Literatura israelense,

As vidas paralelas de Kafka

Diários revelam como o autor de ‘A metamorfose’ se sentia dividido entre um emprego no escritório e a vocação para a literatura

01jun2021

19 de fevereiro de 1911. O dr. Franz Kafka abre o caderno sem pauta que usa como diário e rascunha uma carta a Eugen Pfohl, seu supervisor no Instituto de Seguros contra Acidentes do Trabalho. Aos 27 anos, morando com os pais, Kafka recebe um salário digno e tem uma jornada de trabalho — das oito da manhã às duas da tarde — que não é das mais pesadas. Essa forma de arranjo do tempo já foi comum entre escritores: uma ocupação burocrática de meio expediente capaz de garantir o sustento e a liberação de algumas horas para o trabalho que de fato importa, a literatura. Ainda assim, Kafka se sentia à beira do colapso. Se fosse nos dias de hoje, numa sociedade acostumada a patologizar o que em outras épocas era simplesmente chamado de vida, Kafka talvez recebesse um diagnóstico de burnout: “Ao pretender me levantar da cama hoje, simplesmente desmoronei. A razão para tanto é simples: estou trabalhando demais”.

A carta não foi preservada. Mas podemos ler o rascunho no diário de Kafka que acaba de ser publicado pela Todavia, em versão completa, na tradução de Sergio Tellaroli, que também assina o posfácio. O que temos aqui é um material de natureza variada: rascunhos de histórias, inícios falsos, frases abandonadas no meio, notas de leitura, desenhos, relatos de trivialidades cotidianas e de sonhos. Ainda assim — ou exatamente por essa razão — os diários de Kafka contêm boa parte do que existe de mais expressivo na sua literatura (logo, algumas das páginas mais assombrosas que o ser humano foi capaz de escrever). Não deixa de causar espanto que elas nem sequer tenham sido revisadas pelo autor: Kafka jamais manifestou a intenção de editar os seus cadernos, de fazer um livro a partir deles.

Voltando a 1911. Kafka não tinha publicado mais que um punhado de narrativas curtinhas até aquele momento e trabalhava na firma de seguros havia menos de três anos. Reiner Stach, que escreveu uma impressionante biografia de Kafka em três volumes, sugere que o convívio do seu biografado com os chefes era bom, o que pode ser deduzido pelas promoções que recebeu em um curto intervalo de tempo. Dá para suspeitar, portanto, que o desabafo em forma de carta não seria bem recebido no Instituto. Mas como Kafka lá permaneceu até se aposentar, é provável que o supervisor Pfohl tenha se deixado seduzir (o que vinha acontecendo com certa frequência no círculo de escritores de Praga) pelas habilidades retóricas daquele funcionário promissor. 

É que na sequência da carta Kafka produz uma daquelas notáveis torções de perspectiva, bastante usuais nos seus contos — a introdução repentina de um novo ângulo que obriga o leitor a reconsiderar o que está lendo. Na carta, a grande vilã não é a firma, mas a literatura: “De resto, bem sei, isso tudo é conversa; o culpado sou eu mesmo, o escritório faz-me exigências as mais claras e legítimas”. O problema não estava na burocracia (Kafka até levava jeito para a coisa), mas na sua existência paralela de escritor sem livros.

No afã de superar seus impasses, Franz Kafka chega a buscar ajuda no esoterismo

Entre 1909 (início do diário) e 1922 (quando se aposenta por invalidez), Kafka se vê imprensado entre dois modos distintos de existir, para ele incompatíveis: “Essa é uma vida dupla terrível, da qual é provável que só a loucura ofereça saída”. A primeira vida é a do escritório, as seis horas diárias que sugam suas energias e estilhaçam o fluxo da sua criatividade — isso para não falar no cansaço físico e na exaustão mental, que o levam a passar tardes inteiras deitado no canapé do quarto ou de pé na janela observando o vaivém da rua. Mesmo quando está bem-disposto, ele acha impossível trabalhar no apartamento que divide com os pais, as irmãs e uma criada. “Estou sentado em meu quarto, no quartel-general do barulho da casa toda”, ele se queixa em 5 de novembro de 1911. “Ouço baterem todas as portas, e o barulho que fazem me poupa de ouvir apenas os passos de quem caminha entre uma e outra; ouço ainda a porta do forno que se fecha na cozinha. O pai irrompe pelas portas de meu quarto, que atravessa arrastando seu roupão de dormir; no cômodo vizinho, raspam as cinzas da estufa.

