Alimentação,

Cultura etílica

A coquetelaria brasileira é uma mistura de rezas, simpatias e garrafadas de raizeiras

19dez2022

Para ajudar a curar nosso complexo de vira-lata, Néli Pereira propõe boas doses de brasilidade para todos: caipirinha é tiro certo, uma garrafada é inconteste. Na ideia de apresentar (e valorizar) a identidade de uma coquetelaria 100% nacional, seu livro Da botica ao boteco é um feito que vai nas raízes populares da nossa cultura no copo — e que percorre também os ramos e as cascas que moldaram nossa forma tão única de beber.


Da botica ao boteco é um feito que vai nas raízes populares da nossa cultura no copo

O subtítulo — “plantas, garrafadas e a coquetelaria brasileira” — avisa que não se trata de um manual (embora traga receitas aqui e ali). O que a jornalista e mixologista propõe é quase um tratado de como a nossa mata diversa e natureza generosa “onde tudo dá” definiram uma coquetelaria que só poderia ter desabrochado aqui.

É na combinação das duas facetas da autora — que passou anos comandando programas de rádio e eventualmente deixou as redações para se instalar atrás de um balcão — que reside a maior força do livro. A narrativa tem, ao mesmo tempo, rigor de boa reportagem e cadência de conversa de bar. Os treze capítulos parecem papo de bartender. Você senta, pede um coquetel e é levado por tempos e paisagens distintas (dos faraós do Egito à dinastia Zhou, na China) ao ouvir sobre a origem da bebida e os personagens que ajudaram a defini-la, em paragens muito além das nossas próprias fronteiras.

Também é interessante a visão crítica de Néli, fruto de uma década de pesquisa incansável em documentos e livros de botânica, história e, sobretudo, sociologia. Ela não tenta diminuir a graduação das doses de anticolonialismo ao citar a “tentativa de extermínio dos povos originários e dos negros” e o “aniquilamento cultural promovido desde os portugueses”. Em vez disso, faz dessa visão um tempero interessante do livro, que não é proselitista nem panfletário, mas não se furta em chamar as coisas pelo nome. Tragos que precisamos engolir.

Já no primeiro capítulo a leitura impõe seu ritmo, uma espécie de As mil e uma noites entre garrafas e elixires. Néli é como uma Sherazade que sabe preparar um bom Sazerac, nos conduzindo por histórias inebriantes, como a de Galeno de Pérgamo, que foi médico do imperador Marco Aurélio e fazia remédios a partir de vinhos, ou do farmacêutico Antoine Amédé Peychaud, que criou em Nova Orleans o Peychaud, bitter que transformou a coquetelaria da cidade e depois se espalhou pelo mundo dos drinques. Ela leva o leitor a conhecer contextos distintos e faz paralelos pertinentes e descrições precisas que nos transportam a outras realidades — ainda que, por vezes, a narrativa mire em tantas direções que cause certa sensação de embriaguez e obrigue a voltar alguns parágrafos. Mas, para quem senta ao seu balcão, é difícil não se deixar seduzir pelo que ela vai preparando a cada rodada.

O livro também pode ser lido a partir de uma visão mais teórica da coquetelaria, já que a mixologista apresenta técnicas e explica conceitos: da decocção (usada para os preparos não alcoólicos) à maceração, passando pela espagiria (aplicação de antigos métodos alquímicos nas plantas). São elas a tônica do trabalho de Néli, que transcorre sua pesquisa por goles e tragos que “começam medicinais e vão, aos poucos, se transformando em elixires, até se tornarem bebidas”.

Curar e embriagar

O trecho mais forte do livro, do ponto de vista conceitual, é o que defende a teoria de que as plantas definiram o gosto no nosso país e as bebidas que comumente passamos a consumir. Jurubeba, catuaba, carqueja e boldo, entre tantas outras, formaram nosso paladar — que vai muito além das batidinhas doces e dos drinques com frutas tropicais. A cultura etílica brasileira é uma mistura das rezas das benzedeiras, das simpatias e das garrafadas das raizeiras. Antes de se tornarem bebidas “recreativas”, elas nasceram como mandingas, como remédios dos saberes indígenas. Como fórmulas feitas de álcool e plantas que sempre estiveram ligadas a ritos e rituais, a crenças e promessas. Primeiramente para curar, depois também para embriagar.

Os capítulos de Da botica ao boteco têm nomes de poções mágicas — “elixires para dragões dormirem”, “curas que remediam negócios” — e essa aura quase esotérica paira sobre a leitura em uma mistura mandingueira e alquímica, de crenças populares e de ciência botânica. Pode invocar até um certo tom de bruxaria, de sagrado, mas, ainda que conjure a umbanda e o catolicismo, o livro nunca perde seu tom “técnico-científico”, mesmo que não necessariamente do ponto de vista formal. Reconhece, por exemplo, que o que os índios faziam antes mesmo dos estudos das plantas se tornarem um ramo do conhecimento na Europa já era também carregado de saberes.

Jurubeba, catuaba, carqueja e boldo, entre tantas outras plantas, formaram nosso paladar

É por uma busca pela identidade nacional (sem ufanismos) que Néli traz para a conversa cajás, araçás, tucumãs, aroeiras e uvaias que dizem muito mais de nós, talvez, do que o coco ou o abacaxi que se tornaram tão mais comuns nos nossos drinques — muitas vezes adornados com guarda-chuvinhas coloridos em uma visão turva sobre nosso próprio tropicalismo. Para ajudar a nos convencer, ela chama ao balcão figuras como Mário de Andrade (encarnado em Macunaíma), um cacique tupi-guarani e uma vendedora (e alquimista!) de garrafadas no mercado Ver-o-Peso, em Belém, que ajudam a tornar a experiência mais divertida.

Depois, nos conduz aos botecos — puro extrato de brasilidade — para sujar os pés e lavar a alma entornando amarguinhos e um bom rabo de galo, a nossa linguagem própria do coquetel, moldada com cachaça, Cynar e limão. Quando a conversa fica mais calibrada, Néli bate na mesa e propõe uma rebelião: “Vá contra as recomendações jesuítas, católicas, apostólicas, romanas que tanto fizeram para afastar nossas identidades, prevenir nossas mandingas e arruinar nossos encontros”. É o único momento em que enche o peito e sobe o tom em defesa de honrar os povos originários, fazer os ritos, dar os goles. Com seu livro em mãos — uma obra bonita e engrandecedora para a coquetelaria brasileira, que ainda tropeça em busca de sua identidade —, é difícil não se juntar ao coro. Assim sendo, desce mais uma. 

Quem escreveu esse texto

Rafael Tonon

Escreveu As revoluções da comida: o impacto de nossas escolhas à mesa (Todavia).