Literatura,

Mulher, lésbica, muçulmana

Escritora francesa causou polêmica com livro que trafega entre romance, autoficção e autobiografia

20dez2022 | Edição #65

Ela se chama Fatima Daas.
Fatima é um nome simbólico no islã. O mesmo da filha mais nova do profeta Maomé, por isso, deve ser honrado. Mas Fatima não sabe se o carrega bem.
A família de Fatima é argelina. Caçula de quatro irmãs, ela foi a única a nascer na França.
Fatima tem asma desde criança. Sua doença é crônica.
Fatima é lésbica. Uma lésbica muçulmana.

Cada um dos capítulos de A última filha começa com variações de sentenças como essas, que introduzem mais uma peça ao quebra-cabeça que compõe a personalidade da narradora. Fatima fala de si em frases enxutas, textos curtos, linguagem simples e ordem atemporal. Sua história flui agradavelmente, revelando o cotidiano de uma adolescente “instável” que se torna uma jovem adulta lidando com as contradições de ser lésbica/muçulmana/francesa/argelina. Mas não é só isso o que faz deste um romance notável. Sua autora, na verdade, não se chama Fatima Daas, e tampouco se trata de uma autobiografia — ainda que muitas das vivências espelhem as da escritora de nome secreto, que também é franco-argelina, muçulmana e lésbica.


A última filha, de Fatima Daas

“Comecei a escrever um texto superíntimo sobre minha relação com o islã e a homossexualidade. Foi um daqueles momentos em que as coisas explodem e é preciso compartilhar a cólera, a vergonha e a tristeza para se transformar”, explica a autora em entrevista à Quatro Cinco Um. “Quando me dei conta de que jamais havia falado sobre esses temas na escola, com minhas amigas, minha família ou minha companheira, criei uma protagonista para me colocar à distância. Foi assim que nasceu Fatima”, diz ela. “Minha editora ficou brava quando eu disse que assinaria sob o pseudônimo. Ela achava que isso dificultaria a divulgação e poderia indicar que tenho algo a esconder, mas não é verdade. Precisava me desconectar da pessoa que sou. Não é separar o personagem da artista, mas uma necessidade de reinventar outro mundo e a mim mesma”.

O enigma de sua identidade somado ao inusitado da temática alimentou a curiosidade sobre a autora 

O efeito, claro, foi o contrário do temido pela editora: este virou o ponto de maior interesse sobre a autora de A última filha. Para Fatima, a repercussão se deve ao fato de ela ser mulher. “Quando se trata de uma escritora, há a necessidade de saber se o que ela está dizendo é verdade, enquanto que, para os homens, ninguém nem pensa a respeito. Todos eles fazem isso, mas nós, mulheres, nos fechamos. As pessoas se decepcionam quando falamos de escrever sobre a vida e as emoções”, defende Fatima. “Minha família é argelina. Sou a única a nascer na França e, como a personagem, também fui boa aluna, escrevo, sou lésbica e muçulmana. Mas todos os episódios foram modificados”, diz ela. “É evidente que as relações amorosas, familiares ou de amizade de A última filha são inspiradas no que vivi, no que descobri, no que ouvi, mas sempre adiciono histórias. Tenho necessidade de criar”.

Autora revelação

O enigma sobre sua verdadeira identidade, somado ao inusitado da temática — e ao fato de Fatima ter 24 anos quando o livro foi publicado, em 2020 —, alimentou a curiosidade do público sobre a misteriosa escritora de cabelos curtos e cacheados, olhar expressivo e visual andrógino. Os prêmios conquistados por A última filha — entre eles o Macondo, de melhor romance, e o da revista Les Inrockuptibles, de romance estreante — levaram a mídia francesa a comparar Fatima ao escritor Édouard Louis, creditado por “renovar” a cena literária francesa na década passada ao tratar de experiências familiares e homossexuais inspiradas em sua própria trajetória, sob a perspectiva de um jovem oriundo da classe trabalhadora.

Mas mesmo que, ao contrário de Louis, a obra de Fatima não seja autobiográfica, sua vida pessoal tem se sobreposto à crítica literária de seu livro. Em uma de suas entrevistas de maior impacto, transmitida ao vivo em horário nobre na Radio France, uma jornalista questionou Fatima sobre orientação sexual e religião. “Em A última filha, eu afirmo que homossexualidade é pecado no islã, assim como em todas as outras religiões monoteístas”, diz a escritora. “Então ela [a apresentadora] perguntou se, sob essa lógica, eu seria considerada uma pecadora, e eu respondi que sim. Depois disso, começaram a dizer que eu era homofóbica, que os adolescentes homossexuais da periferia iam se suicidar por minha causa. Foi uma loucura porque não sou eu a inimiga. Quem ficou surpreso ou chocado são os mesmos que pouco se preocupam com o tema. São pessoas brancas, privilegiadas, cujos pais são cultos e os levaram ao museu. É fácil opinar sobre alguém que vive diversas discriminações”.

