Laut, Liberdade e Autoritarismo,

O lado sombrio da meritocracia

Livro de filósofo norte-americano destaca como o princípio do mérito contribuiu para a escalada populista e conservadora

01jul2021 | Edição #47

“Você consegue se tentar.” Para o filósofo Michael Sandel, esse mantra tão arraigado na cultura liberal é o responsável pela escalada populista e conservadora nos Estados Unidos e no mundo. Em seu mais recente livro, A tirania do mérito, Sandel busca demonstrar o caráter tóxico da meritocracia e como esse princípio está ligado ao Brexit e à eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos em 2016. 

No livro, o autor descreve como a meritocracia que marca moralmente a sociedade, dividindo-a entre vencedores e perdedores, se tornou central nos países anglo-saxões, especialmente nos Estados Unidos. Logo na introdução, Sandel aborda o escândalo de 2019 que revelou um esquema de fraudes para ingressar em universidades de elite dos Estados Unidos, como Yale, Stanford, Georgetown e a Universidade do Sul da Califórnia (USC). Esse caso é emblemático das consequências da cultura meritocrática, de sua relação com a desigualdade crescente e de como o mérito individual não pode estar desvinculado de fatores além do nosso controle (renda e cuidado familiar, por exemplo). 

O autor traça uma história moral do mérito, mostrando como essa ideia está conectada a visões religiosas como a ética protestante do trabalho enquanto responsável pelo destino. O privilégio aristocrático foi substituído pela ideia de mérito, que parte do pressuposto de que os indivíduos são premiados por seus esforços e habilidades, e não em razão da condição social de nascimento. No entanto, Sandel argumenta que as elites descobriram como passar suas vantagens adiante, o que acabou convertendo a meritocracia em uma aristocracia hereditária que legitima as desigualdades.

As elites passam suas vantagens adiante, convertendo a meritocracia em aristocracia hereditária

O argumento central de Sandel é de que as elites construíram a ideia meritocrática de que com trabalho árduo e talento qualquer pessoa pode ascender socialmente. Logo, o mérito fica intrinsecamente ligado aos critérios utilizados para avaliar sucessos e fracassos na sociedade. A promessa meritocrática — marcante no ideal do “sonho americano” — era a de que o esforço individual resultaria em uma mobilidade social maior e mais justa. E nesse ponto Sandel não poupa críticas a lideranças mundiais que reforçaram a ideia do sucesso e do mérito. O autor mostra como a lógica da ascensão e do esforço estava presente em discursos de lideranças de espectros políticos distintos, de Ronald Reagan e Theresa May a Tony Blair, Bill Clinton, Hillary Clinton e Barack Obama. Este último, segundo Sandel, foi o presidente que mais utilizou a retórica da ascensão, como nesta frase: “Não importa quem você é, a sua aparência, de onde você vem, você consegue. Essa é uma promessa essencial dos Estados Unidos. Onde você começa não deve determinar aonde você pode chegar”.

Ao mesmo tempo, a ética do vencer pelo próprio esforço, que marca a meritocracia, reforça a responsabilidade individual por nosso destino e pelo que recebemos. Por causa disso, a sociedade vê as pessoas que não alcançam o sucesso ou não ascendem socialmente como “fracassadas” e responsáveis pelo seu próprio infortúnio, de modo que isso desencadeia uma política de humilhação dos “perdedores” e arrogância dos “vencedores”. 

Educação superior

Nesse sentido, a educação passou a ser vista como a peça central na resposta para desigualdade, salários estagnados e desemprego. Sandel mostra como os diplomas de ensino superior se tornaram “credenciais meritocráticas” que foram utilizadas para lançar glória ou descrédito sobre pessoas e passaram a ser vistos como o principal mecanismo de mobilidade social ascendente, uma vez que conferem acesso a empregos com bons salários e posições de prestígio. 

No entanto, o foco excessivamente voltado para a educação superior teve um efeito colateral negativo: um preconceito contra quem não fez faculdade. O “preconceito credencialista” reduz a dignidade do trabalho e rebaixa as pessoas que não cursaram o ensino superior. Valorizar o “inteligente” e estigmatizar o “burro” tem efeitos sociais perversos, já que a ideia de que o dinheiro reflete o valor da contribuição social prejudica o reconhecimento e o senso de pertencimento à comunidade. “Quando elites meritocráticas colocam sucesso e fracasso tão próximos da habilidade de uma pessoa em conquistar um diploma universitário, de forma implícita culpam quem não tem diploma por estar em condições difíceis na economia global. Além disso, se livram da responsabilidade de promover políticas econômicas que elevam a média de salário que um diploma universitário controla.”

Essa valorização excessiva dos diplomas e credenciais gerou um forte ressentimento na parcela da população que não consegue ascender e que é diminuída e menosprezada pelas elites meritocráticas, o que abriu espaço para a escalada populista e conservadora. A desvalorização das pessoas sem ensino superior é prejudicial à democracia, já que o diploma é condição para o trabalho considerado digno e para a estima social. Isso resulta em algo que é abordado brevemente por Sandel, mas que é fundamental nos dias atuais: a perda de apoio amplo do público à educação superior. Antes, a universidade era vista como um mecanismo de mobilidade e oportunidade, mas com o passar do tempo algumas pessoas começram a ver a universidade como um símbolo do “privilégio credencialista e de arrogância meritocrática”. No entanto, o autor não aborda os ataques às universidades pela direita e o crescimento do anti-intelectualismo, um debate essencial para compreendermos a nova dinâmica social.

