Divulgação Científica,

Negacionismo climático

Má ciência e maus argumentos predominam em ‘Apocalypse Never’, de Michael Shellenberger, que acaba de ser lançado no Brasil

27ago2021 | Edição #48

Pense, por exemplo, na rixa entre os Montecchios e Capuletos em Romeu e Julieta. Ou na clássica guerra entre as famílias Hatfield e McCoye, da Virginia do Oeste e do Kentucky. 

Dentro do campo das ciências ambientais, demografia, ecologia e dinâmicas de recursos, há uma disputa semelhante que já se estende por algumas décadas: o embate entre malthusianos e cornucopianos. Dando prosseguimento ao legado do economista inglês Thomas Malthus, os malthusianos temem que o crescimento exponencial da população humana e das demandas econômicas irão exceder os recursos globais necessários para sustentar as pessoas, ameaçando a sustentabilidade de longo prazo. Por sua vez, os cornucopianos — cujo nome faz alusão ao “corno da abundância” da mitologia grega — argumentam que avanços tecnológicos bastarão para suprir as necessidades da sociedade e que o crescimento econômico irrestrito e o aumento populacional são positivos, pois resultarão em novas boas ideias. 

Resenha

A tensão histórica e os debates intelectuais entre cornucopianos e malthusianos já duram mais de duzentos anos e evoluíram bastante. Em tempos recentes, o debate público sobre as grandes crises globais — como as mudanças climáticas causadas pelo homem, o desflorestamento, a extinção de espécies, a pressão populacional e as novas e cada vez mais graves ameaças à saúde pública — se tornou mais comum, ríspido e ideológico. Com o avanço da ciência, as profundas complexidades e relações entre esses problemas também ganharam maior visibilidade, assim como os clamores para que eles sejam enfrentados com urgência a partir de ações locais, nacionais e globais. 
 

Uma contribuição recente para este debate é o livro Apocalypse Never: Why Environmental Alarmism Hurts Us All (HarperCollins Publishers, 2020), de Michael Shellenberger. Já na introdução, o autor explica que pretende desmentir os argumentos malthusianos que, segundo ele, são irracionais e exageram as catástrofes vindouras; como contraponto, apresenta a visão cornucopiana segundo a qual é possível eliminar os problemas ambientais. Para isso, devemos buscar um crescimento econômico agressivo e avanços tecnológicos simples utilizando cada vez mais os recursos naturais abundantes. Ao assumir essa posição, o autor ecoa os argumentos de autores anteriores a ele, como Herman Kahn, Julian Simon e Bjørn Lomborg.

Os debates climáticos estariam “descontrolados”

Shellenberger se autoproclama um ativista ambiental munido de fatos científicos, opondo-se ao “exagero, alarmismo e extremismo que são inimigos do ambientalismo positivo, humanista e racional”. Ele decidiu escrever este livro porque acredita que “a conversa sobre as mudanças climáticas e os ambientalistas, nos últimos anos, saiu de controle”.

Vozes racionais e análises claras são bem-vindas nos acalorados debates acerca da melhor forma de abordar o nosso problema global. Infelizmente, o livro em questão apresenta falhas graves e fatais. No nível mais superficial, cria polêmicas baseadas em espantalhos: para Shellenberger, cientistas, “jornalistas ativistas”, a “elite instruída” e ambientalistas de grande visibilidade acreditam, de forma equivocada, que o fim do mundo se aproxima, e ainda assim se recusam a apoiar as únicas soluções que o autor julga factíveis — a energia nuclear e o crescimento econômico irrestrito. 

