Coluna

Bianca Tavolari

As cidades e as coisas

Versão brasileira

Reedição de catálogo raro dos anos 1940 mostra como invenções arquitetônicas deram ‘tempero especial’ ao projeto modernista no país

01jan2024

Era 13 de janeiro de 1943. Ainda que a data específica possa dizer pouco, foi nesse dia que Adolf Hitler declarou a guerra total contra os países aliados, corroborado por um discurso do ministro Joseph Goebbels um mês depois. Foi também neste dia que o primeiro-ministro britânico, Winston Churchill, aterrissou em Casablanca para uma conferência dos aliados. Ao mesmo tempo em que as principais peças do tabuleiro da Segunda Guerra Mundial faziam movimentos decisivos, o Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA, inaugurava a exposição Brazil Builds: Architecture New and Old (1652-1942).


Brazil Builds: Architecture New and Old (1652-1942) / Brasil constrói: arquitetura moderna e antiga (1652-1942), de Philip L. Goodwin, é permeado pelas tensões geopolíticas do panorama de confronto da época

O arquiteto Philip L. Goodwin, curador da mostra, empreendeu uma expedição ao Brasil em 1942, com o fotógrafo George Everard Kidder Smith. A exposição ficou aberta ao público até 28 de fevereiro e ocupou quase todo o primeiro andar do museu. Segundo Goodwin, “um estudo in loco da arquitetura brasileira é um tanto difícil em condições de guerra” — e pode parecer altamente despropositada nesse contexto, mas foi justificada pelo amplo interesse na construção moderna desenvolvida no país, “futuro aliado”.

Oitenta anos depois da mostra e da publicação de seu catálogo, item raro e de desejo para qualquer pessoa que se interesse pela história da arquitetura, a editora Ikrek lança uma versão brasileira, corrigida e atualizada, mas mantendo em grande parte o texto inicial. Assim como o original, a nova edição é bilíngue, mas com traduções mais adequadas ao português. Acrescenta, ainda, três textos de comentários ao final: de Mônica Junqueira, da Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo; de Martino Stierli, atual curador do MoMA; e de Pedro Vieira, editor do livro.

Brazil Builds ou, na nova tradução, Brasil constrói — o título original era Construção brasileira —, é permeado pelas tensões geopolíticas do panorama de confronto. O Brasil de Vargas já havia declarado guerra contra a Alemanha e a Itália depois de ter seus navios mercantes torpedeados em agosto de 1942, mas só enviaria soldados ao campo de batalha em 1944. O Rio de Janeiro ainda era a capital do país. Não havia sinais do projeto de Brasília. Mas ainda assim a arquitetura moderna brasileira chamava a atenção internacional.

O livro permite entender como o Brasil construiu seu moderno amalgamado com o atraso ditatorial

Segundo Goodwin, mesmo antes do governo Vargas, já havia experiências brasileiras em arquitetura moderna, que teriam se espalhado “como um incêndio”: “Quase de um dia para o outro, mudou a cara das grandes cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, onde teve sua mais entusiasmada recepção”.

Tanto a expedição quanto o destaque no museu se justificavam porque o movimento moderno brasileiro ia, reconhecidamente, para além da recepção de ideias modernas estrangeiras, gestadas por nomes como Le Corbusier e os Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna — ciam. O que chamou a atenção de Goodwin foram as invenções arquitetônicas brasileiras para vencer o clima tropical e manter as principais premissas do projeto moderno:

Sua grande e original contribuição para a arquitetura moderna é o controle do calor e da luz nas superfícies de vidro por meio de persianas externas. A América do Norte tem sido indiferente a toda essa questão. Submetido ao intenso sol do oeste no verão, um prédio de escritórios comum parece uma estufa com suas janelas duplas semicerradas e desprotegidas. Foi a curiosidade de ver como os brasileiros lidaram com esse importantíssimo problema que motivou nossa expedição.

O quebra-sol ou, em francês, brise-soleil, despontava como estratégia arquitetônica definidora da modernidade brasileira aos olhos estrangeiros. As persianas externas podiam integrar as fachadas com lâminas horizontais ou verticais, móveis ou fixas. O Ministério da Educação e Saúde Pública, hoje Palácio Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro, é eleito como a obra mais bem-sucedida no uso dos brises, dando leveza à estrutura do prédio. Treliças de cimento e o cobogó, tijolo perfurado, cumpriam a mesma função, conferindo “tempero especial” ao projeto desenvolvido no país. Ventilação e controle da luz, por um lado, a demarcação das fronteiras entre dentro e fora, por outro, trazendo privacidade diante do vidro do chão ao teto.

Demolições

Algumas descrições de 1942 impressionam pela capacidade de nos teletransportar para os dias de hoje: 

Diz-se que quatro casas e meia foram construídas em São Paulo a cada hora em 1941. Nessas condições, as regras para a construção tornam-se flexíveis e a visão de longo prazo é sacrificada pela pressão por altos aluguéis.

Demolições de construções baixas para dar lugar a prédios com quinze andares eram algo do plano do espanto para um observador estrangeiro qualificado: “Nem mesmo Detroit ou Houston conseguem igualar a velocidade de crescimento em São Paulo ou no Rio de Janeiro em 1940-1941”.

Brazil Builds conferiu projeção internacional à arquitetura moderna brasileira quando Lina Bo Bardi ainda sequer havia pisado em território nacional. É certo que não há menção às casas modernistas de Gregori Warchavchik, construídas entre 1928 e 1930 e ícones do que viria a ser denominado “moderno”. Também há pouquíssimo espaço dedicado ao contexto ditatorial ou às clivagens sociais e raciais, tanto na arquitetura “nova” quanto na “antiga”, colonial, explorada na primeira parte do livro. No entanto, a nova edição é preciosa e já nasce histórica. Com fotos bem tratadas, mapas e plantas inteiramente refeitos, o livro abre caminho para entender como o Brasil construiu seu moderno amalgamado com o atraso ditatorial, em meio a tensões de guerra e com soluções que permitiram, ao mesmo tempo, iluminar e esconder.

Quem escreveu esse texto

Bianca Tavolari

É professora da Fundação Getúlio Vargas e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).