Literatura brasileira,

Entre a perda e a palavra

Ao atentarem para as dobras da língua em ‘Risque esta palavra’, poemas de Ana Martins Marques ganham fôlego inédito

01dez2021 | Edição #52

No poema de abertura de Risque esta palavra, de Ana Martins Marques, a poeta se endereça ao amigo (e ao leitor) e confessa, enquanto escreve, que quase já não escreve. O poema, assim, escreve-se a partir da sua própria aporia, e “não é mais/ do que uma pedra que grita”. Essa imagem desconcertante anuncia uma inclinação que percorrerá todo o livro: a vocação ambivalente da linguagem. A palavra pode ser “um buraco cheio de silêncio” ou algo próximo de um “naufrágio”. As coisas à volta, no entanto, estão latentes, como que à espera da aderência de uma palavra. Os versos finais do primeiro poema convocam o leitor a uma violação — da página, do poema, do vocábulo, da capa do livro: “risque por favor/ esta palavra”.

Sobretudo na primeira parte do volume, “Porta de saída”, há uma espécie de tristeza do pensamento que atua como um prisma. A questão do perecimento, que mobiliza esses primeiros poemas (“E no Natal/ só celebrar o que nasce/ do sexo/ para morrer de fato”, dizem os versos finais de “Religião”), surge como um lembrete da paradoxal fragilidade e materialidade que compõem tudo o que vive — mas também como uma especulação sobre aquilo que pode restar e até mesmo desafiar a morte: “Quem sabe o que essa morte/ trouxe à vida?”. O senso de luto que atravessa o livro também diz respeito a um país que “se exilou de nós” e mal começou a enfrentar suas ruínas — as recentes e aquelas que nos antecedem.

As epígrafes, frequentes em todo o livro e recurso bastante usado na obra de Marques, nos fornecem contrapontos cruciais à leitura. É sobretudo nelas que se delineia uma altivez diante da perda. No poema “Porta de saída”, a poeta interpela a morte e nos lembra, na epígrafe, do verso de Manuel Bandeira: “— Alô, ineludível”. Acenar à morte com essa irreverência é também driblá-la e desmembrá-la em objeto poético. “If I were called in/ to construct a religion/ I should make use of water” [Se eu fosse convocado/ para construir uma religião/ faria uso da água], diz mais uma epígrafe, a de “Religião”. Os versos de Philip Larkin eleitos pela autora sinalizam um dos vetores do livro — a água.

No poema “Ofélia aprende a nadar”, a poeta recorre à tragédia de Shakespeare tanto para observar que toda queda é literal e alegórica — “cair de amor/ cair na loucura/ cair num rio” — como para reescrever o destino melancólico da personagem, oferecendo a ela o recurso do nado, que nada mais é do que trabalhar junto à água para não sucumbir ao naufrágio.

Se antes o mundo vegetal vinha da flora doméstica, agora a natureza selvagem da mata invade seus versos

Em A vida submarina (2009), seu primeiro livro, que foi reeditado este ano, os elementos da paisagem marítima propõem movimentos de aproximação e recuo e são indiciários da “noite do Oceano/ uma noite maior que a noite”. No reconhecimento desse universo multiforme de tesouros e perigo, já se antevê o “sono infinito do mar”, um sono que nunca é sinônimo de consolo.

“Aqueles que nunca viram o mar/ que ideia farão do ilimitado?”, perguntam os versos de O livro das semelhanças (2015), em que também desponta uma rejeição confessa da viagem: “Não sei viajar não tenho disposição não tenho coragem”. Não é de hoje, portanto, que o horizonte da viagem — e de um de seus emblemas, o mar — tem destaque na poética de Ana Martins Marques. Em Risque esta palavra, porém, o risco e a hesitação não se concentram tanto na dificuldade do deslocamento em direção a novas terras e águas, e tampouco no trabalho de cogitá-las, mas na localização e na submersão.