Vozes racionais e análises claras são bem-vindas nos acalorados debates acerca da melhor forma de abordar o nosso problema global. Infelizmente, o livro em questão apresenta falhas graves e fatais

Mas mesmo que o autor tivesse entendido corretamente a complexidade e a natureza dos desafios globais, que não é o caso, e compreendesse a ciência por trás deles, que tampouco é o caso, seu argumento tem uma falha fatal: ele apela à tradicional simplificação exagerada das soluções cornucopianas, depositando sua fé no crescimento econômico e em futuras tecnologias capazes de soluções milagrosas. Como disse o grande jornalista e humorista estadunidense H. L. Mencken, “sempre há uma solução bastante conhecida para todos os problemas humanos — simples, plausível e errada”. Mencken também alertou para o risco daqueles que sempre sabem exatamente o que é certo e o que é errado, um alerta de especial valor ao transitarmos pelos campos incertos e altamente complexos do clima, das pandemias e das mudanças ambientais. 

Ciência ruim, espantalhos argumentativos, fatos fora de contexto e ataques ad hominem contra cientistas, a mídia e outros

Mas há problemas muito mais graves no livro. O autor salta de assunto em assunto, passando de anedotas pessoais a argumentos polêmicos, apresentando dados e números escolhidos a dedo por se adequarem à sua visão. Tudo isso torna difícil para o leitor seguir o fio da meada. A falha mais grave, contudo, é que ele antes assume uma posição e depois busca dados e fatos que embasem essa posição, ao invés de, como pede a ciência, usar dados e fatos para desenvolver, testar e refinar uma teoria. Por consequência, o livro sofre com diversos problemas: falácias lógicas, argumentos emotivos e ideológicos, evocações e refutações de espantalhos argumentativos e uma escolha seletiva de fatos apresentados de forma indevida. Ao mesmo tempo, há uma profusão de erros simples e representações inadequadas da ciência. Para tornar tudo ainda mais perturbador, Apocalypse Never é um livro raivoso, cheio de pérfidos ataques ad hominem contra cientistas, defensores do meio ambiente e a mídia.

O que é novo não está certo e o que está certo não é novo

Fornecerei aqui apenas uns poucos exemplos — para um catálogo completo, seria necessário um novo livro. Para resumir, na obra em questão, o que é novo não está certo e o que está certo não é novo. 

No centro deste livro podemos detectar duas ideias cornucopianas. A primeira é a inexistência de “limites de crescimento” reais; sendo assim, os problemas ambientais seriam resultado da pobreza e seriam solucionados quando todos ficassem mais ricos. Não se trata de uma ideia original: ela já foi refutada antes por outros autores (veja alguns exemplos aqui, aqui e aqui).

Ideia de que a energia nuclear sozinha atenderá às nossas necessidades

A segunda ideia — tema de muitos textos anteriores de Shellenberger — é que o clima e os problemas energéticos podem e devem ser resolvidos simplesmente com o uso de energia nuclear. Ele escreve: “Apenas as fontes nucleares, ao contrário das solares ou eólicas, podem fornecer energia abundante, confiável e barata”, e “apenas a energia nuclear pode atender à alta demanda energética de nossa civilização humana e, ao mesmo tempo, reduzir o nosso impacto ambiental”. Os diversos argumentos de ordem econômica, política, ambiental e social evocados contra a energia nuclear são descartados sem mais nem menos por sua falta de mérito. Por exemplo: “Quanto aos resíduos nucleares, não há método de produção de energia que gere resíduos melhores ou mais seguros. Eles jamais fizeram mal a ninguém, e não há motivos para achar que algum dia farão”. Sua crença apaixonada na geração nuclear como única resposta possível para nossos problemas climáticos (com exceção talvez de uma mega represa no rio Congo, na África) anda junto com a ideia de que as energias alternativas renováveis, que chama de “não confiáveis”, são ruins, porque sua geração é intermitente e de pequena escala, e inviáveis por seus custos econômicos, ambientais, políticos e sociais.

O argumento de que a pobreza e as ameaças ambientais são fatores interligados é, ao mesmo tempo, correto e antigo. Ele guiou esforços internacionais de desenvolvimento, como os primeiros Objetivos de Desenvolvimento do Milênio das Nações Unidas e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que dizem: 

Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável são um plano para alcançarmos um futuro melhor e mais sustentável para todos. Eles abordam os desafios globais que enfrentamos hoje, incluindo aqueles que dizem respeito a pobreza, desigualdade, mudanças climáticas, degradação ambiental, paz e justiça. Todos os 17 Objetivos estão interconectados. (Grifo meu.)

