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Autoritarismo na política ambiental

Cronologia dos ataques ao meio ambiente no país revela arsenal de expedientes formais e informais para forçar a passagem da boiada

01set2020 | Edição #37 set.2020

Quando o ministro do Meio Ambiente farejou na pandemia oportunidade para “passar a boiada”, pois a crise sanitária teria gerado déficit de atenção no Judiciário e na imprensa, ele se referia à prerrogativa de criar e revogar normas executivas, ou seja, ao poder da sua caneta de ministro. Contudo, “usar a caneta” para desidratar a proteção ambiental não é a única forma como atos e comportamentos governamentais atingem o meio ambiente. 

Se olharmos o comportamento do ministério desde janeiro de 2019, também detectamos atos praticados no espaço informal de exercício de poder. Estes também podem afetar a proteção ambiental de maneira dramática. Exemplos como discursos depreciativos a ongs e à população indígena, promessas de leniência fiscalizatória e incentivos a criminosos ambientais, entre outros, não podem ser subestimados. A faceta informal do poder aparece nas interações, negociações e comandos cotidianos de autoridade e por isso é mais difícil encontrar seu registro nas páginas dos jornais. 

Avaliar o caráter democrático ou autoritário do exercício do poder político requer observar ambas as suas dimensões — a formal e a informal.  No campo ambiental,  a desregulamentação, o enfraquecimento dos órgãos fiscalizatórios e a legitimação de infrações ao meio ambiente são resultado da combinação das duas coisas. Controlar e neutralizar esses ataques ao meio ambiente demanda a mobilização do Legislativo, do Judiciário e da sociedade civil e a compreensão de tudo que acontece à margem dos procedimentos jurídico-formais. O autoritarismo pode ou não estar publicado no Diário Oficial.

Meio ambiente na mira

Nesta minilinha do tempo sobre autoritarismo na política ambiental, selecionamos episódios exemplificativos em que atos estatais formais e informais contribuíram para a degradação do meio ambiente

jan.2019

Demarcação de terras indígenas sob o Ministério da Agricultura

Em seu primeiro dia de governo, o presidente Jair Bolsonaro edita medida provisória (MP) que reorganiza os ministérios: ele retira atribuições sobre demarcação de terras indígenas e quilombolas do controle da Fundação Nacional do Índio (Funai) e as realoca sob o Ministério da Agricultura. Após a mudança sobre a demarcação ter sido derrubada pelo Congresso Nacional, que converte a MP em lei em junho, ela volta a ser estabelecida por Bolsonaro em uma nova MP no dia seguinte à aprovação da lei, mas acaba sendo declarada inconstitucional pelo STF.

abr.2019

Paralisação do Fundo Amazônia

Decreto extingue comitê que fazia a seleção de projetos para o Fundo Amazônia, iniciativa para combate ao desmatamento na Amazônia Legal formada pelo governo federal, governos estaduais e sociedade civil. Em reação, Noruega e Alemanha, os maiores financiadores do fundo, suspendem suas contribuições em agosto de 2019. Ao cabo de 2019, nenhum projeto é aprovado pelo Fundo Amazônia, fato inédito desde sua criação.

jul.2019

Os dados não condizem com a ‘verdade’

Em entrevista coletiva a correspondentes estrangeiros, Bolsonaro afirma que os dados científicos apontando aumento do desmatamento na Amazônia não correspondem à “verdade”. Os dados haviam sido obtidos pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), vinculado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Comunicações. Segundo Bolsonaro, o presidente do Inpe, Ricardo Galvão, poderia estar “a serviço de alguma ong” (Galvão acaba sendo exonerado). Dias antes, em encontro com integrantes do G20, Bolsonaro disse haver uma “psicose ambientalista” contra o Brasil.

ago.2019

A culpa é das ongs

Bolsonaro declara que  os incêndios da região amazônica podem ter sido provocados por ONGs para “chamar a atenção”, mesmo dizendo estar ciente de que não há indícios que comprovem sua afirmação. Alguns dias antes, Bolsonaro já havia dito que ONGs são “xiitas ambientais” que fazem campanha para difamar o Brasil no exterior. Em outras ocasiões, tanto o presidente quanto seu filho Eduardo Bolsonaro afirmam que o ator Leonardo DiCaprio teria financiado organizações responsáveis por queimadas na Amazônia.

set.2019

‘Cultura’ e ‘questão de sobrevivência’

Diante do maior número de focos de incêndio na Amazônia em relação aos anos anteriores, Bolsonaro discursa na Assembleia Geral das Nações Unidas e justifica que o clima nesta época do ano é desfavorável, e que existem queimadas geradas pela “cultura” e “forma de sobrevivência” de povos indígenas e populações locais. O presidente menciona o que vê como “ataques sensacionalistas” da mídia e acusa o cacique Raoni de servir de “peça de manobra por governos estrangeiros”.  Em novembro, Bolsonaro volta a dizer que os desmatamentos não acabarão, já que seriam culturais.

nov.2019

Prisão de brigadistas

A Polícia Civil do Pará prende preventivamente quatro membros da Brigada de Incêndio de Alter do Chão, acusados de terem promovido incêndios na região em setembro. Em investigações do Ministério Público Federal, não são encontrados indícios de envolvimento dos brigadistas, e as principais suspeitas recaem sobre grileiros. Os brigadistas são soltos e o governador do Pará determina a troca do delegado encarregado do caso. Em 2020, a Polícia Civil indicia os brigadistas, e o Ministério Público Estadual determina maior  investigação por ver que os fatos são insuficientes para uma denúncia.

dez.2019

Mais espaço para grileiros

Medida Provisória altera regras para regularização fundiária e aumenta a área de terras para as quais se poderá declarar posse sem uma vistoria prévia do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), entre outras formas de facilitar a requisição de títulos. Na prática, a medida legitima a grilagem por conceder grandes parcelas de terras públicas a invasores, o que incentiva o desmatamento ilegal — que ocorre com frequência nessas áreas. A MP não passa por votação no Congresso e é substituída por Projeto de Lei em maio de 2020.

abr.2020

Desmate na Mata Atlântica

O ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles assina despacho que coloca em prática parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) de que o Código Florestal deve ser aplicado à Mata Atlântica, em vez da Lei da Mata Atlântica. Na prática, essa interpretação anistia os desmatadores de Áreas de Preservação Permanente até julho de 2008 e vai ao encontro de anseios dos ruralistas. O despacho é revogado dias depois, após a Advocacia-Geral da União protocolar ação no Supremo Tribunal Federal para permitir a aplicação do Código Florestal ao bioma, alegando risco de “profundo retrocesso produtivo”.

abr.2020

Demissão após operação contra os garimpeiros

Ricardo Salles demite o diretor de proteção ambiental do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e outros dois servidores da chefia de fiscalizações depois de uma reportagem do programa Fantástico sobre uma operação contra garimpeiros no Pará. As demissões são vistas por membros do Ibama como retaliação e se juntam a uma série de trocas de pessoal em órgãos de fiscalizações ambientais desde o início do governo.

Quem escreveu esse texto

Adriane Sanctis

Doutora em filosofia e teoria geral do direito, co-organizou o livro Direito global e suas alternativas metodológicas (FGV Direito SP).

Conrado Hübner Mendes

Professor de direito da USP, é autor de Constitutional Courts and Deliberative Democracy (Oxford).

Matéria publicada na edição impressa #37 set.2020 em julho de 2020.