Design,

A beleza não tem estofo

Incorporados ao acervo do MoMA, móveis da Baraúna revelam os êxitos e os percalços do design brasileiro

09nov2018 | Edição #4 ago.2017

Os móveis espelham os homens. Só que eles não refletem nossa imagem diretamente, tal como as fotos, e sim pelo avesso, já que nada mais são do que a materialização da forma humana ausente. Moldados a partir do nosso corpo, esses utensílios não só oferecem um suporte físico às nossas ações, mas também expressam nossa forma de ver o mundo e o modo como queremos ser vistos pelos outros. Lançado para festejar os trinta anos da empresa, o livro Marcenaria Baraúna: móvel como arquitetura traz, em seus ensaios, muitos subsídios para repensar a função do design na vida cotidiana.

“A configuração do mobiliário é uma imagem fiel das estruturas familiais e sociais de uma época”, diz o filósofo Jean Baudrillard. Segundo ele, o interior burguês tem um aspecto patriarcal: cada um dos cômodos possui uma função, e neles os móveis se contemplam e se oprimem em “uma unidade que é menos de ordem espacial que de ordem moral”, pois têm o dever primordial de ostentar a riqueza e o status social de seus proprietários.

Criada em 1986 pelos arquitetos Francisco Fanucci, Marcelo Ferraz e Marcelo Suzuki, desde o início a Baraúna rejeitou a simbologia do poder embutida no mobiliário das classes proprietárias e se inspirou nos utensílios simples e funcionais das camadas pobres. Em razão desse interesse pela arte popular, “a Baraúna chegou a ter uma coleção de mais de quarenta banquinhos adquiridos pelo interior do país”, observa Mina W. Hugerth no primeiro ensaio do livro.

Esse desígnio se manifestou logo nos primeiros artefatos feitos pela empresa: a linha Girafa e a cadeira Frei Egídio. As peças se destinavam a equipar dois projetos tocados por Lina Bo Bardi em Salvador: o restaurante da Casa do Benin e o Teatro Gregório de Mattos. Como explica Ethel Leon, nos dois casos os designers resgataram conhecimentos acumulados desde a Antiguidade: a cadeira Girafa é uma “releitura do sgabello Strozzi, com longo e fino encosto, datado do Renascimento florentino”, enquanto a Frei Egídio se baseia na longa linhagem de cadeiras dobráveis que “já se encontravam no Egito faraônico”.

O romancista Tom Wolfe reclamava de uma cadeira de Le Corbusier que ‘acertava o incauto na altura dos rins como um golpe de caratê’

O objetivo desse processo criativo não é abastecer o mercado de novidades, mas descobrir as soluções mais eficientes para cada demanda. Segundo Leon, a Baraúna não lança coleções sazonais: mantém um catálogo estável, incorporando itens criados para espaços específicos. Tanto a cadeira Girafa como a Frei Egídio são produzidas até hoje — em 2016, foram incorporadas ao acervo do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMa).

Desprezo pelo conforto

Os projetos, contudo, não se afastam do mobiliário burguês unicamente por suas raízes populares: eles exprimem uma ideia de conforto que não se ajusta bem às expectativas. Leon assinala que tanto a cadeira Girafa quanto a Frei Egídio “têm em comum o desprezo pelo conforto dos estofados que solicitam do corpo algo como a postura de Oblomov, a lassidão indecisa sobre o trabalho no mundo”, o não fazer como “modo de estar no mundo”. Esse “conforto duro” exige do homem uma atitude mais ativa em relação ao mundo. Tal exigência, contudo, tem suscitado grandes discussões na intelectualidade ocidental.

Em seu Sistema das Belas-Artes, o filósofo francês Alain defende essa noção de “conforto duro”: “Qualquer um pode comprovar que, nas boas cadeiras, estamos bem sentados, mas não encostados”. Se o abandono e a languidez predominam, até a inteligência falta: “O homem que não tem nada de bom para dizer não se sustém”.

Tal austeridade, contudo, não agrada à elite, como aponta Carolina Martins Pulici em sua tese O charme (in)discreto do gosto burguês paulista: os ricos preferem um mobiliário confortável e requintado, e rejeitam objetos de “design contemporâneo exagerado”.

O romancista Tom Wolfe oferece uma boa amostra das críticas ao modernismo. Segundo ele, ninguém se sentava numa cadeira de Le Corbusier porque ela “acertava o incauto na altura dos rins como um golpe de caratê”, enquanto as cadeiras em forma de S de Mies eram tão instáveis que invariavelmente levavam um convidado a enfiar a cara no prato durante o jantar. Filósofos conservadores como Roger Scruton dizem que os utensílios modernos são funcionais só na aparência, mas mesmo pensadores progressistas, como Theodor Adorno, têm a mesma opinião: “Quase todo consumidor deve ter sentido na pele a pouca praticidade do impiedosamente prático”.

Em seu ensaio sobre a Baraúna, Frederico Duarte também condena a disfuncionalidade do mobiliário contemporâneo. Segundo ele, muitos designers não criam coisas, e sim simulacros de coisas: esses “comerciantes de imagens” criam objetos que se destinam exclusivamente a ilustrar livros e revistas de design. Isso, diz Duarte, não ocorre com as peças da Baraúna: “Seus móveis são coisas que servem para sentar, para deitar, para usar no dia a dia. E para olhar também”.

Qual é então a clientela do mobiliário moderno? As frações intelectuais da classe média, as mesmas que admiram o funcionalismo e rejeitam as vagas ecléticas (neoclássico, mediterrâneo, cottage). Era o que já sucedia com os móveis da Unilabor, desenhados pelo concretista Geraldo de Barros, que se tornaram o cartão de visita de professores universitários, “gente que vinha da Europa, que tinha feito tese”, escreve Mauro Claro em seu livro sobre a fábrica. Neles, a ostentação simbólica da riqueza cedia lugar a um discurso funcional e ascético, que encontrou eco em instituições públicas (museus, centros culturais, Sesc).

Mas, apesar da inspiração popular, os móveis são considerados caros: uma cadeira Girafa, por exemplo, custa R$ 1.243. A questão, diz o economista John Hobson, reside em saber se devemos consentir que o preço seja o grande regulador das decisões humanas. A produção mecanizada é sempre mais barata porque repete a mesma forma em todos os bens, contudo não atende às carências de pessoas diferentes. “Enquanto os consumidores concordarem em sufocar sua personalidade” consumindo objetos idênticos, “a maquinaria os abastecerá”. Em vez de gastar toda a renda adquirindo muitos artigos baratos, dizia ele, talvez fosse melhor comprar menos produtos, porém bem adaptados às nossas necessidades. 

Quem escreveu esse texto

Mauricio Puls

É autor de Arquitetura e filosofia (Annablume) e O significado da pintura abstrata (Perspectiva), e editor-assistente da Quatro Cinco Um.

Matéria publicada na edição impressa #4 ago.2017 em junho de 2018.