Da mesma forma, os especialistas em ciência ambiental e economia ecológica mais conhecidos já reconheceram há muito tempo que todas as opções energéticas apresentam conjuntos complexos de vantagens e desvantagens ambientais. As áreas do conhecimento de riscos energéticos, análise de sistemas ambientais integrados e economia ecológica vêm tratando deles há décadas.

Escondendo-se atrás de “argumentos-espantalho”

Shellenberger lança mão o tempo inteiro de argumentos-espantalho, derrubando-os um a um. [A prática de atacar argumentos-espantalho descreve a resposta a argumentos que não foram proferidos, em que o “refutador” substitui os argumentos reais de um oponente por outros.] Um dos argumentos-espantalho mais comuns nos debates climáticos é aquele segundo o qual os cientistas afirmariam que as mudanças “causam” eventos extremos, quando, na verdade, os cientistas climáticos fazem uma distinção cuidadosa entre “causalidade” e “influência” — duas coisas bem diferentes. Por sinal, as “ciências de atribuição”, como são chamadas, são uma das áreas de pesquisa mais fascinantes dos estudos climáticos hoje.

Um dos argumentos-espantalhos de Shellenberg afirma que as pessoas atribuiriam incorretamente a causa de eventos extremos recentes (como incêndios florestais, enchentes, ondas de calor e secas) às mudanças climáticas. Ele então desmonta esse argumento. “Muitos culparam as mudanças climáticas pelos incêndios que assolaram a Califórnia, e “os incêndios teriam ocorrido mesmo que o clima na Austrália não estivesse mais quente”. Ele oferece um falto retrato do modo como a mídia noticiou esses incêndios, descrevendo da seguinte forma uma reportagem de 2019 sobre os incêndios na Amazônia publicada no jornal New York Times: “Quanto à Amazônia, o The New York Times relatou, corretamente, que ‘os incêndios não foram causados pelas mudanças climáticas’”. No entanto, Shellenberger tira a citação de contexto: se lermos o texto citado na íntegra, veremos que o jornalista deixa bem claro a “influência” das mudanças climáticas já duas frases depois:

Esses incêndios não foram causados pelas mudanças climáticas. Eles foram, em sua maior parte, iniciados por humanos. No entanto, as mudanças climáticas podem agravar os incêndios. O fogo queima em temperatura mais elevada e se espalha mais depressa em condições mais quentes e secas. (Grifo meu.)

Ele também entende — ou apresenta — de forma muito equivocada a ampla e crescente literatura sobre a relação entre mudanças climáticas e eventos extremos, dizendo: “Mas, até aqui, as mudanças climáticas não resultaram em uma maior frequência ou intensidade de muitos tipos de climas extremos”. Neste trecho ele cita pesquisas ultrapassadas, incluindo um seminário de 15 anos atrás. Na verdade, um corpus vasto e crescente de literatura já demonstrou as fortes conexões entre mudanças climáticas e eventos extremos, incluindo furacões, mortes por calor, enchentes, redução do gelo e outros (veja alguns casos aqui, aqui e aqui), e essa corpus vem crescendo depressa. Por exemplo, em 2019, a Sociedade Meteorológica Americana (AMS, na sigla em inglês) publicou seu sumário anual com 21 análises revisadas por pares sobre o clima extremo de 2018, incluindo uma pesquisa realizada por 121 cientistas de 13 países. A seca severa da região dos Quatro Cantos, nos EUA, ondas intensas de calor na Península Ibérica e no nordeste da Ásia, níveis excepcionais de precipitação nos Estados do meso-Atlântico e o recorde negativo de cobertura de gelo no Mar de Bering foram todos elencados como exemplo desses eventos “provavelmente resultantes de mudanças climáticas causadas pelo homem”. Como apontou Jeff Rosenfeld, editor-chefe da série da AMS, “Já publicamos mais de cem estudos de atribuição nesta série da MAS, e podemos ver como essa ciência está se tornando poderosa. Estudos de atribuição têm nos fornecido conclusões úteis e detalhadas que dão conta da complexidade do mundo real”, escreveu. “Coletivamente, elas atestam de maneira cada vez mais desoladora a influência humana nos extremos climáticos.”

