Literatura,

Como alguém pode ser uma sensação?

Primeiro romance do poeta Ocean Vuong trata com sensibilidade da difícil relação com a mãe e da descoberta da sexualidade

01jul2021

“Não chame a atenção dos outros para você. Já basta você ser vietnamita”, diz Rose, mãe do protagonista de Sobre a terra somos belos por um instante, primeiro romance de Ocean Vuong, lançado agora no Brasil pela Rocco. Narrado por um jovem escritor com cerca de vinte anos apelidado pela família e pelos amigos de Cachorrinho, o texto que se apresenta é estruturado como uma carta enviada a essa mesma mãe, figura que domina a narrativa. À sua vida familiar somam-se a avó vietnamita e esquizofrênica e o avô norte-americano, um ex-soldado em tratamento contra um câncer que suspeita ter contraído devido ao contato com o agente laranja durante a Guerra do Vietnã. Logo somos informados de que a mãe é analfabeta e tem pouco domínio do inglês. E é justamente a impossibilidade de que ela venha a ler a carta de seu filho o que lhe permite assumir uma franqueza libertadora.

Vuong nasceu em Ho Chi Minh (antiga Saigon) em 1988. Seus avós conheceram-se durante a guerra, mas acabaram separados após a tomada de Saigon. A mãe de Vuong é fruto desse relacionamento inter-racial que, com o passar dos anos, traria problemas a todos. Quando Vuong tinha dois anos, a família fugiu para um campo de refugiados nas Filipinas. Aos seis, migrou para os Estados Unidos, indo morar em Hartford, em Connecticut, cidade onde seu romance é ambientado. Vuong já havia publicado coletâneas de poemas, como o elogiado Céu noturno crivado de balas, lançado no Brasil pela Âyiné.

“Você é uma mãe, Mãe. Você também é um monstro. Mas eu também sou — é por isso que eu não posso me afastar de você.” De forte tom autoficcional, seu romance resulta em um livro denso e imensamente sensível, apesar de curto. Na primeira parte, a memória se volta para uma infância marcada pela dor física — seja do bullying sofrido no colégio por sua ascendência asiática, seja pelo testemunho da dor física da mãe, exausta após horas de trabalho em um salão de beleza, ou pelas agressões constantes que ela lhe inflige pelos motivos mais banais. Rose, além de viver isolada socialmente pela barreira da língua, também carrega as sequelas psicológicas de uma infância vivida na guerra, sob a ameaça dos bombardeios de napalm. “Ela não normal, ok? Ela dor. Ela dói”, explica a avó, tentando consolar o neto — ao que Cachorrinho se pergunta: “Como alguém pode ser uma sensação?”. Seu olhar, contudo, não é de rancor ou ressentimento, mas de uma resignação melancólica, descrita com intenso lirismo.

Livro sentimental

E aqui, vamos direto ao ponto: Vuong escreve maravilhosamente. Quando se aponta a prosa de um livro como sendo “sentimental”, deve-se levar em conta o tanto de conotações negativas que a palavra costuma trazer. Em grande parte, isso talvez se deva a certo tipo de sentimentalismo ingênuo, que costuma permear obras cujo otimismo parece ambicionar torná-las mais autoajuda que literatura, ou em romances clássicos em que a excessiva sensibilidade de seus personagens os torna quase caricatos.

De forte tom autoficcional, seu romance resulta em um livro denso e imensamente sensível, apesar de curto

Mas o texto de Vuong é de fato sentimental, no sentido de que o narrador, com certo distanciamento crítico de si mesmo, reflete sobre como seus sentimentos são condutores de suas ações, e, por consequência, elas o levam a descobrir novos sentimentos. Se sua mãe personifica a dor, sua avó é o conforto (a passagem em que ela prepara arroz com chá de jasmim, para distraí-lo da violência materna, é particularmente sensível). E com a adolescência, há a descoberta do desejo e da sensação de sentir-se desejado. 

Escondido da mãe, Cachorrinho passa a trabalhar em uma plantação de tabaco, onde conhece Trevor, rapaz um pouco mais velho, neto do dono da plantação e filho de um pai alcóolatra. Logo os dois desenvolvem uma relação de amizade que se direciona rapidamente à descoberta da sexualidade e a uma nova forma de dor, como condutora do êxtase. São algumas das melhores reflexões sobre a dinâmica emocional do sexo gay que se leem em muito tempo. Trata-se de passagens que, longe de ser cruas ou de ter qualquer intenção de choque sensacionalista, são tomadas por lirismo e afeto, em pensamentos bonitos e eficientes sobre a dinâmica de poder e controle pelo acesso ao prazer, na relação entre o passivo e o ativo — algo que, por vezes, faz lembrar a prosa de autores como Edmund White e Alan Hollinghurst. 

O livro traz algumas das melhores reflexões sobre a dinâmica emocional do sexo gay da ficção atual

“Como você chamaria um animal que, ao encontrar o caçador, se oferece para ser devorado? Um mártir? Um fraco? Não, um animal conquistando a rara capacidade de parar. Para estar dentro do prazer, o Trevor precisava de mim. Eu tinha uma escolha, uma capacidade, e a ascensão ou o fracasso dele dependiam da minha disposição para abrir caminho para ele.” Em outros momentos, o que poderia facilmente ter descambado para a escatologia nas mãos de um autor inábil transforma-se em um momento de afeto cúmplice.

A última parte do livro é dedicada a um terceiro tipo de dor, a do confronto com o luto. Cachorrinho assume um tom quase resignado, já o aceitando, àquela altura, como inevitável. Seu texto alterna entre a prosa e uma série de vinhetas curtas e poéticas. “Vão te dizer que ser político é ficar meramente raivoso, e portanto sem arte, sem profundidade. Vão te dizer que escrever grande literatura ‘liberta’ do político […] como se a forma como algo é construído seja de natureza diferente do impulso que o criou.” 

É raro ler um autor trabalhar a própria dor e o próprio sofrimento com tanta ternura, como uma parte de si que não adianta ignorar nem rejeitar. Ocean Vuong consegue fazer isso sem cair no niilismo vulgar que contamina boa parte da ficção realista, em especial a autoficção. É um grande livro, cujas passagens e imagens que evoca têm potencial de seguir nos acompanhando muito depois de encerrada a leitura. 

Quem escreveu esse texto

Samir Machado de Machado

Escritor, é autor de Tupinilândia (Todavia).