Poesia,

O poeta come Beijo Glacial

Dos programas de auditório dos anos 90 à exposição na internet, a vida e a poética de Ismar Tirelli Neto

12jan2020 | Edição #30 jan/fev.20

“Oi, meu nome é Ismar Tirelli Neto, e amanhã faz um mês que minha mãe morreu. Nas duas últimas semanas, eu escrevi um livro.” As apresentações pessoais que abrem uma oficina de escrita costumam ser bem menos noticiosas. Mas os últimos doze meses foram de uma intensidade atípica na vida de Ismar Tirelli Neto.

Em novembro de 2018, dez meses antes de abrir a sua oficina de escrita sobre o luto, Ismar estava em Nova York e tremia, de frio e de nervoso, prestes a entrar no palco, na Universidade Columbia. Tirelli foi um dos convidados pela revista Pessoa e pela Words Without Borders para representar o Brasil no The Pessoa Festival.

Era um dos primeiros eventos no Lenfest Center for the Arts, um prédio transparente que Renzo Piano projetou para o novo campus da universidade, apelidado de Manhattanville. Ismar, de 34 anos, autor de quatro livros de poesia, Synchronoscopio, Ramerrão, Os postais catastróficos e Os ilhados, todos pela 7Letras, era um dos nomes menos conhecidos da noite. O grupo de brasileiros contava ainda com Estevão Azevedo, Carol Rodrigues e Alexandre Vidal Porto.

Mediadora do encontro, a escritora canadense Rivka Galchen queria aprender a pronúncia dos nomes dos convidados. Aflita, treinou ao meu lado, o único brasileiro ao alcance da sua voz, no caminho até o prédio. “Is-mór. Is-môr. Is-more.” Quando subiu ao palco, às sete e meia da noite, Ismar ostentou um traquejo linguístico de fazer inveja nos anfitriões. Recitou de cor um poema em inglês sobre a primeira vez que viu neve, um dia antes.


Ismar Tirelli Neto por Renato Parada

Mas foi interrompido por Susan Bernofsky, professora da Columbia e responsável por verter o romance Memórias de um urso-polar (Todavia), da japonesa Yoko Tawada, do alemão para o inglês: “Onde você aprendeu a falar inglês assim?”. Tirelli riu grosso e explicou, com um meneio de mão que sacudiu o poncho vermelho: “Com o cinema. Hoje à noite, eu não sou eu. Estou canalizando o Humphrey Bogart”.

Depois, a comitiva brasileira pegou a linha 1 do metrô e desceu noventa quarteirões, da ilha de Manhattan até o bar Oscar Wilde. Ismar, que há três anos não bebe, passou a maior parte da noite na porta, fumando e fazendo amizade com o leão de chácara.

Liza Minelli

Oito meses depois, em agosto de 2019, Tirelli está em casa, sentado no chão de azulejos. No apartamento de dois quartos na frente de uma igreja na Bela Vista, no centro de São Paulo, ele confessa ter ficado nervoso em Columbia. “Até em situações em que eu deveria ter mantido alguma compostura, eu me esqueço e viro a Liza Minelli.”

No sofá-cama, em meio a centenas de discos espalhados pelo chão da sala, ele pondera se foi exposição demasiada. “Isso tudo, a viagem, o convite, me deixou muito contente comigo mesmo. E eu não consigo escamotear esse tipo de entusiasmo. Então, melhor usar a favor do espetáculo.” É isso, espetáculo, o que ele parece vir fazendo, com frequência diária, na sua carreira de poeta.

No Facebook, onde tem 1.118 amigos (mais 105 seguidores), ele publica o “Programa do Ismar”, em que recebe amigos para ouvir os discos que forram o chão da sala e conversar sobre assuntos como os mitos por trás dos super-heróis nos gibis. No Instagram, onde beira os mil seguidores, costuma postar selfies ou fotos do seu dia a dia. Em um retrato recente, aparece seu namorado, o artista plástico Gustavo Marcasse, e um pacote de roscas açucaradas, com a legenda: “Aproveito o ensejo para celebrar o profissional que decidiu crismar esse docinho de BEIJO GLACIAL.” (A caixa-alta é do próprio Tirelli.)

“Para mim não tem muita distância. O caráter performativo e até mesmo o gozo que poderia advir disso, de construir uma persona na internet, me escapam. Eu não consigo ser outra coisa que não eu mesmo.”

Ismar é um homem baixo e robusto, coberto por uma aura de pelos. É como se um ator tivesse sido escalado para interpretar Piteco, o homem das cavernas criado por Mauricio de Sousa. A aparência rústica não rima com a polidez da voz e a riqueza do vocabulário. “Eu falo como uma viúva lisboeta”, ele mesmo define. E admite que o artista está presente 24 horas por dia na internet. “Eu não tenho vida privada. Eu parto do pressuposto de que, se está na internet, já era.”

