História,

A jornalista que reescreve a história

Criadora de projeto que revê o papel da escravidão nos EUA, Nikole Hannah-Jones, do 'NYTimes', virá ao Brasil; leia entrevista exclusiva

11mar2020

A história é um espaço de disputa de narrativas. A jornalista do New York Times Nikole Hannah-Jones sabe muito bem disso. Ela é criadora do Projeto 1619, que revê a forma como a escravidão moldou as instituições políticas, econômicas e sociais dos Estados Unidos — o título da empreitada faz menção ao ano em que o primeiro navio trazendo escravizados africanos atracou em solo norte-americano. Para relembrar os quatrocentos anos desse marco histórico, ela organizou uma edição especial para a New York Times Magazine, em agosto 2019, em que foram publicados artigos, ensaios, fotografias e pinturas que repensam o papel da escravidão na formação dos Estados Unidos, algo que a seu ver é negligenciado no ensino de história nas escolas. Esse foi, para ela, o momento de fundação dos Estados Unidos, e não a independência da Grã-Bretanha, datada de 4 de julho de 1776.

“Há uma razão para aprendermos que George Washington foi o primeiro presidente dos Estados Unidos, mas não que ele possuía milhares de seres humanos”, comentou ela à Quatro Cinco Um. “As narrativas nacionais são moldadas para glorificar a nação, destacando as partes boas e minimizando as ruins; trata-se de apresentar alguns fatos enquanto outros são omitidos”. Os pais fundadores da nação eram donos de escravos. A própria Constituição dos Estados Unidos, conhecida por seus ideais de igualdade bastante avançados para o século 18, não proibiu a escravização de outros seres humanos. E no que num primeiro momento parece ser uma contradição, o sistema escravista das Américas foi crucial para a expansão do capitalismo.

A escravidão só foi abolida oficialmente em 1° de janeiro de 1863, por meio do Ato de Emancipação assinado pelo presidente Abraham Lincoln. Inclusive, o combate à escravidão foi a principal razão que levou à Guerra de Secessão (1861–1865), ou Guerra Civil Norte-Americana, dividindo o norte e o sul do país. A economia dos estados sulistas (os Confederados) estava baseada no emprego de mão de obra escravizada em grandes propriedades de terra monocultoras, e os fazendeiros não queriam perder essa fonte de renda. Mesmo com a vitória dos estados do norte, que marcou o fim da escravidão na legislação, o sistema escravista se manteve de várias formas, naturalizando diferenças criadas com base no discurso da superioridade racial branca.

Vieram, em seguida, as leis de segregação em alguns estados, que mantinham os privilégios da população branca, relegando os negros a espaços determinados e impedindo-os de ter acesso a serviços de saúde e de educação iguais aos dos brancos. Apenas nos anos 1960, durante a luta pelos direitos civis, essas leis foram banidas. Mesmo assim, o racismo e a segregação persistem, e a população negra ainda enfrenta muitas dificuldades para fazer valer os valores de igualdade presentes na Constituição – é só olhar os índices de encarceramento e de violência policial, por exemplo.

Hannah-Jones vem ao Brasil para participar do 3º Festival serrote, promovido pela revista de ensaios serrote e pelo Instituto Moreira Salles (IMS), durante os dias 13 e 14 de março no IMS Paulista, em São Paulo. Ela participará de um debate com Ana Maria Gonçalves, autora de Um defeito de cor (Record, 2006), com mediação da jornalista Flávia Oliveira, no sábado (14). Hannah-Jones também estará no dia 16, no Rio de Janeiro, para conversar com Oliveira sobre como a imprensa pode lidar com o racismo estrutural e as desigualdades raciais na sociedade, durante o lançamento da 34ª edição da revista, que traz o ensaio “As raízes negras da liberdade”, de autoria de Hannah-Jones.

Esse texto, em que ela destaca a importância das lutas dos negros norte-americanos para a formação dos Estados Unidos – assim como o Projeto 1619 –, foi alvo de polêmica no país, criticado por não se ater a determinados fatos históricos, deturpando o papel de pessoas brancas na luta pela liberdade de escravizados negros, e por não levar em conta a diversidade de experiências dos escravizados nos Estados Unidos – esta última crítica foi feita por uma historiadora que participou do processo de checagem do projeto para o New York Times: ela afirmou que Hannah-Jones fez escolhas deliberadas sobre quais fatos publicar, tendo, inclusive, ignorado suas mensagens questionando-a por essas escolhas.

