Literatura japonesa,

A literatura operária de Takiji Kobayashi

Romance de 1929 que denuncia as condições de trabalho desumanas num navio-fábrica japonês vem conquistando o público jovem

01dez2021

“— Ei! A gente vai pro inferno!”

Assim inicia Kanikōsen, romance proletário do escritor japonês Takiji Kobayashi. A frase nos leva ao interior de um navio e tem a ver, num certo sentido, com a visão dura e verdadeira que Sancho Pança tem do inferno ao falar com Dom Quixote, já em seu leito de morte: “Caro senhor, até no inferno devem existir boas pessoas”. Desse modo, Kanikōsen traz como mote as condições desumanas dos trabalhadores que pescavam e processavam carne de caranguejo num navio-fábrica no início do século 20.

Com uma linguagem ágil e simples, somos rapidamente inseridos nesse inferno — nessa ambiência sombria provocada pela violência da exploração capitalista. O cenário é o mar de Okhotsk, no noroeste do Pacífico. Na época, essa região era tida como uma das principais potências da indústria pesqueira do Japão. Kanikōsen é uma obra que sofre forte influência do comunismo soviético e da ideologia marxista. A história se passa nos anos 20, período em que a industrialização ganhava força no mundo e as grandes e modernas corporações cooptavam as pequenas fábricas, num processo predatório de exploração.

Lançado em 1929, o livro talvez seja o título mais importante do autor. Pouco conhecido do público brasileiro — talvez mais acostumado com nomes como Yasunari Kawabata, Yukio Mishima, Kenzaburo Oe ou ainda Haruki Murakami —, Takiji Kobayashi foi um fenômeno literário em sua época, com reconhecimento e fama, embora sua proximidade com as lutas do Partido Comunista, sua militância orgânica em greves e passeatas o tenham colocado num exílio que, de certo modo, prejudicou seu alcance como escritor.

Em 1930, por exemplo, após uma conferência em Osaka, Takiji foi preso e torturado, acusado de comunismo; um mês depois foi preso novamente, porque um de seus personagens sugeriu a morte do imperador. Além disso, Kanikōsen sofreu com as censuras constantes. Mesmo com a perseguição cada vez mais implacável, Takiji continuou produzindo. Escreveu artigos sobre a importância da literatura proletária e da política, além dos romances A célula da fábrica (1930), Homens em transição (1931), Vida de um partido (1932) e Homens do distrito (1933).

Literatura proletária

Talvez as grandes mudanças ocorridas nesses primeiros anos do século 20, não só no Japão, mas também no mundo, tenham favorecido o aparecimento de literaturas proletárias, sobretudo se levarmos em consideração os efeitos da Primeira Guerra Mundial, o avanço do autoritarismo, as crises econômicas, a exploração desenfreada das grandes corporações e a precarização do trabalho. Nesse sentido, a literatura proletária tinha uma função: ajudar a promover mudanças numa estrutura social baseada na exploração de classes subalternizadas. A literatura era vista como uma resposta às injustiças promovidas pelo avanço da modernidade e do capitalismo.

No Brasil também houve um movimento parecido na era Vargas (1930–45). Difícil não lembrar do romance Parque industrial (1933), de Patrícia Galvão (Pagu), que traz nessa obra o engajamento político, a crítica ao processo de industrialização e a tematização da condição da mulher e do proletariado. Além dela, outros nomes podem ser citados: Jorge Amado, Oswald de Andrade e Rachel de Queiroz.

Talvez seja importante dizer que inferno exatamente é esse que o livro nos apresenta já de início. Em primeiro lugar, o inferno é físico e se chama Hakko Maru, o navio-fábrica. E nada mais é do que uma embarcação velha e sucateada. É nesse cenário que vemos a representação de um lugar onde as poucas leis que regiam as relações de trabalho não chegavam, justamente porque era uma embarcação: as leis da terra não valiam no mar. Mas esse local também não era um navio propriamente, porque não tinha condições de navegar em águas muito profundas — ficava ancorado perto do porto, e portanto também não era cobrado por leis marítimas, de modo que seu espaço se tornava propício para que toda espécie de desumanidade pudesse ser exercida.

O navio-fábrica só reproduzia as condições de trabalho brutais, comuns nas minas e nos portos

A tripulação era composta por camponeses, operários, pescadores, foguistas, estudantes, adolescentes, homens dependentes de bebidas alcóolicas e mulheres que, além de exploradas no Hakko Maru, ainda tinham de se prostituir: “Tinham de vender o corpo por uma ninharia”. Esses trabalhadores vinham de Hokkaido, Akita e Iwate — que na época eram regiões rurais, as mais pobres do Japão.

Dentro da embarcação o inferno vai tomando forma, pois os dias que se passam ali são marcados pela fome, pela falta de condições básicas de higiene, pelas doenças, pela exploração do patrão que aplica castigos severos e que em alguns casos ocasiona a morte dos empregados. Na verdade o navio-fábrica só reproduzia as condições de trabalho brutais, muito comuns na época na construção de estradas e ferrovias, nas minas ou nos portos. Toda a lógica do mercado competitivo e predatório está lá, pois vemos empregados obrigados a competirem entre si, num contexto em que os vencedores são premiados e o perdedores são castigados com violência ou com a perda do emprego.   

Kanikōsen eleva a denúncia dessa desumanização ao nível máximo, como neste trecho: “O polvo para sobreviver come os seus próprios tentáculos. Eram exatamente isso! Assim surgiu esta classe de exploração primitiva que não temia nada. Os patrões recolhiam benefícios às pazadas. […] Os capitalistas eram muito astutos. Os trabalhadores morriam de fome, ou eram espancados até à morte”.

Ao ler o livro é impossível não pensar na sua atualidade, já que frequentemente vemos denúncias de trabalho escravo em vários lugares do mundo, seja em ambientes rurais ou nos grandes centros, ou até mesmo em navios de empresas que, muitas vezes, procuram locais estratégicos, em alto mar, para justamente não serem alcançados pelas leis trabalhistas.

Takiji Kobayashi vem ganhando o público jovem no Japão, que tem reconhecido sua importância. Kanikōsen ganhou adaptações para o cinema e vem sendo traduzido em diversos países, o que demonstra que a literatura proletária ainda tem o seu lugar ao sol, já que seu discurso se opõe de maneira categórica ao individualismo burguês e capitalista, em busca de uma voz coletiva de resistência num mundo que cada vez mais torna as práticas de exploração mais sofisticadas, mas não menos atrozes.

Esse texto foi realizado com apoio da Japan House de São Paulo.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2018, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Jeferson Tenório

É autor de O avesso da pele (Companhia das Letras, 2020).