Outro exemplo de grave confusão conceitual é o capítulo em que o autor refuta a ameaça de extinções de espécies. O capítulo está repleto de equívocos temporais, mau uso de datas e incompreensões relativas a taxas de extinção, ecossistemas e funções biológicas. Por exemplo, Shellenberger confunde o conceito de “riqueza” de espécies com “biodiversidade”, e apresenta a espantosa alegação de que:

Na realidade, em média, a biodiversidade nas ilhas ao redor do mundo dobrou graças à migração de “espécies invasoras”. A introdução de novas espécies de planta superou as extinções de plantas em cem vezes.

Segundo essa estranha lógica, se uma ilha tem dez espécies nativas de pássaros que só existem ali e elas forem extintas, mas vinte outras espécies invasoras se instalarem por lá, a “biodiversidade” da ilha dobraria. Esse erro provém de uma incompreensão do estudo que ele cita, o qual indica corretamente que a mera contagem de números de espécies (riqueza, ao invés de biodiversidade) nas ilhas ignora questões fundamentais de biodiversidade impostas pelas espécies invasoras, incluindo a perturbação das interações entre espécies endêmicas, o aumento de instabilidade no ecossistema, a alteração de suas funções e uma crescente homogeneização de fauna e flora.

Outro conjunto clássico de falácias lógicas é o mau uso, a descrição enganosa e a seletividade na seleção de evidências. Shellenberger se considera um cavaleiro heroico cujo objetivo é levar fatos e ciência a um debate movido pelas emoções. “Todos os fatos, alegações e argumentos neste livro se baseiam na melhor ciência disponível […] Apocalypse Never defende a ciência de ponta daqueles que a negam, sejam de esquerda ou direita. Mas não raro seus argumentos se baseiam no uso indevido de evidências, em pesquisas ultrapassadas ou tiradas de contexto, mal compreendidas, apresentadas de forma equivocada ou pura e simplesmente em erros factuais.

Um dos erros mais comuns é seu uso confuso de termos como “pode”, “poderia”, “irá” e “provavelmente irá”. Essas escolhas gramaticais refletem, na maior parte do tempo, o otimismo típico dos cornucopianos, e dão ao narrador a vantagem de poder levar ao público uma história positiva, embora não baseada em evidências reais. Por exemplo, ele afirma:

Quando se trata da produção de alimentos, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) conclui que a produção de produtos agrícolas irá aumentar significativamente em muitos cenários climático. (Grifo meu.)

Seria uma ótima notícia, se ao menos tivéssemos certeza de que é verdadeira e vale para todos os cenários climáticos plausíveis. Mas, na verdade, trata-se de uma má descrição do relatório da FAO de 2018 citado, que analista todos os futuros possíveis e em realidade diz:

As mudanças climáticas já têm efeitos negativos sobre a agricultura, a produção animal e a pesca, sobretudo nos países de baixa e média renda. É provável que esses impactos se tornem ainda maiores no final deste século. (Grifo meu.)

O não enfrentamento das mudanças climáticas, associado, dentre outras coisas, a práticas agrícolas não sustentáveis, tende a aumentar o uso de terras e recursos hídricos, afetando desproporcionalmente as pessoas pobres e exacerbando as desigualdades entre e dentro dos países. Isso tem um impacto negativo tanto na oferta de comida como no acesso aos alimentos.

Há muitos outros exemplos onde o otimismo dele (as coisas “irão” acontecer) prevalece sobre as evidências científicas e incertezas em relação ao futuro. 