Um outro grupo de cinco historiadores enviou uma carta ao New York Times pedindo que alterações e correções fossem feitas nos textos do projeto, que foi ainda acusado de ser “ideológico”, ao que o editor-chefe do jornal, Jake Silverstein, respondeu apoiando a jornalista, que já ganhou vários prêmios prestigiosos, como o MacCarthur Fellow e o Peabody.

Não é à toa que alguns historiadores estão preocupados. A repercussão do Projeto 1619 excedeu as expectativas. A edição da New York Times Magazine sobre o tema esgotou rapidamente, com pessoas fazendo fila para comprá-la. Diante desse sucesso, o projeto deu origem a um podcast, uma seção especial do jornal, eventos de caráter público e uma série de livros, entre os quais dois de não ficção, uma graphic novel e quatro livros infantojuvenis voltados para o público escolar. Também foi criado um site, em parceria com o Pulitzer Center, que oferece planos de aula e vários materiais voltados para alunos e professores, com o intuito de complementar o currículo das escolas sobre o tema.

Em tempos em que o ministro da Educação brasileiro declarou que pretende “limpar aos poucos” os livros didáticos de temas que “não interessam à história do Brasil”, em que o presidente defende que imagens da bandeira brasileira estejam estampadas nas capas desses mesmos livros e em que professores perdem emprego e são perseguidos a título de “doutrinação de estudantes” em sala de aula, o Projeto 1619 traz reflexões importantes para pensarmos que a história não é um espaço neutro, mas um campo em que batalhas simbólicas e discursivas são travadas, afetando as nossas vidas com consequências muito reais. Portanto, trazer à tona narrativas alternativas – principalmente as das “memórias subterrâneas”, para tomar emprestado um termo cunhado pelo historiador Michael Pollak, que fogem ao lugar-comum do discurso oficial, que preferiria mantê-las esquecidas – é um ato político cada vez mais necessário e ao qual Hannah-Jones tem se dedicado, como se vê na entrevista a seguir.

Como o período da escravidão é ensinado nas escolas norte-americanas? A forma como o tema é ensinado varia muito entre regiões e estados. O que é claro é que o tema é abordado de forma insatisfatória em todas as escolas. A maioria dos alunos dos Estados Unidos não sabe que a Guerra Civil aconteceu por causa da escravidão. Em geral, eles leem alguns parágrafos ou algumas páginas nos livros de história que não mostram como a escravidão foi tão difundida e crucial para o desenvolvimento dos Estados Unidos.

O que você sabe sobre a história da escravidão no Brasil? Com certeza não sou nenhuma especialista, mas tenho alguma familiaridade com o assunto. Sei que o Brasil recebeu o maior número de africanos escravizados, que a escravidão foi bastante brutal no país e que foi uma das últimas nações das Américas [junto com Cuba] a abolir a escravidão. Na verdade, alguns Confederados fugiram para o Brasil depois da Guerra Civil Norte-Americana para poderem continuar a lucrar com a escravidão.

Qual foi a coisa mais surpreendente que você descobriu sobre a história do seu país durante o projeto? Eu tenho estudado o tema já há algum tempo, então nada realmente me surpreendeu, mas muito do que aparecia ao longo do projeto me perturbava profundamente.

Como você observou no Projeto 1619, o trabalho forçado já existia há milhares de anos, mas a escravidão nas Américas foi diferente. Poderia falar um pouco mais sobre essas diferenças? O tipo de escravidão praticada nas Américas foi único no mundo, inclusive em termos de alcance. Os 13 milhões de africanos forçados a cruzar o Atlântico foram a maior migração forçada da história do mundo. Nunca antes a escravidão havia sido determinada pela raça. A escravidão nas Américas não era condicional – baseada em dívidas ou em aprisionamento de guerra –, mas era racial e designada a qualquer pessoa com ascendência africana. Era hereditário, o status de escravizado passava de mãe para filho, o que significa que gerações de seres humanos nasceram na escravidão e passaram toda a sua vida sem saber o que era ter um dia de liberdade. Esse tipo de escravidão tratava humanos como propriedade, em geral excluindo-os de direitos legais e de cidadania em todos os aspectos da vida.

Você chegou a pensar sobre abordar narrativas de indígenas norte-americanos para a história da fundação dos Estados Unidos e da sua relação com os povos escravizados africanos? Sim, eu pensei, mas o projeto é sobre uma história da escravidão africana e da experiência única dos seus descendentes. No entanto, para o livro do Projeto 1619 vamos incluir um capítulo sobre a Remoção Indígena, a expansão da escravidão e a forma como as experiências desses grupos estão entrelaçadas e, ao mesmo tempo, são distintas.