Quando um vírus se alojou nas suas redes sociais e publicou anúncios falsos de óculos escuros no seu perfil, Ismar ficou fulo e postou um vídeo em protesto. “Essa conta está sendo eventualmente sequestrada por anúncios da Ray Ban. E eu só queria deixar bastante claro que eu nunca tive um Ray Ban, eu tenho a impressão que essas coisas custam um imóvel inteiro”, disse. E concluiu, sincero e pungente: “Nesse exato instante eu estou contando os centavos para comprar cigarro.”

A viagem a Nova York, inclusive, só foi possível porque a passagem vinha com o convite. “Felizmente teve uma amiga minha que pôde me hospedar. Muito embora respirar em Nova York seja quatro vezes mais caro que respirar aqui”, diz ele enquanto traga um dos vinte e muitos cigarros diários.

Quase

Logo depois de ir a Nova York, ele se mudou para São Paulo. Fazia três anos que estava em Curitiba, para onde tinha se mudado do Rio, sua cidade natal, por achar que na capital do Paraná se sentiria menos sozinho. Diz ter saído “como Carlota Joaquina” da capital paranaense. “É um lugar do qual é possível falar mal por horas.” No período curitibano, trabalhou numa empresa de tradução de documentos jurídicos. A experiência rendeu poemas e quase traumas. “Eu fui encurralado no escritório em que trabalhava, inclusive, porque eu cheirava mal. Fui levado para uma sala, sem câmeras, sem gravações, sem nada, para ouvir que o prédio estava comprometido por causa do meu cheiro. Primeiro que eu não tenho olfato, porque fumo que nem uma chaminé, e exatamente por isso não devo ter um odor primaveril.”

Não era a primeira vez que o poeta se sentia deslocado. Ismar foi criado no Rio pela família da mãe, em um ambiente que define como “bastante opressor”. “Principalmente por causa do meu avô, o Comandante, de quem eu levo o nome.” Jamais houve Ismar Tirelli Filho, apenas o avô e o Neto. “Por ter sido criança viada em um ambiente militarista e católico, sofri coisas horríveis. Disseram que ele teve um derrame porque eu fui mal em uma prova de matemática.” Por algum tempo, Ismar acreditou.

Com dezessete anos, foi fazer filosofia. Na verdade, foi viver a vida com  que sempre sonhou, enquanto fingia que fazia filosofia. “Eu tinha uma rotina que conjugava impulsos de velhinho com impulsos de jovem. Levava o meu livrinho para o Rei do Mate do Humaitá, e depois saía para dançar e encher a cara.” Dedicou sete anos da vida ao álcool. “Teve uma sedução da vida noturna que conflitava um pouco com o pouco investimento acadêmico que eu estava disposto a fazer.”

Aos 22 anos, mandou Synchronoscopio, seu primeiro livro, para a 7Letras, conhecida por revelar novos escritores e poetas. “Recebo centenas, milhares de originais. De poesia, então… Encontrar um cara desses é uma agulha num palheiro”, diz Jorge Viveiros de Castro, editor da 7Letras. Para ele, Ismar faz “um trabalho de originalidade e tem uma dicção muito própria, a que ele consegue dar continuidade e desenvolver”.

Seis meses depois de despachar os originais por e-mail, Ismar recebeu a resposta: queriam publicar, contanto que ele pagasse parte da impressão. “Era uma quase publicação”, brinca.

Desde então, colecionou quases. Foi um dos finalistas do concurso Contos do Rio, do jornal O Globo em 2007. E foi uma aposta dupla do mesmo jornal: tanto em 2009 quanto em 2010, críticos apontaram Ismar como a aposta literária do ano seguinte.

Pouco habituado às boas novas

É possível fazer uma arqueologia do presente recente do poeta por suas postagens nas redes sociais. Às sete da manhã de 3 de setembro: “Caros, minha mãe foi internada em estado grave na região metropolitana de Curitiba. O prognóstico é desanimador e peço a todos que enviem forças. Os médicos estão fazendo o que podem, mas já estamos advertidos quanto ao pior. Aconteça o que acontecer, e não importa o quanto minha relação com ela tenha sido difícil nos últimos anos, bons votos são sempre bem-vindos”. Era uma coincidência: a mãe de Ismar morreu em Curitiba, mas não morava lá no período paranaense de Ismar.

Mesmo dia, às 17h13: “Amigos, não há maneira suave de comunicar isso, mas perdemos a mãe hoje de manhã. Sei que muitos de vocês tinham simpatia por ela, portanto, acho justo informar. De resto… enfim, não há mais-muito que dizer. As palavras surgirão aos poucos, gota a gota. Os mecanismo de fixação. Perdoem se eu ficar um pouco fora (de mim) pelos próximos dias. Tudo mudou muito em muito pouco tempo”.