A valorização excessiva dos diplomas e credenciais gerou um forte ressentimento na parcela da população que não consegue ascender e que é diminuída e menosprezada pelas elites meritocráticas, o que abriu espaço para a escalada populista e conservadora

Antes de Sandel, o sociólogo britânico Michael Young, que cunhou o termo “meritocracia” em seu livro The Rise of Meritocracy em 1958, já havia alertado sobre o que poderia acontecer caso a atribuição de status continuasse a colocar as qualificações educacionais formais sobre outras considerações e trabalhos. Young vislumbrava o lado sombrio da meritocracia, a arrogância meritocrática, e como o ressentimento das classes com menor formação educacional resultaria em uma revolta populista contra as elites meritocráticas. Só que sua previsão era 2034, e a escalada populista se iniciaria em 2016, dezoito anos antes.

O livro de Sandel também pode ser incômodo para liberais igualitários, já que o autor critica a premissa de que a meritocracia seria justa caso as oportunidades fossem iguais para todas as pessoas. É exatamente por isso que o livro deve ser lido. Para o autor, até uma meritocracia perfeita seria ruim e teria um lado sombrio para a democracia e a comunalidade. Assim como em outros livros, Sandel tece críticas ao neoliberalismo (ou liberalismo de livre mercado) de Friedrich A. Hayek e ao liberalismo igualitário (liberalismo de Estado de bem-estar) de John Rawls, pois considera que ambas as versões do liberalismo não impedem a eclosão da arrogância dos considerados bem-sucedidos e do ressentimento dos que são vistos como perdedores.

Reconhecimento social

A estima social e o senso de pertencimento são pontos centrais na argumentação de Sandel, pois, em sua visão, as pessoas não se preocupam apenas com a quantidade de dinheiro que têm, mas também com como a sua riqueza e o seu trabalho são reconhecidos pela sociedade. Enquanto alguns talentos e profissões recebem mais investimento social e são mais valorizados graças à “máquina de triagem” do ensino superior, outras atividades exercidas pela classe trabalhadora são vistas como inferiores e negligenciadas. Esse é um argumento potente porque representa uma realidade de países como o Brasil, em que algumas profissões têm mais prestígio social e, consequentemente, maior remuneração do que outras. 

Mas qual seria a solução para esse problema? Sandel apresenta algumas propostas para suavizar “os danos causados pela tirania do mérito nos vencedores” e “desconstruir a hierarquia da estima que concede mais honra e prestígio a estudantes matriculados em universidades de renome”. No caso das universidades, o autor propõe alternativas como a extinção dos testes padronizados nos processos de admissão, a criação de ações afirmativas com recorte social (algo já implementado no Brasil com as cotas sociais e raciais) e uma “loteria dos qualificados” — uma espécie de sorteio entre as pessoas inscritas que preenchem requisitos básicos e com regras para garantir a diversidade—, bem como a valorização de faculdades públicas comunitárias, cursos técnicos e profissionalizantes e treinamentos específicos para empregos. 

Ademais, para Sandel o trabalho é fonte de reconhecimento e estima social, pois a forma como “a sociedade honra e recompensa o trabalho é importante para a maneira como ela define o bem comum”. Por isso, em suas propostas, ele sustenta que é fundamental revisar a valorização dada ao trabalho e, por consequência, a estima social atrelada ao trabalho e à educação. Só assim teremos uma sociedade em que todos sejam reconhecidos por suas contribuições sociais. 

As elites passam suas vantagens adiante, convertendo a meritocracia em aristocracia hereditária

Seguindo o pensamento comunitarista (comunitarism) de seus livros anteriores (Liberalism and the Limits of Justice, de 1982, e Democracy’s Discontent: America in Search of a Public Philosophy, de 1996), Sandel propõe que temos de cultivar os laços sociais e as virtudes cívicas que a democracia exige, pois precisamos refletir sobre nossas preferências e como fazer uma sociedade justa e redefinir o que conta como uma contribuição valiosa para o bem comum. Isso pode ser promovido por meio de espaços públicos de deliberação, de modo a reunir pessoas de todas as classes, raças, etnias e crenças para aprender a negociar, a acatar as diferenças e, assim, se preocupar verdadeiramente com o bem comum. 

Apesar de as alternativas propostas serem de difícil implementação na prática, já que dependem de uma revisão quase completa do sistema atualmente vigente, o livro traz reflexões importantes sobre a arrogância das elites meritocráticas e como a humilhação dos perdedores corrói o senso de pertencimento social e a democracia. Ao fim e ao cabo, Sandel argumenta que é fundamental repensar o significado do sucesso e abandonar a ideia de que as pessoas chegaram ao topo exclusivamente graças a seus esforços e talentos. A “fé meritocrática” na responsabilidade individual prejudica o senso de solidariedade e a obrigação coletiva de enfrentarmos a desigualdade crescente.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Anna Carolina Venturini

Doutora em ciência política pelo Iesp-Uerj, é pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento.

 

 

Matéria publicada na edição impressa #47 em maio de 2021.