Já a segunda vida é a que leva como animal notívago. As ocupações noturnas de Kafka têm início lá pelas nove ou dez da noite, quando cessa o “grande barulho” e ele pode, enfim, se sentar à escrivaninha sob a luz bruxuleante e escrever sem ser interrompido — ou não escrever e se martirizar com os bloqueios que às vezes se arrastam por meses. O problema é que, quando tudo vai bem nas horas insones, as consequências para os afazeres diurnos são desastrosas: “Se, numa noite, escrevi algo de bom, no dia seguinte no escritório não consigo fazer nada, de tanta ansiedade”.

Teosofia

No afã de superar seus impasses, Kafka chega a buscar ajuda no esoterismo. Em março de 1911 ele visita Rudolf Steiner, líder da Sociedade Teosófica. Steiner o escuta “com a máxima atenção”, apesar da “coriza silenciosa”, que leva o autor de A fisiologia oculta a enfiar um lenço “fundo no nariz, um dedo em cada narina”. Em certo ponto da conversa, Kafka sugere que as atividades noturnas em que se engaja guardam semelhanças com a doutrina teosófica: há algo de metafísico nessa que é uma das atividades mais físicas que existem, a escrita. 

“Minha felicidade, minhas capacidades e toda possibilidade de eu vir a ser útil de alguma forma situam-se desde sempre no terreno da literatura”, Kafka teria dito. “Nele, aliás, vivi situações (não muitas) que, na minha opinião, muito se aproximam daquelas que o senhor, doutor, descreveu como clarividentes, situações nas quais habitei cada uma de minhas ideias, mas as realizei também, e nas quais me senti não apenas no meu limite, mas no limite do humano em si.” De noite no quarto é como se Kafka estivesse possuído. Não por um demônio talentoso, e sim pela força estranha que habita o “mundo colossal” da sua cabeça. Escrever, para ele, é uma autopossessão: um modo de tomar as rédeas de si mesmo e dar forma ao magma da vida interior, de petrificá-lo em palavras.

O tema da vida cindida é uma constante nos doze diários de Kafka, que foram agrupados, aqui, num volume único e em ordem cronológica, em vez de ser divididos em cadernos como acontece em grande parte das edições críticas — uma opção editorial que, por favorecer a leitura, me pareceu acertada. Diários são cheios de repetições, de ideias fixas: a monotonia é sua matéria-prima fundamental. Kafka está sempre retornando a seus tormentos, que às vezes ganham contornos de fantasias punitivas associadas ao corpo (as sementes de Na colônia penal são cultivadas desde cedo). 

Em 2 de novembro de 1911, ele anota: “Hoje cedo, pela primeira vez desde muito tempo, de novo a alegria de imaginar uma faca girando no coração”. Em 4 de maio de 1913: “Sempre e de novo a imagem de uma larga faca de açougueiro que, a toda a pressa e com regularidade mecânica, penetra-me pelo lado e me arranca fatias muito finas, as quais, dada a rapidez do trabalho, voam quase enroladas para longe”. 

Isso não quer dizer que os dias de Kafka eram integralmente voltados à consumição interior. É verdade que, de um modo ou de outro, a agonia estava sempre ali, mas ela não o impedia de nadar ou remar nas tardes de verão, de sair para longas caminhadas nas noites de outono, de frequentar cafés, bordéis e teatros. Tudo ficou registrado nos cadernos. Ler sobre os dias solares de Kafka é reconfortante: os relatos de pequenos prazeres, como as leituras em voz alta para as irmãs, as encenações para elas do que acabara de assistir em um filme cômico, os dias alegres que, na pausa de uma frenética troca epistolar, ele passa em Marienbad com Felice Bauer. “O belo corpo de Felice” — essa é uma das últimas anotações de Kafka antes de morrer, escrita em um papel avulso.

Na conversa com Steiner, Kafka apresenta bons argumentos para não se envolver com a teosofia: “Temo que ela me traga mais confusão”. A confusão é o ponto onde as vidas paralelas se encontram: “Cumpro minhas obrigações no escritório, mas não as obrigações interiores, e cada dever interior não cumprido transforma-se numa infelicidade que não me abandona mais”, ele teria dito a Steiner. “Devo agora, então, acrescentar um terceiro empenho — a teosofia — aos dois outros, jamais saldados? Ela não atrapalhará os outros dois, não acabará destruída por eles? Poderei eu, presentemente um homem já tão infeliz, conduzir os três a bom termo?”

Três vidas

Tomar para si uma nova tarefa é tudo de que Kafka não precisa. E no entanto é exatamente o que acaba fazendo. Poucos meses depois de se esquivar da teosofia, Kafka resolve entrar de sócio numa fábrica de amianto. Assim, em vez de duas, ele agora tem três vidas paralelas: a matutina no escritório, a vespertina prostrado de culpa por não dar as caras na fábrica e a noturna se afligindo com a renúncia a si mesmo. 

