Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Como depor um presidente

Rafael Mafei mostra como o instituto do impeachment se configurou historicamente e aponta os fatores que agilizam ou barram os processos

26ago2021 | Edição #49

O impeachment é um instituto que sofre de uma contradição. Por um lado, é criticado por ser uma medida extrema para frear o uso impróprio de poderes por uma autoridade, um remédio amargo que deve ser usado com parcimônia, sob pena de comprometer a separação de poderes e a vontade das urnas. Por outro, é acusado de ser inofensivo e ineficaz quando realmente necessário, um sino sem badalo que na prática não coíbe a tempo e a contento os abusos que deveria conter.

Nos últimos cinco anos, assistimos atônitos no Brasil à passagem de um cenário ao outro em meio a debates acalorados que nem sempre fizeram jus à complexidade do tema. Em 2016, durante o impeachment de Dilma Rousseff, causava desassossego a desvirtuação do instituto. Em 2021, ecoam as observações feitas por Mark Twain quando do processo malsucedido contra o presidente Andrew Johnson nos Estados Unidos dos anos 1860: “Eu acredito que o Príncipe das Trevas poderia começar uma filial do inferno no Distrito de Columbia (se ele ainda não o fez) e seguir em frente sem sofrer um impeachment por parte do Congresso dos Estados Unidos, mesmo que a Constituição estivesse repleta de artigos proibindo infernos neste país”.

Como remover um presidente, de Rafael Mafei

Por isso, em boa hora vem Como remover um presidente, de Rafael Mafei. Alternando com destreza dispositivos jurídicos, anedotas pessoais e elementos históricos, o texto consegue ser prazeroso e ágil mesmo quando trata dos aspectos mais áridos do debate. Ao longo de seus cinco capítulos, ele situa, ilustra, organiza e provoca reflexão sobre o assunto, pouco explorado de maneira sistemática desde o clássico O impeachment (1965), de Paulo Brossard.
 

A abordagem de Mafei se inicia com as acusações contra os desmandos de um conselheiro real que promovia gastos desenfreados e consequentes aumentos de impostos na Inglaterra do século 14. Já naquele contexto havia preocupação em diferenciar o instituto da mera vingança política, conferindo-lhe, “tanto quanto possível, características de um julgamento”.

Com o fortalecimento do Parlamento na Inglaterra, o impeachment no país perde importância, mas sua centralidade é retomada no debate sobre o presidencialismo que se desenvolve nos EUA. Lá se busca tornar o chefe do Executivo responsabilizável por seus erros, porém sem deixá-lo “excessivamente vulnerável a seus julgadores”. O livro explora as razões que embasam escolhas institucionais como atrelar o impeachment a ilícitos vagos, porém aferíveis (“altos crimes e delitos”), em vez de possibilitar a livre remoção do presidente  pelo Legislativo: há a preocupação de que, a pretexto de coibir abusos, ele possa ser usado de maneira abusiva.

A volta às origens busca identificar as características fundamentais e as motivações das opções políticas que configuraram o impeachment ao longo do tempo e ajuda a entender os dilemas de sua aplicação no Brasil. Sua análise se enriqueceria ainda mais com os casos ocorridos na América Latina a partir da década de 80, aos quais se refere como a “era dos impeachments”, mas sem neles se aprofundar.

Controvérsia

Os arranjos definidos no mundo anglo-saxão são analisados a partir de sua recepção no debate brasileiro. Durante as discussões sobre o decreto de 1892 que regulou os crimes de responsabilidade, debateu-se a identidade ou a distinção das penas de afastamento e inabilitação, optando-se por seguir o modelo estadunidense de separação das duas. A controvérsia ressurgiu durante o impeachment de Collor, com sua renúncia às vésperas do julgamento, e o de Dilma, quando o Senado optou por desmembrar as penas, a despeito do texto da atual Constituição.

A análise contribui para a compreensão não só do impeachment, mas do momento político atual

Mas, diferentemente dos Estados Unidos, ainda no século 19 se optou por adotar o afastamento preventivo do presidente antes do fim do processo, o que vem afetando sua capacidade de oferecer resistência após a aprovação da denúncia pela Câmara.

O livro também mostra como os contornos jurídicos do impeachment foram se delineando: a natureza política do controle que a Câmara exerce sobre a acusação e a necessidade, apesar disso, de garantir o devido processo legal em favor do acusado. E enfatiza a centralidade do instituto na história política brasileira, apesar de críticas como a de Rui Barbosa — de que seria inócuo como um “tigre de palha” ou um “canhão de museu”.

Já no século 19, a disputa acerca da promulgação da legislação de 1892 sobre o tema foi crucial na crise que levou à renúncia de Deodoro da Fonseca. No século 20, a promulgação da Lei do Impeachment, em 1950, se deu como uma reação ao autoritarismo do Estado Novo e uma solução mais branda do que as intervenções federais do passado. Nos anos seguintes, o “impedimento”, um arremedo de impeachment que consistia em afastamento sumário por decreto, foi aplicado contra Café Filho e Carlos Luz sob o silêncio do Supremo Tribunal Federal.

Mafei examina de maneira crítica o papel desempenhado por cada um dos agentes envolvidos, incluindo, no caso Dilma, o Judiciário e seus excessos. Ao agregar à sua análise denúncias que não prosperaram (contra Floriano, Getúlio, Itamar, Fernando Henrique, Lula e Temer), o trabalho mapeia os fatores políticos que têm contribuído tanto para promover como para barrar os processos de impeachment. Dentre eles destacam-se, como barreira, a existência de um “escudo legislativo” composto pela “fidelidade governista” do presidente da Câmara e pela “eficiência da articulação política do governo” no Parlamento e, como incentivo, a presença de um vice-presidente alinhado com o projeto do impeachment.

No epílogo, o autor busca responder a uma pergunta: “Como um presidente que agride a Constituição tão abertamente sobrevive sem que a Câmara tenha nem sequer analisado uma das mais de cem denúncias já apresentadas contra ele?”. Em resposta, identifica obstáculos políticos (em oposição à abundância de razões jurídicas) e aposta em medidas de responsabilização que escapam ao instituto. Com efeito, a análise de Mafei contribui para a compreensão não só do impeachment, mas do momento político atual. Para além disso, oferece aportes valiosos para pensar muitos outros temas relacionados à interação dos poderes, à accountability de autoridades públicas e, de maneira mais ampla, à relação entre direito e política. 

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Juliana Cesario Alvim Gomes

Professora adjunta da UFMG.

Matéria publicada na edição impressa #49 em julho de 2021.