Literatura israelense,

O juízo final

Livro narra a amizade entre Franz Kafka e seu testamenteiro e o longo processo que legou os manuscritos do escritor tcheco a Israel

01set2021

À primeira vista, O último processo de Kafka: a disputa por um legado literário se propõe apenas àquilo que seu título deixa explícito: uma retrospectiva das aventuras jurídicas envolvendo o espólio de Franz Kafka. A abertura do segundo capítulo, contudo, já desfaz essa ilusão — é o momento em que o autor dá um salto de 2016 e da Suprema Corte de Israel em direção a 1902, a ocasião em que Kafka e Max Brod se encontram pela primeira vez. “O nó de sua gravata era perfeito; suas orelhas eram pontudas. Brod nunca o vira antes. Franz Kafka se apresentou e se ofereceu para acompanhar Brod de volta para casa.”

O último processo de Kafka: a disputa por um legado literário, de Benjamin Balint

 

A força de sustentação do livro de Benjamin Balint está na clara consciência de que uma história não é apenas o ordenamento das ações, e sim uma configuração que mantém os fatos juntos e permite apresentá-los como um todo provisório, uma trama em expansão. Por isso a amizade de Kafka e Brod é retomada por Balint à luz tanto da batalha jurídica em torno dos manuscritos quanto da fortuna crítica que se acumulou ao redor da obra do primeiro desde sua morte, em 1924.

Nada é simples ou unidimensional nessa história que se arrasta por décadas, feita de linhas simultâneas e conflitantes reivindicações. Brod não só recusou o pedido de Kafka de queimar seus manuscritos como os recolheu, com uma autorização escrita dos pais do escritor: “Depois do enterro, os pais de Kafka, Hermann e Julie, convidaram Brod a visitar o apartamento para examinar a escrivaninha do filho. De acordo com o biógrafo Reiner Stach, Hermann Kafka ‘assinou um contrato dando a Brod o direito de publicar postumamente as obras de Franz’. Sob a desordem de lápis com pontas quebradas, Brod descobriu um arquivo volumoso com cadernos não publicados, rascunhos inacabados e diários”.

Além disso, com o passar dos anos, os manuscritos que não foram queimados se juntaram àqueles que Kafka já havia dado de presente a Brod em vida; por fim, para tornar ainda mais confuso o cenário, os papéis de Kafka foram guardados por Brod junto com os seus, ele próprio autor publicado, celebrado e muito produtivo (lançou mais de trinta livros). Quando Brod morre em Tel Aviv, em 1968, todo o material passa às mãos de sua secretária e confidente Esther Hoffe, que, por sua vez, morre em setembro de 2007, aos 101 anos. Seu testamento, datado de junho de 1988, lega os manuscritos de Kafka que Brod lhe dera a suas filhas Eva e Ruth.

É Eva quem recebe o veredicto final da Suprema Corte de Israel, em agosto de 2016, e por isso acompanhamos, ao longo do livro, a convivência e as conversas de Balint com ela. O painel de três juízes confirmou por unanimidade as decisões dos tribunais inferiores, determinando que Eva Hoffe deveria entregar todo o espólio de Brod, incluindo os manuscritos de Kafka, à Biblioteca Nacional de Israel, sem receber em troca nenhum tipo de compensação. No epílogo, Balint acrescenta a informação da morte de Eva em Tel Aviv, em agosto de 2018, aos 84 anos. Já no mês seguinte, uma equipe da Biblioteca Nacional teve acesso ao apartamento das Hoffe, algo nunca permitido pela família ao longo de décadas (em 1981, Esther recebeu Michael Krüger, editor da Hanser Verlag, e não o deixou passar das escadarias).

Balint registra que foram resgatadas sessenta caixas com documentos, algumas guardadas dentro de uma geladeira desligada. Entre eles, encontraram um cartão-postal com uma foto do quarto de Goethe, enviada por Kafka a sua família de Weimar, para onde viajou com Brod no verão de 1912; um relato, escrito a mão, sobre seus anos no ensino secundário (1909); e a resenha de um livro do amigo Franz Blei, datilografada no verso de um convite para um torneio de pingue-pongue realizado em Praga, em 1908.

Nada é unidimensional nessa história que se arrasta por décadas e é feita de conflitantes reivindicações

Parte do espólio, no entanto, havia sido depositada por Brod nos cofres de um banco suíço, cujo acesso também ficou sob responsabilidade de Esther depois da morte dele. Após muitos trâmites diplomáticos, em abril de 2019 um tribunal distrital de Zurique confirmou o veredicto israelense e concedeu permissão para que os manuscritos depositados por Brod no banco fossem enviados a Jerusalém. A notícia mais recente desse imbróglio chegou em junho de 2021: a Biblioteca Nacional de Israel digitalizou e disponibilizou em sua página por volta de 120 desenhos de Kafka e mais de duzentas de suas cartas para Max Brod.

Feridas

O que torna o livro de Balint ainda mais interessante é o modo como ele articula a exposição detalhada das várias etapas dessa história com um conjunto de reflexões sobre a obra de Kafka, as relações entre a literatura de língua alemã no século 20 e a criação do Estado de Israel e o modo como os arquivos nacionais tanto preservam a memória como cultivam a autoimagem cultural de um povo. Quem pode reivindicar ser o verdadeiro herdeiro de Kafka? Balint argumenta que o julgamento colocou em relevo as maneiras muito diferentes como Israel e Alemanha permanecem “sobrecarregados pelas feridas do passado e pelas nobres mentiras das quais a cura dependia”, ao mesmo tempo que tentam “ligar um ‘nós’ nacional ao nome de Kafka”.

Visto por essa perspectiva, o julgamento apresenta uma lição objetiva de como a reivindicação da Alemanha sobre um escritor cuja família foi assassinada na Shoah vinha atrelada à tentativa do país, no pós-guerra, de superar seu passado. Além disso, o julgamento também resgatou o debate sobre a ambivalência de Kafka em relação ao judaísmo e às perspectivas de um Estado judeu — e sobre a ambivalência de Israel em relação a Kafka e à cultura da diáspora: “Os temas de Kafka — humilhação e impotência, anomia e alienação” —, escreve Balint, “eram justamente as preocupações que as gerações fundadoras de Israel procuravam superar”.

É importante ter em mente que nada disso existiria caso Brod tivesse sido preso pelos nazistas: Balint informa que ele escapou no último trem a cruzar a fronteira tcheco-polonesa antes de seu fechamento, em 15 de março de 1939. A trajetória do espólio de Kafka (de suas mãos para as de Brod, destas para Esther, depois para Eva e, por fim, para a Biblioteca Nacional de Israel) se mescla à trajetória de suas ideias, ficções e visão de mundo. O último processo de Kafka mostra de forma muito nítida como a literatura muitas vezes opera a partir de fluxos e refluxos — aquilo que outrora não servia passa a servir, a funcionar de um modo inesperado quando se mudam o contexto e os olhares.

Este texo foi realizado com o apoio do Instituto Brasil-Israel.

Quem escreveu esse texto

Kelvin Falcão Klein

Professor da Unirio, é autor de Wilcock, ficçaão e arquivo (Papéis Selvagens) e Estratégias de visualidade na literatura: o Olho Sebald (Editora UFMG).