Divulgação Científica,

Plantas de poder

Sidarta Ribeiro investiga as ligações ancestrais entre humanidade e cannabis, enquanto aponta o racismo como marca das políticas proibicionistas

22nov2023

No século 19, Charles Baudelaire poetizou a expulsão do homem do Paraíso e os conceitos de amor, exílio, tédio, tempo e morte. Na tentativa de expor o caráter do indivíduo, a primeira publicação de As flores do mal foi alvo de críticas do jornal francês Le Figaro, que o acusou de “insultar os bons costumes”. Processado por ofensa à moral pública, Baudelaire teve a obra censurada e seis poemas foram proibidos, acusados de imoralidade, indecência e blasfêmia. 

Dois séculos depois, o neurocientista Sidarta Ribeiro referencia o título da obra-prima do poeta maldito em As flores do bem: a ciência e a história da libertação da maconha, ao elaborar um tema que vem se tornando cada vez menos proibido em sociedade. O que Ribeiro chama de “libertação” faz parte do movimento mundial que busca regularizar o uso recreativo e terapêutico, a posse, o cultivo e o comércio da cannabis e seus derivados. 


As flores do bem: a ciência e a história da libertação da maconha, de Sidarta Ribeiro

Partindo da pesquisa histórica sobre o uso milenar da planta por povos originários e de estudos científicos, que evidenciam os seus benefícios no tratamento da epilepsia, depressão, Alzheimer e Parkinson, o livro surge em um momento-chave para o debate da descriminalização da maconha no Brasil. Em agosto de 2023, o país observou os primeiros sinais de um retorno ao assunto, pautado pelo Supremo Tribunal Federal. Após cinco votos a um a favor da descriminalização, o ministro do STF André Mendonça pediu o adiamento da pauta por noventa dias para uma maior análise do processo. Entre os que já votaram, há o comum acordo em estabelecer critérios objetivos que diferenciem o traficante do usuário, bem como a necessidade de determinar quantidades-limite para o porte.

Em entrevista para a Quatro Cinco Um, o neurocientista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) analisa a longa história do debate sobre a legalização da maconha e as mortes que leis proibicionistas e a guerra às drogas provocaram nas parcelas mais vulneráveis da humanidade. Fazendo uso de todos os conceitos baudelairianos, Ribeiro emprega o amor ao evocar memórias sobre a planta na própria família e a iluminação que um debate baseado em informação pode gerar.  

Na introdução, você conta que, quando era adolescente, maconha era um tema polêmico na sua família. Houve avanço nesse debate?
Não há nenhuma dúvida de que houve muitos avanços, tanto na minha própria família, como relato em As flores do bem, quanto na sociedade de forma geral. Hoje, quase 75% da população brasileira se declara a favor do uso terapêutico da maconha. Isso certamente não era assim há dez anos, e muito menos há vinte. O avanço vem da desconstrução de uma série de mitos e mentiras construídas em torno da cannabis.

Quais campos ajudaram na discussão da liberação da maconha?
A ciência e a história ajudaram as pessoas a ter uma posição mais equilibrada e bem informada, porque é muito mais difícil manter o estigma que foi construído sobre a planta se as pessoas entenderem que o corpo produz substâncias análogas àquelas contidas na maconha; se entenderem que ela é um remédio muito antigo, cultivado desde o início do período Neolítico; que está presente em inúmeras culturas e que foi muito importante para a própria expansão do ser humano na superfície do planeta.

Quais são as novidades sobre os efeitos terapêuticos das substâncias da maconha? 
As primeiras aplicações terapêuticas da maconha e de outras plantas e fungos que contêm substâncias psicodélicas são advindas das descobertas de povos originários da Ásia, África e América, variando de acordo com a origem da substância. No caso da cannabis, tudo indica que o cultivo inicial tenha sido na China. No entanto, é difícil dizer que não há novidades, porque atualmente entendemos os mecanismos por trás delas. Sabemos que a cannabis tem propriedades antitumorais, e essa é uma descoberta feita recentemente, há aproximadamente dez anos. Alguns achados arqueológicos sugerem que os povos originários já tinham ideia de que a planta pudesse ajudar nesses quadros, o que não quer dizer que não seja uma novidade entender os mecanismos pelos quais isso pode acontecer.