Assim, em “Postais de lugar nenhum”, segunda parte do livro, a ideia da viagem se desprende da esquiva com que era tratada nos livros anteriores. Aqui os mapas, a quem a poeta era tão fiel, ficam um pouco para trás, e há alguém que chega a lugares outros e procura transcrevê-los. Ainda que o título “Postais de lugar nenhum” e o poema “Parte alguma” (“todos os lugares/ se parecem: neles já se passou/ algo terrível”) teimem em negar, talvez num teste de resistências, a particularidade da referência geográfica, há sim alguma topografia em Risque esta palavra — a começar por seu título, que nos obriga a um gesto de fixação e localização: risque esta palavra — ou seja, a palavra que está aqui.

É também nessa parte do livro que o encontro amoroso e a questão do desejo se manifestam com mais ímpeto. Anteriormente, em A vida submarina, o rechaço ao desejo se apresentava como sintoma: “sou alérgica ao desejo/ como ao mofo/ ao mar”. A reação defensiva do corpo é disparada por elementos aparentemente díspares. Em Risque esta palavra, há uma dupla de poemas que coincide e se mistura na mesma medida em que concorre, tal qual os corpos de dois amantes. Em “Jet lag”, a viagem motiva tanto o encontro como o afastamento dos amantes, e a segunda estrofe nos confronta com o impasse do desejo:

[…]
a distância é erótica
mas quem deseja deseja
uma saída

Há uma retomada da “Porta de saída” do início do livro, mas aqui a saída se descola do perecimento do corpo para se prestar à fuga — ou fluxo? — do amor e de sua natureza incerta. Já no poema “Aquele quarto de hotel”, além da abordagem melancólica do encontro erótico, que só caminha rumo ao desconhecido ou desanda antes do futuro, há uma nova aproximação entre o amor, o estranho e o mar:

confundem-se teu nome e o nome do mar
estrangeiro

Esse embate com o desejo e sua porção de perigo se justapõe à ideia do mar enquanto espaço de incógnita ou ameaça de absorção. “Não amo o mar; o mar não tem contraponto”, teria escrito a poeta Maria Tsvietáieva. E, no intervalo entre esses dois poemas que se atritam e se atraem, talvez haja uma afinidade invertida com aquilo que comemorou Frank O’Hara: “O poema está finalmente entre duas pessoas, e não entre duas páginas”.

Silêncio

O brutal poema “Alter do Chão” condensa uma porção de inquietações e imagens que se espraiam pelo livro: o corpo que se cansa e desgasta, a pedra como elemento fundamental e enigmático, a violência passional que também atinge as árvores, “que um dia o cipó matará num abraço”. Se antes a poeta deduzia o mundo vegetal a partir do microcosmo da flora doméstica, como n’O livro dos jardins (2019), agora é a natureza selvagem da mata que invade seus versos, avultando-se. E, nas águas do igarapé,

um mergulho
apaga para você o mundo
e apaga você do mundo: o silêncio dentro d’água.

Nessa submersão, nesse não estar mais à tona, o sujeito se dissolve num terreno a que os signos não pertencem. “Penetra surdamente no reino das palavras”, escreveu Drummond em “Procura da poesia”. Já em “Alter do Chão”, a poeta, o igarapé e os versos concisos e livres de qualquer sujeito enunciador contemplam um mergulho breve e surdo num reino que desmagnetiza as palavras e onde é preciso renunciar ao saber, ou isolar as coisas de seus nomes.

No poema sem título que abre a seção “Noções de linguística”, a língua é entidade ambivalente: “tomará conta” do filho, zelando por ele, como uma mãe; mas tomar conta é também dominar, fazer o mundo “emudecer”.