Apresentação errônea do que os cientistas de fato dizem ou disseram

Ao discutir a energia nuclear e seus riscos, Shellenberger apresenta de forma incorreta o que os cientistas dizem. Ele afirma: “misturar reatores e bombas foi, como se diz, a estratégia de estimação dos ambientalistas malthusianos”, mas, para embasar essa alegação, ele elenca os trabalhos dos doutores Paul e Anne Ehrlich e John Holdren em seu livro de 1977, Ecoscience. Shellenberger cita algo que os três de fato escreveram: “A quantia de radioatividade de meia vida longa gerada por um reator é mais de mil vezes superior à da bomba lançada sobre Hiroshima”. Mas então ele os acusa falsamente de insinuar que reatores podem explodir feito bombas. “Essa implicação era falsa. Reatores nucleares não podem ser detonados como bombas”. Schellenberger desejava erguer o espantalho de que “ambientalistas malthusianos” não sabem a diferença entre reatores e bombas nucleares; no entanto, no parágrafo anterior à citação que ele reproduz, Holdren e o casal Ehrlich (o primeiro, a propósito, tem parte de sua formação em física nuclear) escrevem estas exatas palavras: “Do ponto de vista físico, é impossível que um reator térmico ou qualquer reator de nêutrons térmico exploda como uma bomba nuclear”.

Este é apenas um dos diversos retratos enganosos que o autor cria das obras dos Ehrlich e de Holdren. Apenas alguns parágrafos mais tarde, por exemplo, ele diz: “Holdren e os Ehrlich precisaram dizer que os combustíveis fósseis eram escassos para se oporem ao emprego de fertilizantes e agricultura industrial em países pobres e recorrerem ao medo da fome”. Isso é o exato oposto do que os três vêm argumentando há muito tempo. Citando o Dr. Holdren: “O que a maioria dos ambientalistas diz sobre isso não é que estamos ficando sem energia, mas que estamos ficando sem meio ambiente — ou seja, ficando sem a capacidade do ar, da água, do solo e da biota de absorver” os impactos ambientais, sociais e de saúde resultantes da queima de combustíveis fósseis. (Grifo meu.)

Outro exemplo da confusão que perpassa as narrativas de Shellenberger é o capítulo “Greed Saved the Whales, Not Greenpeace” (“A ganância, e não o Greenpeace, salvou as baleias”). Seu argumento é que o petróleo barato, exemplificado pela descoberta de petróleo na Pensilvânia, salvou as baleias: “A descoberta de Drake Well levou a uma ampla produção de querosene utilizando petróleo […] salvando assim as baleias”. Apenas uma página depois, contudo, ele reconhece: “Mas então a pesca de baleias voltou, e voltou com força. Entre 1904 e 1978, os baleeiros mataram um milhão de baleias, quase três vezes mais do que haviam extraído do mar antes”. Em seguida ele afirma que óleos vegetais baratos (ironicamente, o óleo de dendê proveniente do desflorestamento no Congo) salvou as baleias, mas reconhece mais uma vez que a matança de baleias em massa continuou.

O que afinal levou à moratória quase total da pesca baleeira? Não apenas mudanças nas forças de mercado, nem as novas fontes de energia, nem “a ganância” ou o aumento de riqueza e prosperidade, como ele argumenta, mas mudanças na opinião pública graças à pressão de grupos ambientalistas e do público em geral. O esquisito é que ele reconhece isso na última frase desse capítulo: “Quando se trata de proteger o meio ambiente e adotar alternativas superiores, a postura pública e ação política são relevantes” — é exatamente essa a razão de ser dos grupos de proteção ao meio ambiente como o Greenpeace, que trabalharam para mudar a opinião pública.

Incerteza científica não é o mesmo que “não sabemos”

Shellenberger entende mal o conceito de “incerteza” na ciência e incorre em um erro clássico ao pensar a incerteza de acordo com seu sentido coloquial (“não sabemos”), e não segundo o modo como os cientistas a utilizam: para designar “um espectro de possibilidades”. Ao discutir os pontos de virada, como a redução das camadas de gelo polar, a destruição de florestas e a perda de espécies na Amazônia, bem como de alterações na circulação dos oceanos, ele diz:

O alto nível de incerteza acerca de cada um deles, bem como um grau de complexidade que excede a soma das partes, torna muitos dos cenários de ponto sem volta não científicos […] não há evidências científicas de que um seja mais provável ou catastrófico do que outros cenários potencialmente catastróficos, como a queda de um asteroide, um supervulcão ou uma pandemia especialmente letal de gripe.