Em 6 de setembro: “Hoje faço 34 anos de idade. Sigo limpando o apartamento da mãe. Topei com as Polaroides do meu nascimento. Preciso voltar pra casa o quanto antes”. Em 26 de setembro: “Setembro — horizontal. Planos de me sentar em outubro. É minha firme intenção ficar de pé em algum momento de novembro”.

Um soluço de alegria veio em 3 de outubro, às 12h47: “A Isabella acaba de me telefonar para avisar que sou finalista do Jabuti e eu nem sei direito como reagir, tão pouco habituado ando às boas novas”. (A caixa-alta é, novamente, do próprio Tirelli.) Seu livro Os postais catastróficos era um dos dez finalistas da primeira fase do mais tradicional prêmio literário do país, na categoria Poesia. Quatro minutos depois, às 12h51, outra postagem: “Dançando de cueca pela casa até isto assentar nos nervos”. A frase vinha acompanhada de um link de “A Lot of Livin’ to Do”, ou muita vida a se viver, música do filme Bye Bye Birdie, de 1963.

Pessoal, mas não sentimental

A oficina O Trabalho do Luto foi realizada no apartamento azulejado, nas noites das quartas-feiras de outubro. A ideia, afirma Tirelli — que vive de dar oficinas —, era ser “o mais pessoal possível, mas também o menos sentimental possível, dentro dos limites”.

Quando sua mãe morreu, por exemplo, Ismar estava traduzindo para a editora Rocco On Earth We’re Briefly Gorgeous [Na Terra somos brevemente lindos]. O romance de Ocean Vuong é uma série de cartas de um filho, americano, para a mãe, vietnamita e analfabeta. Ele, que também verteu para o português Lá não existe lá (Rocco), o premiado romance de Tommy Orange, abdicou do trabalho no meio, por questões emocionais. Diz que a casa editorial foi muito gentil em entender.

Restou a oficina, em que ele poderia ruminar o tema que consumia sua mente e sua mão. Os alunos pagaram R$ 250 pelos quatro encontros, e precisavam estar vivendo com a morte de alguma forma. No primeiro encontro, eram seis pessoas. Uma poeta publicada, um antropólogo, uma roteirista, uma psicóloga e eu, mais Ismar. A primeira hora do encontro era dedicada a ler poemas e uma pequena preleção de Tirelli. A segunda e a terceira eram para um exercício de escrita, como fazer uma elegia a um morto imaginário, que devia ser lida para a classe. Os encontros iam das 19h às 22h — o último, em que cada participante falou da sua experiência de perda, foi até as duas da manhã.

O fervor de compartilhar nascia do próprio professor. “Não costumo ter a mão solta, mas nas últimas semanas fui acometido por uma fúria juvenil”, ele disse no segundo encontro. Escreveu em quinze dias o que considerava um livro pronto. Já tinha um apanhado de poemas “assuntando a passagem do tempo”. “Aí mamãe morreu e foi como se uma coesão se impusesse de fora para dentro.” Por duas semanas, escreveu freneticamente.

O resultado do luto criativo foi o livro Adão aparas, publicado em um site, na íntegra e de graça. “Me pareceu uma maneira boa de curto-circuitar mediações. Não há uma editora envolvida, não há… nada. Não há… ninguém. E, caso o leitor queira contribuir com nossa existência, os nossos dados bancários estão lá.” Mandou um e-mail avisando esta Quatro Cinco Um e o Suplemento Pernambuco de que havia publicado um livro. Um livro, ele frisa. Não recebeu resposta.

“Ando muito cansado e impaciente, por motivos óbvios. Eu me vigio como um falcão para não ser peremptório. Mas eu não queria realmente integrar essa economia da história triste, que hoje em dia é uma garantia de entrada. Você conta sua história triste e é imediatamente abraçado por certo grupo, ou vem de certa facilidade. Vem do azeitamento.” O azeitamento, segundo ele, é a facilidade, tanto de trabalho quanto de traquejo social, que viria com a prática. “A minha sensação vivendo é justamente o contrário, é como se fosse um escorrega com pregos. É difícil e só fica mais.”

Há dois anos, ele mandou um e-mail para o endereço geral do caderno Ilustríssima, da Folha de S.Paulo, e recebeu uma resposta. Em setembro de 2017, a Ilustríssima publicou dois poemas inéditos de Ismar Tirelli em página inteira, ilustrada por Adriana Conti Melo.