Outra novidade gira em torno do uso do THC contido na maconha, e também de outros canabinóides, como o canabinol, que podem reduzir e mitigar os sintomas do Alzheimer e potencialmente até reverter o declínio cognitivo que acompanha a evolução da doença. Isso tudo é bastante novo do ponto de vista biomédico, mas é possível que os povos ancestrais já utilizassem a maconha com essa finalidade, possivelmente sem compreender todos os mecanismos biológicos que estão sendo decifrados agora pela ciência. 

Quais são as marcas deixadas pelas políticas proibicionistas?
A maconha foi proibida por questões fundamentalmente econômicas e racistas, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos e em outras regiões do planeta. Essas marcas são muito profundas, porque se hoje o uso da cannabis terapêutica está se tornando um consenso em boa parte do mundo, por outro lado continua sendo alvo de perseguição. E isso significa uma perseguição a pessoas. Pessoas brancas e de classe média que fazem uso raramente experimentam qualquer problema sério com agentes da lei; o que é exatamente o oposto com pessoas oriundas de favelas, comunidades periféricas e em vulnerabilidade, principalmente pretas e pardas. 

O fim da guerra às drogas e o fim da guerra à maconha é o início de uma transformação profunda

O racismo tem papel central nesse debate, porque foi justamente o que motivou a proibição de certas drogas. Na verdade, essa proibição não é às drogas, mas sim às pessoas e aos hábitos e modos de viver da comunidade. A guerra contra as drogas é uma guerra contra as pessoas, porque não existe nenhuma substância que seja tão perigosa que justifique a polícia subir o morro e matar uma criança que estava indo para a escola dentro de uma Kombi. E essa situação precisa ser interrompida para reduzir o superencarceramento que vem ocorrendo em todo o planeta e no Brasil de maneira muito evidente. O país tem a terceira maior população carcerária do mundo, e em condições absolutamente abjetas, que são uma verdadeira tortura, como um tipo de inferno em vida. 

O fim da guerra às drogas e o fim da guerra à maconha é o início de uma transformação profunda para que possamos reduzir todas essas tensões e reparar a situação. Em Nova York, o licenciamento necessário para vender maconha de uso terapêutico ou recreativo vem sendo obtido por pessoas que anteriormente foram condenadas por posse de maconha. Existe uma intenção de reparar o mal que foi destinado a essas comunidades, de maneira a repassar os benefícios de um mercado legal. O Brasil está muito longe dessa situação, mas é nessa mesma direção que temos que ir.

Na Flima (Festa Literária Internacional da Mantiqueira), você falou que hoje é um homem religioso por conta da cannabis. Ela mudou sua relação com o espiritual? 
Minha crença pessoal e a maneira como me relaciono com as minhas divindades é totalmente compatível com as minhas crenças como cientista. Acredito que essas divindades e entidades existem dentro de mim, moram no meu corpo, habitam o meu cérebro e também outras partes. Tenho uma visão neurobiológica da relação com as entidades que, para muitas religiões, são extracorpóreas e habitam outras dimensões. Isso não quer dizer que eu negue peremptoriamente essa possibilidade, porque pode ser muito saudável e favorável para a vida pessoal, afetiva e profissional de quem acredita.

O que a ciência tem a dizer sobre seres de outras dimensões? Nada, porque a gente nunca observou essas dimensões de fato, então ainda são apenas possibilidades teóricas. O filme Interestelar (Christopher Nolan, 2014), por exemplo, imagina uma possibilidade que é compatível com a física e física teórica atuais, de que seria possível interagir com seres que estão no futuro — e inclusive consigo mesmo no futuro. Essa ideia ainda é ficção científica, mas pela compatibilidade com as teorias da física, poderia ser uma explicação para fenômenos ditos espirituais e muitas outras explicações possíveis que possam estar aninhadas na nossa profunda ignorância. Precisamos manter a humildade e entender que sabemos pouco do Universo. 

