Literatura brasileira,

A mídia como ela é

Romance de Ivan Angelo faz um retrato do país que os grandes veículos de comunicação ajudaram a construir

01jan2024

No episódio inaugural da série Black Mirror (2011), o primeiro-ministro britânico é acordado no meio da noite com a notícia de que a princesa mais popular do Reino Unido foi sequestrada. Num vídeo vazado no YouTube, o governo é informado sobre a exigência para a libertação: que o primeiro-ministro faça sexo com um porco numa transmissão ao vivo pela TV.


Capa de Vida ao vivo, de Ivan Angelo

O episódio termina (atenção: spoiler) com o país parando para assistir à inimaginável cena de zoofilia. Segue-se, então, a libertação da princesa, o suicídio do artista plástico que arquitetou tudo como “a primeira grande obra de arte do século 21” e a notícia de que a popularidade do primeiro-ministro triplicou. A audiência global da cena foi de 1,3 bilhão de espectadores. Vida ao vivo.

A premissa do mais recente romance de Ivan Angelo lembra vagamente a distopia britânica, mas com sinal invertido. É por vontade própria, e não em consequência de uma chantagem, que o dono da maior rede de televisão do país decide expor detalhes sobre a sua vida pessoal no horário nobre, antes da novela das nove. “Boa noite. Hoje, 24 de novembro de 2021. Desculpem adiar a novela e o prazer de vocês. Não vão sair perdendo, o que vão ver é inédito. Prometo emoções”, avisa na primeira das dezoito transmissões que fará.

Numa sequência vertiginosa de desabafos, Fernando Bandeira de Mello Aranha ajuda a compor um retrato sobre a elite, da qual faz parte, e do país que ajudou a construir com seus veículos de comunicação. Ainda no primeiro dia, ele faz uma síntese esclarecedora do seu papel na história:

Redirecionei os negócios, reequipei nossa primeira emissora de televisão, a pioneira, em vez de vender fui financiando, comprando, pagando dívidas, recuperando, comprando […] tomando, aproveitando os corruptos dos governos dos generais, […] as oportunidades da redemocratização, entrando em extração de metais raros, fertilizantes, agronegócio, olho no futuro, tecnologias da comunicação… Agora parei.

O protagonista (eu ia escrever “herói”, mas pode soar exagerado) de Vida ao vivo tem nome e sobrenome tanto de quatrocentão paulista quanto de gente que batiza rua na zona sul do Rio. Não se precipite, porém. Dando uma pista aqui, outra ali, o autor construiu um tipo que parece um amálgama dos donos das grandes empresas de comunicação do Brasil. Um homem que, ao chegar ao último turno da vida, recorre ao “sincericídio” para avaliar os seus erros e, de certa forma, demonstrar alguma evolução moral.

Trata-se de um personagem orgulhoso de sua formação intelectual, que abusa de citações pedantes, e é também chantagista (ameaça políticos com vídeos comprometedores), fofoqueiro (tece considerações sobre a sexualidade de Carlos Lacerda) e grande observador. Debochado e autoirônico, relembra o relacionamento pouco republicano dos ditadores com os empresários de comunicação nos anos 60 e 70. Faz comentários sensatos sobre a elite política do país, lamenta os anos Bolsonaro. E deixa claro como ele e seu grupo de comunicação se beneficiaram da impunidade. 

Bon vivângelo

Fernando Bandeira de Mello Aranha é fruto da imaginação de Ivan Angelo, mas também da vivência profissional e do bom ouvido do autor. Nascido em 1936, em Barbacena, iniciado no jornalismo em Belo Horizonte na década de 50, Angelo se mudou para São Paulo no final de 1965. Fez parte do que Humberto Werneck descreveu em O desatino da rapaziada (Companhia das Letras, 1992) como “a primeira leva de mineiros do Jornal da Tarde”. Foi um dos jovens jornalistas contratados por Murilo Felisberto para montar a redação do vespertino da família Mesquita, lançado em 1966, sob o comando de Mino Carta.

De temperamento cordial, Ivan Angelo fez longa carreira no JT em funções na chamada “cozinha” da redação, ou seja, na administração do trabalho dos repórteres. Foi editor, editor-executivo e, por décadas, secretário de redação, abaixo apenas do editor-chefe. Atuou lá até se aposentar. Entre amigos, ganhou o apelido de “bon vivângelo”, porque raramente se estressava ou levantava a voz, fato incomum em ambientes jornalísticos. Como é possível perceber em algumas passagens de Vida ao vivo, conheceu muito de perto diferentes integrantes da família que comandava o conservador Estadão.

Em paralelo ao ofício jornalístico, desenvolveu uma respeitada carreira literária. A festa, seu romance mais conhecido, ganhador do Jabuti em 1976, se tornou uma referência pelo retrato de época que captou e por sua construção engenhosa, em que os capítulos podem ser lidos fora de ordem como contos. Também ganhou o Jabuti em 1996, com a novela Amor?, na qual o narrador descreve num monólogo sua hesitação entre o bom casamento com a esposa e o romance com uma amante. O livro pode causar, aos olhos do leitor de hoje, algum estranhamento, mas creio que o ponto de interrogação no título alivia a barra do autor.

O ritmo lembra o universo jornalístico, num diálogo entre fatos, versões e interpretações

Como outras obras de Angelo, Vida ao vivo chama a atenção por uma construção formal que foge ao modelo mais convencional. A cada capítulo em que o protagonista se exibe na televisão corresponde um outro, igualmente mirabolante, com a repercussão e os desdobramentos da sua fala. A narrativa assume um ritmo que lembra o universo jornalístico, num diálogo permanente entre fatos, versões e interpretações. Políticos, artistas, familiares, gente anônima e até o crítico de televisão dialogam com Fernando Bandeira de Mello Aranha durante o reality show que ele promove.

Ivan Angelo, em depoimento ao livro de Werneck, confessou não enxergar maiores qualidades no texto jornalístico: “Tão desinteressante, tão sem colorido, tão sem invenção”. No máximo, afirma, o jornalismo pode contribuir para a ficção com pequenos truques, como os que ajudam a prender o leitor já na primeira linha do texto.

Vida ao vivo deve muito à imaginação, mas também, e inegavelmente, ao jornalismo entranhado no autor. “Ah, antes que me esqueça: toda narrativa é versão”, avisa o protagonista deste romance hilário e imperdível.

Quem escreveu esse texto

Mauricio Stycer

Jornalista e crítico de TV, é colunista da Folha de S.?Paulo e autor de O homem do sapato branco (Todavia, 2023).