Infantojuvenil,

A mais preciosa carga

Livro inspirado em Alan Kurdi, menino de 3 anos que morreu afogado ao tentar chegar à Grécia de bote com a família, retrata o drama dos refugiados

28nov2018 | Edição #18 nov.2018

No dia 2 de setembro de 2015, a imagem de um menino de blusa vermelha, de bruços numa praia na Turquia, chocou o mundo. Alan Kurdi, de três anos, morreu afogado tentando chegar à Grécia de bote com a família, que fugia da guerra da Síria. Sua mãe e o irmão Galib, de cinco anos, também morreram. Só o pai sobreviveu.

Por um breve momento, as pessoas prestaram atenção na tragédia síria e no êxodo de milhões de refugiados. Jornais escreveram sobre Alan, TVs divulgaram a destruição na cidade dele, comentaristas analisaram o perigo da travessia. A gravidade da situação foi dimensionada: o que levava pais a colocarem seus filhos em botes precários, mesmo sabendo que havia grande chance de não chegarem vivos? De que inferno fugiam essas pessoas?

Aquele lampejo de lucidez mundial durou pouco. Milhares se afogaram depois, tentando chegar ao sonho europeu. A mídia não deu tanta atenção. Nós não soubemos de mais nada, ou vimos algumas imagens na TV e internet, e voltamos ao nosso cotidiano.

Khaled Hosseini não se deixou anestesiar. O afegão, autor do best-seller O caçador de pipas, inspirou-se em Alan Kurdi para escrever A memória do mar. Lindamente ilustrado por Dan Williams e traduzido por Pedro Bial, o livro é uma carta de um pai para seu filho pequeno, Marwan, quando estão prestes a embarcar rumo à Grécia.

O pai rememora com carinho as ruas lotadas e o cheiro de quibe frito da Homs de sua infância, e lamenta que o filho só tenha conhecido a cidade nos tons de cinza dos céus que cospem mísseis, nos enterros e na fome.

A fuga de milhares é retratada com traços simples, sem chão, céu nem contexto. O pai, observando o filho dormindo na praia, tenta tranquilizá-lo em pensamento, mas também tem medo daquele oceano fundo e escuro. E do mundo hostil que os espera se conseguirem chegar. “Ouvi dizer que somos indesejados. Que não somos bem-vindos. Que deveríamos levar nosso infortúnio a outra parte”, diz.

Em poucas palavras e ilustrações angustiantes, Hosseini resume a tragédia de milhões de sírios, afegão, somalis, eritreus e paquistaneses. Ao pai de Marwan, prestes a embarcar, só resta rezar para que o mar saiba quão preciosa é a carga daquele bote.

Quem escreveu esse texto

Patrícia Campos Mello

Jornalista, escreveu Lua de mel em Kobani (Companhia das Letras).

Matéria publicada na edição impressa #18 nov.2018 em novembro de 2018.