Direitos Humanos, Literatura infantojuvenil,

Viagem silenciosa

Artista peruana narra sem palavras, mas com honestidade e poesia, o drama dos refugiados

01fev2023

Certas histórias causam mais impacto quando contadas em silêncio. Em Migrantes, a artista peruana Issa Watanabe acerta ao ir por esse caminho, relatando a jornada de um grupo que se desloca de um lugar para o outro em um livro sem palavras, no qual tudo é dito por meio de ilustrações.

A ausência de texto, assim como a representação dos personagens como animais, sem características que os identifiquem com uma nacionalidade ou um grupo étnico específico, ajudam a tornar o relato tão universal quanto a problemática que retrata.

A opção pela fantasia ao retratar os migrantes tem o mérito de conectar os leitores à história

São elefantes, coelhos, cabras, girafas, búfalos, tucanos, sapos, galos e rinocerontes, mas poderiam ser sírios ou somalis que se lançam ao Mediterrâneo em barcos precários, haitianos que atravessam a América por terra tentando chegar aos Estados Unidos, venezuelanos que se dirigem a pé para os países vizinhos e tantos outros fluxos de refugiados que coexistem neste instante no mundo. A opção pela fantasia ao retratar os migrantes tem o mérito de conectar os leitores à história. Crianças têm empatia natural por animais, lembrou Watanabe em uma entrevista, e ela define seu livro justamente como uma obra sobre empatia, que pretende despertar um sentimento de solidariedade em relação àqueles que precisam deixar tudo para trás em busca de sobrevivência.

Essa identificação é favorecida pelas caracterização dos personagens, bichos com rostos, expressões, roupas e pertences humanos cheios de detalhes: uma raposa carregando o filhote em um sling azul florido; um coelhinho levando uma mantinha listrada de amarelo e branco; uma pata com lenço vermelho na cabeça e uma malinha na mão.

Sem eufemismos

Quando cai a noite, tecidos estampados que envolvem os poucos pertences de alguns migrantes se transformam em cobertas enquanto o grupo dorme em uma floresta. A cena comovente remete ao que motivou Watanabe a fazer o livro. Em 2015, ano do pico da crise migratória na Europa, o fotojornalista sueco Magnus Wennman registrou crianças sírias dormindo em florestas geladas, barracas de campos de refugiados e ruas de Beirute, em uma série batizada de Where the children sleep (Onde as crianças dormem). Watanabe disse, em uma entrevista à editora que publicou seu livro na Nova Zelândia, que ficou tão sensibilizada pelas imagens de Wennman que fez “a única coisa que conseguia fazer”: desenhar.


A artista peruana Issa Watanabe [Divulgação]

Seu despertar para o tema, porém, ocorreu bem antes, quando viveu em Mallorca no ano 2000 e se aproximou de um dos vários migrantes africanos que chegavam em barcos improvisados à ilha espanhola. Natural do Mali, Abdulai morou em sua casa por um ano e, segundo Watanabe, ensinou-lhe não só sobre as condições de vida que o levaram a se arriscar nessa jornada extenuante como também sobre o que significa se adaptar a um país onde não se é bem-vindo.

Em Migrantes, a viagem dos animais que representam pessoas como Abdulai é contada sem eufemismos — e aí vale o alerta de que a história tem cenas impactantes e pode suscitar questionamentos e reflexões desconfortáveis por parte das crianças.

Uma caveira com manto florido aparece já nas primeiras páginas e, se inicialmente ela parece ser uma migrante a mais, carregando uma mala e caminhando como eles, mais adiante fica claro que se trata do símbolo mais óbvio: é a morte que espreita o grupo em sua trajetória arriscada.

A narrativa tem um encadeamento cronológico e são poucas as ilustrações cifradas, caso da cena em que a caveira encontra um urso polar não antropomorfizado, sem roupas e sem a postura erguida dos demais.

Quando todos entram em um barco abarrotado que navega em águas turbulentas, o leitor que acompanha o noticiário antevê o que vai acontecer. O naufrágio deixa ao menos um morto, cujo corpo é observado com uma tristeza resignada pelos companheiros de viagem. A caveira, então, segura delicadamente a cabeça da vítima, enquanto os sobreviventes seguem a caminhada.

A cena perturbadora é seguida por um vislumbre de esperança, quando os migrantes parecem chegar a um lugar melhor, representado com sutileza pela mudança na cor das árvores do fundo, de cinzentas para coloridas.

O uso de luz e sombra e as expressões carregadas de humanidade dos personagens dão à história uma profundidade tocante. É uma leitura que pode suscitar perguntas difíceis, mas aborda um fenômeno que bate recorde ano após ano — são mais de 100 milhões de pessoas em situação de deslocamento forçado— com honestidade e poesia, menos pelo didatismo e mais pelo sentimento.

Quem escreveu esse texto

Flávia Mantovani

É jornalista especializada na cobertura de migrações