Um grupo de historiadores chamou o Projeto 1619 de “ideológico”. Claro que é um projeto ideológico. Fomos muito explícitos ao declarar que queremos reformular o modo como os norte-americanos veem o seu país e o papel da escravidão e da população negra na criação da nação. A diferença entre mim e esses historiadores é que eu deixo claro o meu objetivo, enquanto que eles não admitem que produzem a sua própria história ideológica, baseada na crença do excepcionalismo norte-americano e de que o progresso é sempre linear.

Você também recebeu críticas por uma “visão pessimista” em relação à história dos Estados Unidos, ao afirmar que a população negra não tinha apoio de pessoas brancas, uma vez que elas não deixaram para trás o racismo. Os brancos norte-americanos que apoiaram ações pela igualdade em favor dos negros foram uma minoria. Isso é um fato objetivo, então não me preocupo se algumas pessoas veem isso como pessimismo.

Como jornalista, que tipo de dificuldades você encontrou ao se embrenhar pelo trabalho do historiador? Ou acha que as áreas são semelhantes? Eu acho que bons jornalistas deveriam constantemente se voltar para a história, e o meu trabalho faz isso. Não tive grandes dificuldades, mas acabei tendo uma compreensão maior sobre os assuntos abordados pelo projeto.

Por que você acha que esse projeto foi proposto por jornalistas e não historiadores? Ninguém é dono da história ou da investigação histórica. Jornalistas tentam perceber conexões diretas entre o presente e o passado, e é por isso que esse trabalho é jornalístico.

No Brasil, o ensino de história africana, afro-brasileira e indígena nas escolas só se tornou lei federal em 2004. Foi uma demanda que partiu de movimentos sociais e não do mundo acadêmico. Parece que o Projeto 1619 é também uma iniciativa da sociedade civil. Você acha que a academia demora para fazer mudanças diante desse tipo de demanda social? Não. Eu não teria conseguido fazer esse projeto sem o trabalho dos historiadores. Eu me baseei no trabalho deles e na forma como eles escavavam formalmente histórias e perspectivas marginalizadas que refletem de modo mais preciso o nosso passado. No entanto, não existe nos Estados Unidos um mandato federal para ensinar história negra e indígena nas escolas norte-americanas. Na verdade, existem esforços conjuntos contra o ensino de uma história multicultural aqui.

Qual a sua percepção sobre como a história é escrita? Acha que o jornalista escreve a história? Temos um ditado nos Estados Unidos que diz que o jornalista escreve o primeiro esboço da história. Acredito que isso seja parcialmente verdade.

A história é um espaço de disputa de narrativas. Qual é o poder da narrativa? Narrativa é tudo. Há uma razão para aprendermos que George Washington foi o primeiro presidente, mas não que ele possuía milhares de seres humanos. As narrativas nacionais são moldadas para glorificar a nação, destacando as partes boas e minimizando as ruins, apresentando alguns fatos enquanto outros são omitidos. W.E.B. DuBois [1868-1963, influente ativista e pensador afro-americano, fundador da Associação Nacional para o Desenvolvimento das Pessoas Negras e autor de As almas da gente negra] chamava isso de propaganda da história. O Projeto 1619 oferece uma outra narrativa que esperamos que explique melhor o país.

A imprensa – e outros espaços de poder – é historicamente dominada por homens brancos. Você vê alguma mudança em termos de diversidade nas equipes das redações e como você acha que isso afeta a cobertura sobre temas relacionados à desigualdade racial? As redações norte-americanas ainda são desproporcionalmente brancas, e ficam mais brancas em posições hierárquicas mais altas. Acho que isso significa que muitas histórias não são contadas, ou não chegam a ser bem contadas, e que a instituição responsável por salvaguardar a nossa democracia não reflete bem essa democracia.

Imagino que esse processo todo tenha sido muito difícil para você em termos pessoais, trazendo à tona muitas emoções. Poderia comentar esse lado mais pessoal do projeto para você? Esse foi o projeto mais difícil da minha vida. Era profundamente doloroso me voltar para todo o sofrimento e dificuldade que as pessoas negras tiveram que enfrentar. Ao mesmo tempo, senti um orgulho imenso por conseguirmos sobreviver a tudo isso e por termos alcançado tudo que a gente alcançou apesar de todo esse sofrimento.

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de ireito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).