam “flores realmente de verão, imbuídas da formosura bucólica de pétalas amarelas”.

“Salvei-me por estar na privada”, conta Hara. Após a explosão, em fuga, ele testemunha, nas margens do rio, um cortejo de desespero: árvores arrancadas, esqueletos de prédios, “seres monstruosos” e “um grupo de pessoas simplesmente indescritível”. E se rende ao delírio factual: “Tive a impressão de que talvez estivéssemos envoltos na terrível e tênue luz verde que se vê nas ilustrações retratando o inferno budista”.

Noutra passagem, ele não poupa o páthos, com estilo sóbrio e doloroso: “Aquilo era sem dúvida um novo inferno, materializado com precisão e perícia. Ali, todo o humano fora suprimido, como se as expressões no rosto dos cadáveres houvessem sido substituídas por algo modelado, mecânico. Os membros guardavam um tipo de ritmo incerto, como se tivessem se enrijecido ao se debaterem num instante de agonia. Os fios elétricos caídos em desordem e os inúmeros escombros proporcionavam a sensação de um desenho convulsivo, traçado em meio ao vazio”.

Diante de alguém que implora “melhor seria morrer”, o narrador assente calado, em desespero. A empatia finge-se de outro pacto: “Era como se um ressentimento intolerável contra toda aquela estupidez nos unisse em silêncio”. Ao reconhecer o corpo do sobrinho, com um tumor no peito (“do tamanho de um punho fechado”), “as mãos estendidas, e os dedos endurecidos e apertados para dentro, com as unhas cravando as palmas” e o rosto “enegrecido [deixando ver] vagamente alguns dentes brancos”, sentenciou, resignado e ressignificado: “Esse encontro fez secar todas as nossas lágrimas”. A terra devastada exibe o absurdo: “Lápides de túmulos espalhadas por toda parte”, a biblioteca que virou necrotério. A presença obsedante da morte só será sublimada no último (e quase redentor) conto.

Publicado na Mita Bungaku de janeiro de 1947, o terceiro conto (“A partir das ruínas”) conjuga um duplo e mesmo movimento: “Na realidade, mesmo agora em Hiroshima alguém está sempre à procura de alguém”; “Na realidade, mesmo hoje em Hiroshima alguém em algum lugar não cansa de repetir sobre os acontecimentos do 6 de agosto”. O narrador relata a sua primeira visita à cidade desde a bomba fatal e fatídica. Ele pondera: “Estaria o trauma daquele momento afetando os meus nervos?”. Sentia-se “aterrorizado por vozes humanas comuns”. Mas a imposição do mister literário se manifesta: “Desejava, com todas as minhas forças, escrever sobre tudo aquilo”.

Em “A partir das ruínas” outras histórias se partem: à procura da esposa desaparecida, um homem examina defuntos que portam relógio de pulso; a mulher que morreu de bruços em posição de proteção ao bebê; o moribundo com as orelhas infestadas de larvas; o cunhado morto cujo rosto “fazia lembrar as cinzas restantes dentro de um braseiro”.

Novo normal

Se em 6 de agosto o autor testemunhou “um indescritível sofrimento humano” no leito do rio, “apesar de tudo, hoje as águas do rio fluem límpidas” e “muitos sobreviventes agora caminham sobre a ponte cuja balaustrada voou pelos ares”. O aceno a um improvável novo normal se dissipa quando ele encontra, numa área com “corpos intocáveis sob os destroços” (“um terreno fértil de vermes”), o inacreditável choro de um bebê (“Pessoas já estariam vivendo ali e até bebês chorando? Uma emoção indescritível invadiu o meu peito”).

A presença obsedante da morte só será sublimada no último (e quase redentor) conto

Escrito há 75 anos, um trecho soa assombrosamente atual e macabro ao leitor brasileiro. O cunhado do narrador, enfermo e debilitado, “previa que a guerra se aproximava de uma desastrosa derrota e sua voz revelava uma leve indignação ao dizer que o povo fora enganado pelos militares”. E conclui: “Foi inusitado ouvir semelhantes palavras saindo de sua boca”.

Subscrito como “Cidade de Musashino, 1951”, o quarto texto é o mais ensaístico do livro, em tom de devaneio desbragado que destoa do registro documental anterior. O título é outro alarme alusivo aos brasileiros de 2022: “O país do meu mais sincero desejo”. Absorto na cama, o narrador absolve-se em fascínio, em reflexo “sobre coisas transcendentes”.

Habitando uma pensão, com o isolamento “atingido quase em seu ponto mais fundo”, o narrador interroga: “Minha existência continua até hoje a ser pulverizada e varrida para um lugar infinito?”. Acometido da impressão de que sua cabeça explode e seu corpo convulsiona, ele acredita “não ter sofrido nenhuma perturbação psicológica” com “a tragédia de Hiroshima”. Ele suspeita que “estaria o trauma daquele momento sempre à espreita” e examina os sentidos: “Por que é que há pouco, alguma coisa desafiou a minha vontade, levando-me a explodir? […] Represadas dentro de mim, teriam explodido as incontáveis coisas que não realizei na vida? Ou as lembranças do instante em que a bomba atômica explodiu naquela manhã estariam justo agora sendo lançadas sobre mim?”.

Ao ver sua sombra a vagar nos trilhos de trem (sobre os quais o autor se mataria, no mesmo ano de 1951), junto a “sombras de pessoas com a vida devastada” que também vagam, o narrador alegórico-filosofante vê-se metamorfoseado (“renascido”) em pássaro, mas estranho no ninho. Sonha com uma cotovia que ele hesita definir como a amada morta ou a sua própria imagem. A cotovia “se converte em estrela cadente” e, numa elipse que eclipsa o pessimismo, assevera, entre parênteses: “(Ela não sou eu. Mas é sem dúvida o desejo do meu coração. Se somente a vida pudesse arder magnífica, e todos os instantes fossem belos e gratificantes…)”. 

Depois de 77 anos do desastre, em um mundo ameaçado pelo sempiterno inverno e aquecimento incendiário, à beira de catástrofes de variadas cepas (climática, sanitária, política, social, guerras), Flores de verão preserva seu aroma amargo, urgente e vigente, literariamente digno. 

Em “Prelúdio à destruição”, lê-se outra frase de insuspeita atualidade: “O capítulo desta noite chegou ao fim. Mas como será o de amanhã?”. Há hecatombe por vir. 

No último conto, Hara compõe a descrição em prosa de uma folha que cai da árvore: “Aquela única folha seca deve ter discernido tudo o que havia neste mundo.” Impossível não lembrar do extraordinário i(a (1958), de Cummings, “haicai da folha que cai” (segundo Augusto de Campos). 

Nota do editor
A Tinta-da-China Brasil é o selo editorial da Associação Quatro Cinco Um, que publica a revista dos livros. 
Essa editoria tem apoio da Japan House São Paulo.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Carlos Adriano

Doutor em cinema pela USP, escreveu Peter Kubelka: a essência do cinema (2002) e dirigiu o filme A voz e o vazio: a vez de Vassourinha (1998).