A repercussão extrapolou de vez o campo da literatura e consolidou como temas centrais do debate o fato de Fatima ser uma mulher lésbica e ser uma muçulmana praticante. “Nunca senti tanta descriminação. Fui vítima de racismo e lesbofobia antes, mas não sabia como era viver isso quando a gente se torna visível, quer dizer, quando ocupamos o espaço público e tomamos a palavra”, diz. “A verdade é que eu incomodei. Esperavam que eu tivesse um discurso islamofóbico. Que dissesse que o islã me prendia e que eu amaria ser uma lésbica liberada. Tampouco critiquei a Argélia ou afirmei ter um pai terrível e misógino. Ao contrário, cheguei dizendo: ‘Sm, há um problema na França. O racismo e a islamofobia são institucionalizados’. Tenho a impressão de que não sou tratada da mesma maneira que as escritoras brancas”.

Em busca de respostas

Quarta filha de um casal de argelinos que migrou para Yvelines, a 37 quilômetros de Paris, Fatima foi a única da família a nascer na França, em 1995. Na infância e na adolescência, uma demorada viagem de trem a separava da cosmopolita capital, em um isolamento reforçado por ela viver em um bairro formado majoritariamente por árabes muçulmanos, onde se sabia de cor as orações, mas também letras de RAP (em francês e inglês). “A língua dos meus pais, especificamente da minha mãe, com seus provérbios, sua entonação, me inspira na escrita diária”, diz ela. “Também me marcaram as temporadas na Argélia quando era criança. Lembro de observar o jeito de sentar, de falar, de comer das mulheres da minha família. Eu voltava transformada desses encontros”.

Mas mais do que essa miscelânea de vozes e percepções, foi o não dito que conduziu Fatima à literatura, nos primeiros anos da adolescência. “Os tabus e o silêncio dos meus pais sobre sua história e a vida na Argélia, sobre como foi a partida: tudo isso me levou a escrever”, diz Fatima. “No início, eram cartas para uma prima que morreu aos quatro anos. Fiquei chocada com esse acontecimento porque não entrava na ordem das coisas. Ninguém morre aos quatro anos. Foi um evento perturbador. Por causa dele, sempre que penso sobre como fui parar na literatura, entendo que escrevo quando não compreendo algo ou não encontro respostas. Quando me deparo apenas com o tabu e o silêncio, a única maneira de essa coisa sair da minha cabeça é escrevendo”.

Foi o não dito que conduziu Fatima à literatura, nos primeiros anos da adolescência

Ainda no liceu (correspondente ao ensino médio), Fatima passou a frequentar ateliês de escrita. Nos três anos seguintes, a autora participou de oficinas e, de exercício íntimo, a atividade se tornou uma prática compartilhada, que a fez sentir “qualquer coisa de especial”. A escolha pela licenciatura em letras na universidade ajudou Fatima a aprimorar sua habilidade de lidar com as palavras e seus significados, em um jogo ao mesmo tempo simples e sofisticado. Faltava, no entanto, o primeiro livro, que surgiu como um projeto do mestrado de criação literária. “Fiquei em dúvida entre fazer uma peça de teatro, um romance ou um livro de poesia”, explica a autora. “Acabei iniciando um romance epistolar, até finalmente decidir escrever A última filha”.

O ritmo da narrativa reflete o gosto por RAP, que a escritora ouve sempre antes de escrever

Narrada em primeira pessoa, a história de Fatima foi surgindo de acontecimentos aleatórios. São lembranças infantis, episódios do relacionamento com os pais e as irmãs, a descoberta da lesbianidade, amizades, experiências amorosas e reflexões sobre o presente da personagem. Ligando esse vai e vem atemporal está a formulação que abre cada capítulo (e inspirou a abertura deste texto), na qual Fatima reafirma sua identidade.

O ritmo da narrativa, diz ela, reflete o gosto da autora por RAP — que Fatima ouve sempre antes de escrever, nunca durante —, em um fluxo que reproduz ainda a asma crônica da protagonista, alternando momentos de crise e euforia a outros de fôlego e calma. “Minha linguagem é bem simples. Escrevo como falo, com palavras fáceis. Escrevo o que vejo, sinto e penso”.

Outsider

A entrada no circuito de festivais; a preparação para o lançamento do segundo livro, uma história de amor entre mulheres; os prêmios e a repercussão de seu primeiro romance: nada disso deixou Fatima Daas à vontade no meio literário. “O universo de onde venho ainda faz eu me sentir fora de lugar quando, por exemplo, estou cercada de pessoas incapazes de compreender o que é racismo. Não sou obrigada a passar uma noite ouvindo piadas racistas”, diz. “Por outro lado, nunca disse: ‘A literatura não é para mim’. Desde a adolescência esse foi sempre meu principal meio de expressão. Nunca senti essa ilegitimidade ao escrever ou questionei se deveria ou não publicar”.

Diante dessa convicção, resta acompanhar quais outras fabulações preencherão os silêncios da autora. Assinadas por Fatima Daas ou outro pseudônimo qualquer.

Quem escreveu esse texto

Adriana Ferreira Silva

Jornalista, escritora e palestrante, trata de temas como desigualdade de gênero e liderança feminina.

Matéria publicada na edição impressa #65 em outubro de 2022.