A fábrica é um dos temas que mais repercutem nos cadernos. “O tormento a que a fábrica me submete”, ele registra em 28 de dezembro de 1911. “Por que aceitei me comprometer a trabalhar lá à tarde? Ninguém me obriga com violência, mas o pai o faz com reprimendas, Karl, com seu silêncio, e eu próprio, com meu sentimento de culpa.” No dia 3 de abril de 1912, Kafka se compadece de si mesmo por tamanho desperdício de forças. “E assim se foi o dia — de manhã, escritório; à tarde, fábrica; agora à noitinha, gritaria pela casa, à direita e à esquerda.” Em 7 de junho: “Péssimo. Não escrevi nada hoje. Amanhã, não terei tempo”. 

O diário tem importância no processo criativo, é o arquivo da lenta construção de uma assinatura, da invenção do ‘kafkiano’

Cada um de nós tem sua versão particular, às vezes inconfessável, da fábrica de amianto — uma situação de desconforto que era melhor ter evitado, mas na qual nos envolvemos como resultado de uma escolha absurda, a pior decisão possível em um momento crucial da vida. De tão escandalosa, essa culpa é intransferível: não podemos empurrá-la a mais ninguém.

O tempo escoa pelo ralo, e esse fatiamento dos dias — traduzido no diário em fantasia mórbida, a faca de açougueiro cortando seu corpo como um salame, em pedaços fininhos — tem o efeito de debilitar ainda mais os seus “nervos”. Mas a rotina insuportável acaba tendo alguma serventia. Eis uma das peculiaridades de Kafka: ao submergir, ele enfim acessa as regiões profundas (de si mesmo? da experiência humana?) que até então não tinha conseguido explorar. O diário tem enorme importância nesse processo, nesse mergulho. Ele é o arquivo da lenta construção de uma assinatura, da invenção do “kafkiano”.

Quando Kafka se torna sócio da fábrica de amianto, com apoio financeiro do pai, o que ele faz é dobrar a aposta na cisão já existente. O que quer que venha a alcançar com a escrita — e nada é mais incerto para ele, nesse momento, do que a possibilidade de escrever um livro digno de ser lido — não vai desabrochar nas tardes ociosas deitado no canapé ou na quietude dos sanatórios. Virá do esgarçamento do tecido da vida. O que Kafka procura ao entrar de sócio na fábrica — me parece — é levar ao limite o antagonismo com ele mesmo e se beneficiar de todo esse conflito. Cavar bem fundo para que o magma interior jorre aos borbotões nas atividades noturnas. Insone, de olhos abertos, sempre à espera — um sismógrafo humano de precisão infinita.

A entrada de 23 de setembro de 1912 é uma das mais importantes do diário. Depois de meses de seca criativa e suplícios interiores, espremido entre o trabalho no escritório, a fábrica e o tenso convívio familiar, Kafka é capaz de, numa única tacada, alcançar o que vinha buscando havia tempos: a expressão literária da sua “vida onírica interior”. Nesse dia ele registra como, “de uma só vez, das dez da noite às seis da manhã”, compõe o relato que inaugura sua obra madura: O veredicto.

Para quem lê o diário da primeira à última data, a explosão imaginativa da madrugada do dia 22 para o 23 de setembro não parecerá fruto do acaso. A analogia com um laboratório é comum nos estudos sobre diários de escritores: os de Kafka são exemplares nesse sentido. Se esses cadernos fossem um dos seus romances inacabados, o episódio da noite em claro ficaria localizado mais ou menos na metade do livro: seria o ponto de guinada em uma narrativa de formação em que o autor é também o personagem principal.

“As pernas, enrijecidas de ficar sentado, mal consegui tirar de debaixo da escrivaninha.” É assim que Kafka descreve a madrugada em que — no mesmo caderno usado para anotar os seus afazeres e pensamentos cotidianos — redige O veredicto. “O cansaço terrível e a alegria com a história que se desenrolava diante de mim e com meu avanço como se por uma torrente. Várias vezes durante a noite suportei meu peso sobre as costas.” Às duas da manhã ele mira o relógio, depois disso a madrugada passa num voo. “Enquanto a criada atravessava o corredor pela primeira vez, escrevi a última frase.” Isso já de manhã cedo. Trêmulo e maravilhado com o “aspecto da cama intocada, como se tivesse acabado de ser trazida para cá”, Kafka se dirige ao quarto das irmãs e lê para elas, em voz alta, o que acabara de escrever.

Este texto foi realizado com o apoio do Instituto Brasil-Israel 

Quem escreveu esse texto

Felipe Charbel

Professor da UFRJ, é autor de Janelas irreais: um diário de releituras (Relicário Edições).