Literatura infantojuvenil,

Relação incondicional

Em seu primeiro livro infantil, a poeta Nina Rizzi retrata a maternidade vivida à distância pelos olhos de uma criança que visita a mãe na prisão

27maio2022

Quando Leonardo Fróes escreveu que a poesia “é sempre o desenho breve de um gesto visionário”, talvez não imaginasse que nessas palavras caberiam tantas pessoas e seus livros. Quando Nina Rizzi escreveu A melhor mãe do mundo, também não vislumbrava que ele se tornaria um livro ilustrado de literatura infantil. Agora, ele chega ao leitor para contar uma história pouco comum em um livro para a infância: o dia em que uma criança visita a mãe na penitenciária. No lançamento da Companhia das Letrinhas, ilustrado por Veridiana Scarpelli, a poeta, historiadora, professora e tradutora Nina Rizzi se coloca, pela primeira vez, em uma interlocução de autoria com as crianças.

O livro é um poema ilustrado narrado por uma criança que parece gritar que é a sua, e não a de mais ninguém, a melhor mãe do mundo. Se ela brinca, joga bola, ajuda nas tarefas da escola e ainda por cima faz uma macarronada imbatível, só pode mesmo ser a melhor. Não importa se ela passa as noites vigiada por seguranças, se foi privada do convívio social ou se cometeu atos ilegais perante a sociedade: ela é a melhor, e ponto. Na visão de sua cria, só isso basta, o resto é:

nhém-nhém-nhém, pipipi, pópópó
Deve ser porque a galera não conhece a minha mãe!

Quem ousa duvidar de algo dito com tanta certeza? Não há certezas maiores que as de uma criança.

E aqui dizemos “a criança” não para falsear uma informação que se dá, mas para ampliá-la em muitas identidades possíveis, como assim quiseram as autoras. Tanto no texto como nas imagens, o leitor pode perceber que não há identidades fechadas. Pela linguagem verbal, não sabemos se quem narra é uma menina ou um menino; pelas ilustrações, o que vemos não são seres humanos, mas pássaros, que nos apresentam imageticamente quem é essa criança.

A representação não antropocêntrica é a escolha consciente de desenhar um contorno amplificado das personagens e dos cenários para que possam entrar neles muitos perfis de mães, filhos e filhas; muitas famílias. A voz narrativa também reforça esse cuidado. Em vez de situar o registro da fala em um discurso hegemônico (ou seja, do Sudeste e/ou Sul do Brasil), Nina escolhe dar ao leitor outros sabores idiomáticos, por meio de uma fala regional, em que se pode aprender, por exemplo, que “fazer arenga” (gíria popular em estados como Ceará, Pernambuco e Paraíba) é aprontar uma grande confusão.

As melhores mães

Rizzi dedica este livro aos dois irmãos, Albert e Stiven, que ficaram muitos anos em centros de detenção — um deles, até hoje. A relação da poeta com as questões da população encarcerada é de longa data. Muitos de seus primos também foram ou se encontram presos; pessoas cujos filhos, criados pelas avós, vivenciaram a experiência da personagem do livro.

Natural de Campinas, no interior de São Paulo, Nina vive hoje em Fortaleza, onde atua como educadora. Quando foi para o Ceará, além de dar aulas, passou também a participar, como mediadora, de programas socioeducativos com adolescentes encarcerados. O trabalho desse período gerou em Nina lembranças muito fortes e um detalhe lhe chamou a atenção: muitos jovens tinham a mesma tatuagem, “Amor só de mãe”. Acendeu aí a luz primeira para que nascesse A melhor mãe do mundo, um desejo de retratar a mãe como esse lugar de origem, sempre de honra e amor absoluto, ainda que longe do idealizado.

“‘Preso’ pode ser muita coisa”, ela diz. Jornadas exaustivas de trabalho, enfermidades, alienação parental, ausências geográficas: há muitas distâncias possíveis que se impõem entre as mães e seus filhos em uma sociedade capitalista, patriarcal e marcada por fissuras sociais.

Mãe de uma menina de quinze anos diagnosticada com transtornos psiquiátricos, Nina diz que a maternidade sempre esteve associada a uma carga traumática de ideais inalcançáveis. “Nasce uma mãe, nasce uma culpa.” Mas, para a filha, Nina é não só a autora, é a própria protagonista do livro: a melhor mãe do mundo.

Qual o tal gesto visionário contido neste livro? Uma história que dá à literatura infantil — termo utilizado aqui entre mil aspas — uma conversa ainda rara sobre mulheres que exercem suas maternidades longe dos lugares ideais.

Nina conta sobre uma mãe em situação de cárcere pela perspectiva da criança, que a vê de seus pontos de vista possíveis. É como se o eu lírico e toda a intenção emblemática da obra dissessem “está tudo bem”, mesmo quando não está; como se cochichassem “mãe, esse filho, mesmo apartado, pode te ver de perto”. Muitas mulheres, encarceradas ou não, cabem nessa chave de identificação.

Retratar especificamente essas mães é prestar um serviço social. Habitamos um país com uma significativa população carcerária feminina. Segundo o Depen (Departamento Penitenciário Nacional), há 42 mil mulheres encarceradas em todo o país. Apenas 14% das unidades de detenção possuem berçário, e a estrutura limitada das prisões prejudica, ou mesmo inviabiliza às detentas, o cuidado adequado com seus bebês.

Se o lugar ideal para ser mãe não existe, também o lugar onde se pode ser “a melhor mãe do mundo” parece ser um território de abstrações. Essa adjetivação seria inteiramente ficção, não fosse a capacidade das crianças de sublimar o afeto incondicional em um substantivo que é em si um adjetivo: mãe. Os amores são aqueles lugares onde podemos ser felizes.

Quando um livro está pronto, seus percursos são incalculáveis. Para a sorte da literatura, não se limitam a uma única audiência. Como diria Leonardo Fróes, “aí vai o poema, tão sem destinatário quanto nasceu”. Então, aí vai o poema ilustrado de Nina Rizzi com o desejo de falar com muitos, muitas — as que estão longe dos seus filhos, mais que todas as outras.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Renata Penzani

Jornalista e pesquisadora do livro para a infância, é autora de A coisa brutamontes (Cepe).