Isso é ao mesmo tempo falso e pouco reconfortante. Em primeiro lugar, níveis elevados de incerteza não são dados “não científicos”, e em segundo, embora a maior parte dos estudos do IPCC e entidades similares não tenha por costume avaliar o risco de catástrofes globais como essas, eles tampouco as descartam, sobretudo se demorarmos demais para agir. O falecido cientista climático dr. Stephen Schneider, ao criticar esse mesmo argumento proferido à época por outro cornucopiano, apontou a importância crucial de analisarmos a probabilidade de riscos extremos concentrados na “cauda gorda” de uma distribuição de probabilidades. Ele disse:

As políticas de mitigação do clima são propostas a sério justamente porque a comunidade científica responsável não é capaz de descartar tais desfechos catastróficos com um nível elevado de confiança.

Assim, quando discutem possíveis riscos climáticos catastróficos, os cientistas não estão sendo “apocalípticos”, mas identificando de forma responsável riscos que devem ser avaliados e discutidos nos âmbitos da ciência, da economia, das políticas pública e da saúde pública.

Outra clássica falácia lógica é tentar desacreditar o argumento de um oponente atacando não o argumento, mas a pessoa e suas motivações — daí a expressão latina ad hominem (“contra o homem”). Ataques ad hominem são frequentes neste livro e prejudicam seu tom e conteúdo. Shellenberger ataca os “ambientalistas apocalípticos” por sua “indiferença, ou pior, despreocupação” com a pobreza, ou por se oporem a uma hidrelétrica gigantesca no rio Congo. Ataca as finanças dos principais grupos ambientalistas e seus líderes, como o falecido David Brower, argumentando que eles receberam doações de empresas produtoras de combustível fóssil para “simular que o fechamento de usinas nucleares se deveria a preocupações com o meio ambiente”. E ataca as motivações, reputações e ciência de muitos ambientalistas e cientistas geofísicos específicos cujos trabalhos contradizem seus argumentos.

A mídia e os cientistas ambientais têm o oposto do “amor à humanidade”?

Mas Shellenberger reserva um nível especial de animosidade à imprensa:

Meios de comunicação, editores e jornalistas deveriam repensar se o seu sensacionalismo constante ao tratar de problemas ambientais condiz com seu compromisso profissional com a justiça e a precisão, e com seu compromisso pessoal de ser uma força positiva no mundo. Embora eu seja cético quanto à probabilidade de que esses ativistas ambientais enrustidos que atuam como jornalistas mudem sua forma de noticiar, tenho esperança de que a concorrência externa às instituições tradicionais de notícias, possibilitada pelas redes sociais, injete um novo grau de competitividade no jornalismo ambiental e eleve os padrões.

Nos exemplos mais perturbadores de vis ataques pessoais, ele sugere que categorias inteiras de pessoas que discordam dele são motivadas pelo ódio à humanidade:

Quando ouvimos ativistas, jornalistas, cientistas do IPCC e outros dizerem que as mudanças climáticas serão apocalípticas, exceto se adotarmos mudanças imediatas e radicais como uma redução massiva de consumo energético, devemos nos perguntar se eles são motivados pelo amor à humanidade ou por algo mais próximo do oposto disso. Devemos lutar contra os ambientalistas malthusianos e apocalípticos que condenam a civilização humana e a própria humanidade. (Grifos meus.)

Nas seções de encerramento, ele argumenta que as pessoas preocupadas com desastres ambientais estão ensejando “uma espécie de fantasia subconsciente para pessoas que não gostam da civilização” e sugere que aqueles contrários às soluções de preferência dele anseiam pela destruição da civilização — um ataque sórdido às motivações de todos os que trabalham na área.

