Quadrinhos,

Lésbicas sob a lupa

‘O essencial das perigosas sapatas’, primeiro trabalho de Alison Bechdel como quadrinista, chega ao Brasil

05jul2021

Qualquer pessoa que já esteve com as mãos e os olhos em Fun Home (Todavia) e Você é minha mãe (Quadrinhos na Cia), graphic novels de Alison Bechdel publicadas no Brasil, sabe que a autora põe uma lupa — às vezes um microscópio — nas complexas relações pessoais que estabelece com seu entorno. E ela faz essa autópsia psicológica como ninguém, com um repertório pop e erudito que obriga aqueles que, ao contrário dela, não receberam a bolsa McArthur para gênios, terem de pausar a leitura para dar uma googlada. 

Nessas duas obras, de 2006 e 2012, no entanto, a extensão do terreno que ela se propõe a destrinchar vai pouco além do quintal da sua casa na zona rural da Pensilvânia. O que poucos leitores brasileiros sabiam, no entanto, é que Bechdel, mais de vinte anos antes, já tinha feito um retrato minucioso — e, sejamos justos, ainda não superado (desculpa, The L World) —, da comunidade lésbica em seu habitat natural. Sapatonas: de onde vêm? Onde vivem? De quê e de quem se alimentam? A resposta para todas essas questões está nas tirinhas de O essencial das perigosas sapatas, que chega às livrarias brasileiras neste mês pela editora Todavia, com tradução da escritora Carol Bensimon.  

Tudo começou em 1987, como uma espécie de coleção-episódica-humorística sobre a vida da comunidade lésbica do final da década, a partir do retrato da rotina de um grupo de amigas fanchas norte-americanas. Temos Mo, a lésbica neurótica — cuja representação lembra muito a de Bechdel; Lois, a caminhoneira cheia de contatinhos; Ginger, a intelectual; Clarice e Toni, o casal que está junto desde sempre; e Jezanna, a fêmea-alfa dona da livraria feminista local Madwimmin Books que, já no fim do século passado, lutava para se manter de pé. 

"Passei toda a minha vida adulta desenhando esta tirinha! Como foi que isso aconteceu?", questiona-se Bechdel, hoje com sessenta anos, na introdução da edição brasileira. Ela não está sendo hiperbólica: as tiras foram publicadas ao longo de duas décadas em jornais voltados ao público sapatão. A história traz como pano de fundo o contexto americano da época, seja retratando o contexto político, quando passa pelo ódio ao Bush pai, a esperança, a decepção e o escândalo da era Clinton, e o retorno da desesperança com o Bush filho; seja pincelando as tendências culturais em voga, como a estreia de Thelma e Louise nos cinemas e a febre da franquia Harry Potter.

Apesar de não se tratar de uma publicação de nicho — muito pelo contrário, a HQ é o diagnóstico de uma era —, os leitores LGBTQIA +, principalmente as lésbicas e bissexuais do sexo feminino, vislumbrarão ali representadas várias situações e figuras com que lidam no dia a dia: as radfem, as veganas, as caminhoneiras, os romances que evoluem de um beijo para um casamento na velocidade da luz e o fenômeno, ainda não comprovado cientificamente, do rebuceteio. O objetivo da autora, segundo ela mesma, era explodir o essencialismo e explorar a humanidade sapatônica: "Minha intenção era nomear o inominável, retratar o irrepresentável, para assim tornar as lésbicas visíveis. E eu fiz isso".

Quem escreveu esse texto

Clara Rellstab

É jornalista, roteirista e repórter do Uol.