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O revelador de Kafka

O alemão Kurt Wolff conta em suas memórias como descobriu o autor da “Metamorfose” e revolucionou a edição de livros no século 20

23nov2018

Em 29 de junho de 1912, o escritor Max Brod chegou ao escritório de seu editor alemão em Leipzig com o firme propósito de apresentar a ele um novo talento, o jovem Franz Kafka.

Às vésperas de completar 29 anos e com várias histórias dormitando na gaveta, Kafka nunca havia publicado um livro. Brod, diferentemente, apesar de ser um ano mais novo, desfrutava desde 1908 do sucesso de seu primeiro romance, Schloß Nornepygge (Castelo Nornepygge), saudado como uma fulgurante estreia na literatura expressionista, então em voga.

Quem recebeu os dois autores tchecos foi Kurt Wolff, um dos sócios da editora Ernst Rowohlt e que, décadas mais tarde, assim descreveria Kafka: “Calado, acanhado, tênue, vulnerável, intimidado como um colegial diante de um examinador… pode-se dizer que era um garotinho que não havia ainda se tornado homem”. E completaria: “Na despedida, naquele dia de junho de 1912, Kafka disse algo que jamais ouvi de nenhum autor, nem antes, nem depois dele: ‘Agradeceria ao senhor ainda mais pela devolução do manuscrito do que pela publicação’”.

Wolff, sabiamente, não devolveu o original e tornou-se aos 25 anos o primeiro editor de Kafka, ao publicar em 1913 o livro intitulado Betrachtungen (Contemplações), com dezoito contos. O volume teve tiragem de 800 exemplares e até 1917 não havia vendido mais que 102 cópias. Também passou praticamente ao largo da atenção da crítica.

Nada disso desanimou o alemão de publicar outros livros daquele tcheco tão acabrunhado, agora em sua própria casa editorial, a Kurt Wolff Verlag, trazendo à luz A metamorfose (1915), O veredicto (1916), Na colônia penal, Um médico rural (ambos em 1919), O castelo (1926) e América (1927), os dois últimos lançados postumamente.

O atributo de editor primordial de Kafka, tão somente, já assegura a Wolff um memorável lugar na história. Há, porém, mais coisas a dizer de sua importância para a literatura e a edição de livros no século 20. Judeu alemão nascido em Bonn, filho de um maestro e formado em letras, Wolff teve papel central na consolidação da vanguarda expressionista, na maturação moderna dos livros de arte e, após sua fuga do nazismo em 1942, na difusão da literatura europeia mais sofisticada nos Estados Unidos, por meio da Pantheon Books e, mais tarde, da Helen & Kurt Wolff Books.

Helen Wolff (1906-91) foi a fundamental parceira de Kurt no pós-Segunda Guerra e continuaria no ramo editorial depois da morte do marido, ocorrida em 1963, em consequência de um acidente de carro na Alemanha.

George Trakl, Robert Walser, Franz Werfel, Karl Krauss, Gottfried Benn, Heinrich Mann e Ernst Toller foram alguns dos grandes escritores editados por Wolff na Alemanha. Nos EUA, ele levou adiante sua perseverança em difundir autores do primeiro time, publicando, entre outros, Hermann Broch, Paul Valéry, Robert Musil, Julien Green, Günter Grass, Lampedusa e Boris Pasternak — foi o editor americano de Doutor Jivago, em 1958.

Essa notável trajetória está sintetizada, quase toda ela, em Memórias de um editor, publicadas em 1965 na Alemanha e só agora no Brasil.

Na primeira parte do livro, composta de três textos, Wolff rememora sua carreira e fala das glórias e agruras da atividade editorial. Na segunda, trata de três escritores em particular: Carl Sternheim, Kafka e Karl Krauss, o idiossincrático e caprichoso autor que só cedeu suas obras a Wolff depois que este criou para ele um selo exclusivo, a Editora dos Escritos de Karl Krauss.

Recusou um livro de Joyce

A franqueza e a honestidade são qualidades de Wolff nas Memórias, e ele não se exime de contar os erros editoriais que cometeu nem os acertos que deixou de praticar. Reconhece que muitos de seus autores foram parar no “cemitério da história da literatura” e lamenta ter cometido, sobretudo, dois erros cruciais.

O primeiro foi dispensar o manuscrito volumosíssimo de O declínio do Ocidente, de Oswald Spengler, obra que teria enorme influência em sua época. O segundo erro, ainda pior, foi não ter publicado Retrato do artista quando jovem, de James Joyce, que lhe escrevera uma cartinha em “alemão lamentável” oferecendo o livro para tradução. O editor comenta: “Se a editora Kurt Wolff tivesse publicado um livro anterior de Joyce, sem dúvida teria também publicado Ulisses, o livro em língua inglesa mais importante do nosso século”.

Em boa parte adaptadas de depoimentos radiofônicos de Wolff, as Memórias de um editor são conduzidas por uma escrita ligeira, transparente e informal, capaz de agradar a todos os leitores. Há passagens muito saborosas, tanto mais quando se referem a autores que ainda são lidos e admirados — pois o valor de alguns outros evaporou com o tempo.

As reminiscências de Wolff também permitem que o leitor enriqueça a sua compreensão sobre uma época heroica da edição de livros, antes do surgimento dos gigantescos, impessoais e performativos conglomerados editoriais (a própria Pantheon Books foi engolida por um deles, o Knopf Doubleday Publishing Group).

Memórias de um editor, entretanto, deve agradar principalmente aqueles que cultivam a literatura alemã, interessam-se pela história da edição de livros ou atuam no meio editorial.

A estes, Wolff tem valiosos conselhos a dar, apontando logo de início as qualidades desejáveis em um editor, como a erudição, o conhecimento de idiomas (“três ou quatro… para ter acesso à literatura estrangeira e não depender da opinião de terceiros”) e, mais ainda, o entusiasmo e o gosto.

Mas que os editores não excedam no entusiasmo nem no otimismo, alerta Wolff, pois isso pode acabar levando a enganos na seleção dos livros a publicar. E o gosto, por sua vez, deve atuar inteiramente na edição, desde o momento de avaliação do conteúdo das obras até o da produção material dos livros, zelando pela qualidade do design, da capa, da fonte das letras e da encadernação.

Ele define, sem meias palavras, que só há dois tipos de editores: os que fazem os livros que o público quer ler e os que fazem os livros que o público deve ler. Os primeiros são meros produtores de mercadorias. Os segundos são agentes criativos, que buscam “entusiasmar o leitor com algo original, com valor literário, com possibilidade de permanência, independentemente da facilidade ou dificuldade de seu acesso”.

Trocando em miúdos a lição essencial de Wolff, um bom editor precisa confiar plenamente na qualidade de seus autores e jamais deve menosprezar a inteligência dos leitores. Essa é a condição para que ambos, escritor e leitor, compartilhem a literatura como um autêntico ato de criação.

Quem escreveu esse texto

Alcino Leite Neto

Jornalista, é editor da revista Piauí.