Por fim, o livro está repleto de erros simples. Qualquer livro com tantos números, citações e alegações corre o risco de conter alguns erros, é claro. Mas neste caso são tantos, e tão difusos, que a situação se torna problemática. Um catálogo completo estaria muito além do escopo desta resenha, mas um exemplo é o erro grosseiro que o autor comete ao estimar a quantidade de água necessária para gerar energia. Ele diz: “queimar gasolina ao invés de carvão para gerar eletricidade exige 25 a 50 vezes menos água”. Como demonstrado pelos números concretos das referências que ele mesmo cita, contudo, a diferença é de duas vezes ou menos, e não de entre 25 e 50 vezes. Além disso, em uma importante omissão, ele não aponta que as principais fontes de energia renovável, como células fotovoltaicas solares e eólicas, requerem menos água por unidade de eletricidade gerada que todos os combustíveis fósseis e usinas nucleares. Em sua discussão sobre mudanças climáticas e eventos extremos, ele omite amplas evidências revisadas por pares (como este paper de 2015, dentre muitos outros) mostrando como as temporadas de incêndios se tornaram muito mais longas devido à elevação das temperaturas e a mudanças nos padrões de precipitação. Ele afirma, duas vezes que usinas nucleares produzem “zero poluição” — um exagero impreciso e desnecessário.

O objetivo comum de um “futuro melhor”

Shellenberger sem dúvida apoia e acredita no objetivo de um futuro melhor. O mesmo vale para cientistas ambientais, ativistas e qualquer ser humano decente. As discordâncias existentes se devem a diferentes entendimentos das causas de nossa crise e das soluções ideais para encaminharmos o mundo de hoje a um futuro melhor. Mas polêmicas ideológicas, equívocos e retratos enganosos da ciência, bem como furiosos ataques ad hominem contra outras pessoas que trabalham no mesmo campo, não ajudam em nada o nosso avanço na direção certa.

Há incerteza quanto ao melhor caminho a tomar. Aqueles para quem as evidências demonstram que a trajetória atual ultrapassa limites planetários perigosos e pode levar a perturbações ambientais e sociais não têm como provar que teremos um futuro apocalíptico — apenas argumentam que devemos fazer o possível para evitar isso. Mas tampouco os cornucopianos são capazes de provar que soluções tecnológicas limitadas e o crescimento econômico irrestrito evitará esses cenários catastróficos. Todavia, há uma diferença significativa entre esses pontos de vista: se os malthusianos estiverem errados, terão apenas tornado o mundo um lugar melhor. Se os cornucopianos estiverem errados, desfechos apocalípticos serão uma possibilidade real.

A que conclusão isso nos leva? Identificar, divulgar e trabalhar para evitar futuros desastres ambientais e sociais é de vital importância. Atuei na intersecção entre ciência e política por mais de 40 anos ao trabalhar com questões ligadas a mudanças climáticas, recursos hídricos e conflitos ambientais, e a boa notícia é que soluções positivas e eficazes existem. Sabemos como fornecer água potável e saneamento aos bilhões que ainda não têm acesso a isso. Sabemos que agora devemos trabalhar para cortar a emissão de gases estufa para reduzir a severidade das mudanças climáticas, e, ao mesmo tempo, buscar meios de nos adaptarmos aos impactos que já não podemos mais evitar. Sabemos como aprimorar a eficiência agrícola para produzir alimentos suficientes e levá-los a quem precisa.

O que ainda está faltando são esforços adequados para priorizar soluções, corrigir falhas institucionais e governamentais, mobilizar legisladores e, infelizmente, conversarmos de forma racional uns com os outros para avançarmos de forma ágil e eficaz. Esse livro não contribui para nenhum desses esforços tão necessários. (Tradução de Bruno Mattos.)

Nota do editor: Este texto foi originalmente publicado no Yale Climate Connections em 15 de julho de 2020. 

Quem escreveu esse texto

Peter Gleick

Presidente emérito do Pacific Institute, membro da Academia Nacional de Ciências dos EUA e MacArthur Fellow. Venceu o Prêmio Carl Sagan de Popularização da Ciência em 2018.

Matéria publicada na edição impressa #48 em junho de 2021.