Seu filho hoje aprendeu uma palavra
[…]
em breve a língua tomará
conta dele
vai emudecer o mundo
em breve a língua será a mãe
mais do que você é a mãe

A rede de signos que emoldura o pensamento e a cognição humana é, portanto, algo que se impõe entre nós e o mundo, entre nós e o “mar real”. Assim, a aquisição da linguagem é uma porta de entrada, mas também uma renúncia involuntária ao que vibra nas coisas antes da palavra. Se “No princípio/ toda língua é estrangeira”, como se lê no poema “Língua”, ela também se assemelha a uma “casa louca/ que obriga ao abrigar”; a língua então é lar, mas também cerceamento da experiência do todo. Pois as línguas são “meios de viagem” que carregam em si “todo o amor”, embora essa totalidade nunca esteja à nossa disposição.

Em mais um gesto intertextual, a margem de um verso do mesmo poema traz a seguinte referência bibliográfica: “Cf. Jorge de Sena, ‘Noções de linguística’”. A autora nos presenteia com a genealogia do título dessa terceira parte do livro, homônima do poema de Jorge de Sena que ela subverte no verso: “dissolver-se num mar que não o seu”. Essa rendição oceânica ao estranho poderia ocorrer, caso abandonássemos a nossa língua.

Ora, em seu mistério de signos estrangeiros, o mar sempre retorna, como no contundente verso “um barco é um nó no mar”. Há, afinal, uma protuberância — algo que não é mais linguagem em estado obscuro ou metamórfico, mas sim artefato que insiste, a um só tempo intratável e frágil tal qual o poema. Esse estado de alerta para as dobras da língua e a insistência em tentar configurá-las instigaram poemas com um fôlego inédito no trabalho da poeta. E essa sondagem diligente da língua expõe os restos, convergências e pontos cegos dessa vida que dividimos com as palavras. E o silêncio jamais é um silêncio anterior à língua, mas sempre o difícil silêncio de quem já sabe o próprio nome.

Fumo

Um retrato em que a poeta Wislawa Szymborska, já velha, fuma desaforadamente é uma das premissas de “Parar de fumar”, parte final de Risque esta palavra. Nessa seção derradeira, o abandono do cigarro implica e sintetiza uma cadeia de perdas, inclusive a da escrita, pois ele é “parente/ do lápis”. Mas, sobretudo, deixar de fumar é o acontecimento que retomará a investigação da morte e da corrosão, tão exploradas no início do livro, e agora direcionadas ao sujeito da escrita:

Incendiária, sim
mas de mim mesma

O cigarro, assim como a palavra que se escreve e se anula num risco, consome a si mesmo, além de consumir a saúde e o tempo. Mas deixá-lo é também deixar para trás uma série de movimentos que são tão afetivos quanto estéticos: fumar implica fidelidade e sufoco; um gesto corpóreo que é vão “como na dança”; uma forma de produzir a brasa, mas também as cinzas.

Há, em Risque esta palavra, uma frontalidade diante dos limiares da vida e da linguagem. As preocupações sempre caras à autora ganham densidade e um caráter mais urgente, grave, como se o livro se motivasse de algum paroxismo — um “estar sempre de frente”, como escreveu Rilke; mas, sobretudo, são preocupações que retornam, com toda diferença e devoção que a repetição envolve: a mesma poeta que “bate/ bate repetidamente à porta que não tem porta” traz Medusa à vida para tomarem juntas um café, as duas ponderando as pedras e o tempo.

E não há amargura nesse trabalho de ruminação e invenção sincrônicas. As imagens ativadas e logo desmentidas, as perdas antigas e as intuídas, as coisas esquecidas pelas palavras, as próprias palavras que retornam vivas ou reincidentes como um fantasma que faz aniversário — tudo isso se multiplica como numa casa de espelhos, e jamais se reduz a um saldo definitivo. A poética de Martins Marques, quando encara a falta de frente, parece ecoar uma frase atribuída a Henri Michaux e sempre lembrada por Tunga: “A verdadeira vida está ausente”. E a poeta mineira arremataria: “quando menos se espera”.

Esse texto foi realizado com apoio do Itaú Cultural.

Quem escreveu esse texto

Julia de Souza

Poeta, é autora de As durações da casa (7Letras), Gigante vermelha (7Letras) e Covil (7Letras).

Matéria publicada na edição impressa #52 em outubro de 2021.