Pessoalmente, acho mais parcimonioso acreditar que essas interações com entidades luminosas são interações no âmbito do inconsciente, ou seja, no âmbito do corpo e, mais precisamente, do cérebro de cada pessoa. É o que acredito e o que me ajuda a viver, mas de forma alguma é a única explicação possível. Acho que devemos nos manter céticos em relação a quaisquer hipóteses e, ao mesmo tempo, muito tolerantes e respeitosos para não cercearmos a liberdade da crença do outro.

Precisamos arregaçar as mangas e de fato concretizar esse sonho coletivo de futuro

Ailton Krenak pensou em ideias para adiar o fim do mundo. Ainda temos tempo para sonhar um futuro?
Ailton Krenak tem nos alertado para a urgência desse momento, com uma visão muito realista, que para algumas pessoas é pessimista, mas, ao meu ver, é apenas realista. Eu tenho dialogado e aprendido muito com ele, na perspectiva de que sim, temos tempo para tentar mudar esse futuro, para tentar sonhar novas formas de estar no mundo, com uma pegada mais leve, de maneira mais cooperativa e menos competitiva. Ainda temos tempo? Bom, se estamos tendo essa conversa, isso indica que o tempo ainda existe. Precisamos arregaçar as mangas e de fato concretizar esse sonho coletivo de futuro. Meu otimismo vem da constatação de que nós temos na nossa bagagem cultural muitíssimos elementos para construir um futuro. A questão é se nós temos a sabedoria necessária para fazer isso.

Como reaprender a sonhar em tempos de crise climática, capitalismo acelerado e conflitos internacionais?
Esse é o ponto: se a gente não sonhar, não tem saída. Esses mecanismos estão em funcionamento, são muito eficazes e, de certa maneira, se nós não fizermos nada, nosso fim trágico é garantido. O que precisamos fazer nesse primeiro momento é cuidar da saúde individual, mental e física de cada um, através de hábitos mais saudáveis. Mas também precisamos ir além desse sonho individual, desse sonho do próprio umbigo, e começar a compartilhar nossos sonhos, desejos e medos, para tentar encontrar os caminhos de redução das tensões e dos conflitos, e de ajuste de conduta para todas as pessoas que exercem privilégios, conscientemente ou não, de forma a quebrar essa inércia da destruição que está em curso.

Os jovens estão mais atentos à construção de um futuro ligado às práticas e saberes ancestrais?
Sim e não. Em vários países, as novas gerações parecem vir equipadas com uma crítica a essa realidade. Os adolescentes e as pessoas mais jovens têm bem menos preconceito do que a minha geração — que hoje tem por volta de cinquenta anos —, quando vivenciamos a adolescência nos anos 1980. Questões de classe, de gênero, de raça e de orientação sexual parecem estar bem mais resolvidas nessa geração. Mas isso é uma generalização. Estamos falando de quais jovens? Do outro lado da moeda, temos o aprofundamento da solidão, causado sobretudo pela epidemia das telas; o afastamento entre as pessoas e a redução do tempo para exercitar a imaginação. 

Isso tudo está acossando a juventude. Atualmente, muitos sequer têm expectativas para o futuro ou o veem sob uma perspectiva muito distópica. Se perdemos a esperança dos jovens, que são aqueles que realmente querem modificar o status quo, estamos perdidos. O momento é de ouvi-los e, ao mesmo tempo, ajudá-los a criticar o mundo em que estão metidos, sobretudo na questão da conexão virtual em detrimento da conexão real, tempo real, pessoas, corpos, olho no olho, sentindo o cheiro e a temperatura do outro. Isso tudo parece estar em risco de extinção. É preciso proteger filhos, netos e sobrinhos desse achatamento da experiência imaginária.

Quem escreveu esse texto

Jaqueline Silva

É estudante de Jornalismo na ECA-USP e estagiária editorial na Quatro Cinco Um.