Literatura japonesa,

Não mais humano

Em seu livro mais célebre, Osamu Dazai faz um bilhete de adeus mergulhando na melancolia e no desprezo por si mesmo

01set2021

O Japão costuma aparecer nas listas de países com o mais alto índice de suicídios, e a honra parece pesar na estatística. Camicases atiravam-se contra os inimigos na Segunda Guerra Mundial como gesto de bravura e purificação. Antes deles, samurais praticavam o seppuku (ou harakiri), suicídio previsto no código de conduta Bushido, no qual abriam o próprio ventre com um punhal e depois eram decapitados. Foi o que fez Yukio Mishima, autor da tetralogia Mar da fertilidade, em um protesto contra a modernização do Japão, em 1970. Quem viu Mishima, filme de Paul Schrader, não esquece a cena.

Declínio de um homem, de Osamu Dazai

Osamu Dazai estava muito além (ou aquém) do Bushido. Sua ética baseava-se na decadência, não na honra. Era um artista do mergulho na lama, da inadequação, da vergonha assumida. Declínio de um homem é, nesse sentido, quase um manifesto em forma de autoanálise — e um longo bilhete de adeus. Seu livro mais conhecido conta sua história de forma ligeiramente ficcional, indo da infância ao suicídio que cometeria um mês após botar o ponto-final. Poderia chamar-se confissões de um suicida, tal a força de atração do personagem para a morte. Ou dividir o título com a famosa novela de Dostoiévski (não por acaso citado no romance) Memórias do subsolo, um caldeirão de pessimismo quanto à humanidade e desprezo por si mesmo.

A tradução inglesa é a que mais se aproxima do original:  “não mais humano”. Sugere um declínio à bestialidade, a transformação em um cachorro que bebe da sarjeta, um macaco que tenta disfarçar a incompreensão dos sentimentos com malabarismos para atrair a simpatia alheia.

Logo no início, um narrador comenta três fotografias de uma mesma pessoa em momentos diferentes da vida. A despeito de reconhecer a beleza do rapaz, não contém sua repulsa. Há algo de muito errado naquele rosto. Tem as linhas certas, mas é metafisicamente torto. O sorriso é simiesco, a expressão é obscena. Na foto em que ele está jovem — e a essa altura já desconfiamos de que “ele” é o alter ego do escritor — “inexplicavelmente não passa a menor impressão de se tratar de um ser humano vivo”. Já traz as marcas do fim prematuro, como um belo e perturbador moribundo, um zumbi existencialista. “Não tem o peso do sangue, nem a austeridade da vida, nada, nem um pouco dessa sensação de completude.” É alguém que não está no inventário humano. “Um rosto que não poderia ser desenhado”, nem como caricatura. No entanto, nas páginas que se seguem estão três “cadernos” que tentam desenhar com palavras, agora em primeira pessoa, quem é aquele ser “repugnante” em sais de prata.

Dazai era um artista do mergulho na lama, da inadequação, da vergonha assumida

Estão ali os fatos relevantes da vida de Dazai: a família rica, os estudos malsucedidos, a relação com prostitutas, a dependência do álcool e da morfina, a experiência em um grupo comunista, a tuberculose e, claro, as tentativas de suicídio. Uma das muitas habilidades do autor está em tratar de temas pesados com estilo simples, sem adornos, o que dá certa leveza ao texto. Não há meias-palavras ou eufemismos, a franqueza é brutal, mas é expressa em um estranho equilíbrio entre a afirmação e a negação, entre importar-se demais e quase nada. Como se todas as questões estivessem de algum modo suspensas no ar.

Há uma oscilação até certo ponto esperada. Vai do orgulho superior do personagem em sua condição de pária, com tons de rebeldia, ao desespero alienado, largado na cama, entregue a baratas, ampolas e garrafas, aos cuidados de uma mulher qualquer. O desespero, condição constante do personagem, é bem exemplificado pela adesão a um grupo marxista, algo duramente reprimido pelas autoridades japonesas à época. Seu interesse ali é muito menos ideológico que uma satisfação contra o exemplo padrão: “Ilegalidade. Era isso que eu achava sutilmente agradável”.

Escárnio

Mas nem tudo são sombras. De vez em quando, Dazai é engraçado e pratica o escárnio com elegância decadentista — outro de seus trunfos. Ao revelar sua “consciência criminosa”, afirma: “Durante toda minha vida em meio aos humanos, tenho sido vítima de tal consciência, ainda que esta tenha sido uma companheira fiel, como a esposa com quem compartilhamos uma vida de privações e nos divertimos com melancolia”. A própria estrutura do romance sugere um jogo com o leitor, na ambivalência entre o real e o fictício, mas também na forma da narrativa, como se aqueles cadernos tivessem de fato sido encontrados por um outro que não o autor, o que cria um distanciamento e ameniza a aura de confissão rasgada.

O escárnio algo filosófico e cômico também se manifesta contra as expressões da paixão amorosa, que julga melosas e vulgares. Tem vários casos, mas quase sempre sem desejo — a não ser quando depara com uma ingenuidade pura, que o desconcerta. Vale-se de seu charme autodestrutivo para conseguir o que quer: bebida, morfina, um teto. Alterna comentários elogiosos às mulheres, que considera muito mais complexas que os homens (e quem não?), com outros pouco lisonjeiros ou estranhos: “Dormem tão profundamente que parecem estar mortas. Quem sabe elas não vivem para poder dormir?”. Ao falar das prostitutas com quem se deita, diz que pode ver nessas “loucas a auréola de Maria”. De modo ambivalente, aproxima-as da Sônia de Crime e castigo.

Tudo na trajetória do personagem corre no limiar da instabilidade total. É capaz de machucar-se “até com algodão”. Como Dazai, que sucumbiu aos vícios após o suicídio de seu ídolo, Ryunosuke Akutagawa, autor de “Rashômon”, conto filmado por Kurosawa. É provável que a morte lhe parecesse menos aterrorizante do que o convívio com as pessoas, como deixa claro em Declínio de um homem. A suspensão dos sentidos pela embriaguez ou pela perdição moral (palavra odiosa) é apenas um adiamento do processo final, ou o próprio processo, parece dizer a todo momento.

Ele tinha 38 anos quando se jogou em um rio com a amante. Era muito popular no Japão. E continua sendo, a julgar por Bungo Stray Dogs, anime sobre um grupo de detetives com superpoderes. Entre eles está um certo Osamu Dazai. Faz sentido. No meio de sua literatura densa e adulta, ouve-se também um grito de niilismo juvenil.

Nota do editor: O Centro de Valorização da Vida (CVV) oferece atendimento de prevenção ao suicídio 24 horas por dia pelo telefone 188.
Este texto foi realizado com o apoio da Japan House São Paulo.

Editoria com apoio Japan House São Paulo

Desde 2019, a Japan House São Paulo realiza em parceria com a Quatro Cinco Um uma cobertura especial de literatura japonesa, um clube de leitura e eventos especiais.

Quem escreveu esse texto

Daniel de Mesquita Benevides

É jornalista e tradutor.