O crítico e poeta Eucanaã Ferraz lembra ter lido com entusiasmo o livro de estreia de Ismar. Andou com Synchronoscopio na bolsa, recomendou a amigos, como Adriana Calcanhotto, e leu trechos por telefone. “Eu gostei de imediato do livro porque ele tem humor. Um humor que não descarta o sentimento, não é leve e festeiro, não. Não é que ele não está sentindo dor, é que tem um sentimento muito apurado da dor e do sofrimento. Tudo o que constrange, ele usa na poesia.” Para Eucanaã, Ismar ainda vai crescer mais.

Ex, ex, ex, ex

Anos antes de começar a mandar manuscritos para editoras e poemas para jornais, Ismar já havia começado a oferecer seus préstimos para a indústria da comunicação. Há mais de vinte anos, encontrou na lista telefônica o número da produção do programa de Jô Soares, então no SBT. “Mandei um fax dizendo, basicamente: eu sou muito incrível e preciso estar aí.” O blefe foi comprado, e a criança de dez anos passou dois blocos conversando com Jô sobre a era áurea do cinema americano. Cantou um tema de Lili, minha adorável espiã, filme de 1970 com Julie Andrews. As imagens não estão na internet.

O que está, sim, na internet é outra surreal participação televisiva de Ismar. Aos doze anos, ele está no centro do palco do Domingo Milionário, da extinta TV Manchete. É o nono programa consecutivo de que o Ismar pré-adolescente participa, respondendo perguntas sobre filmes antigos. Se acertar mais essa pergunta, vai para a final. De lá, como promete o apresentador J. Silvestre, é “acertar e ganhar uma viagem a Hollywood!”.

É hora das perguntas. “Que filme sobre acidente em usina nuclear reúne três brilhantes atores, Jack Lemmon, Jane Fonda e Michael Douglas?”, dispara o apresentador. “Síndrome da China”, responde Ismar, sem titubear. “É certa a resposta!” Última pergunta da noite:  “Qual foi o prêmio que o Jack Lemmon ganhou por esse filme, Síndrome da China?” “Foi o Oscar”, diz o jovem, cheio de certeza. “Trinta segundos para sua resposta”, diz o apresentador. O som sobe, em uma música de tensão. “Como assim, categoria? Melhor ator, melhor ator coadjuvante, alguma coisa assim?”, pergunta o jovem. J. Silvestre repete a pergunta. “Globo de Ouro?” Uma buzina denuncia que ele errou. “Não?”, pergunta Ismar criança. Não. Era a Palma de Ouro de Cannes. “Tudo bem, tchau”, fala Ismar, com a voz embargada. “É uma pena, Ismar.”

O Ismar de doze anos abraça o apresentador na altura da barriga e chora. A plateia grita: “Ele me-re-ce! Ele me-re-ce!”. Ismar só conheceria os Estados Unidos no seminário da Columbia, duas décadas depois. “É um tipo de exposição que te deixa meio Baby Jane. Você é uma ex-criança prodígio, sabe?”, diz o Ismar de 34. “Isso assombra, de alguma forma. O pacote todo é pitoresco: ex-menino prodígio, ex-alcoólatra, ex-estudante de filosofia, ex-estudante de cinema. Ex, ex, ex, ex.”

Ismar afirma que, depois de anos de análise, entendeu por que se expôs tão jovem na TV. Em 1999, Anthony Quinn foi filmar Oriundi, em Pontal do Paraná. Conheceu por acaso Maria Rosa, filha da dona da peixaria local, e disse que ela era a reencarnação do amor da sua vida. A menina tinha onze anos. O  americano, 84. Dois meses depois, mãe e filha foram passar duas semanas na casa do ator em  Boston. Quinn insistiu para que ficassem. Ofereceu casa e professor particular para a menina e um salário para a mãe. Maria Rosa preferiu ir embora.

O poeta teria ficado. “Lembro distintamente de ter visto isso no Fantástico e ter pensado: ‘Eu devia estar lá. Eu é que deveria estar lá!’. Então, eu achava que quanto mais eu me colocasse em evidência, mais fácil seria a pessoa me achar.”

Na euforia da indicação ao Jabuti ele já afirmava que aquele também ia para a estante simbólica de todos os quase prêmios da sua vida. “É uma história de quases. Em termos realistas, acho muito pouco provável que eu vá pra final, quanto mais ganhar.”

Dito e feito: em 31 de outubro, uma semana depois de prever sua quase vitória, o Jabuti revelou os cinco finalistas selecionados para a segunda e última fase. Ismar não constava entre eles. Foi mais um quase.

Quem escreveu esse texto

Chico Felitti

É autor de A casa: A história da seita de João de Deus (Todavia).

Matéria publicada na edição impressa #30 jan/fev.20 em janeiro de 2020.