Literatura infantojuvenil,

No princípio era a poesia

Livro responde às perguntas filosóficas sobre o tempo e a infância de forma poética

01abr2022 | Edição #56

As ilustrações da mineira Anna Cunha para o público infantil trazem uma marca autoral não apenas técnica mas, sobretudo, poética. Sua linguagem visual se traduz como busca por uma expressão singular, fora dos automatismos e estereótipos que se resumem à tradução literal do texto. A artista já ilustrou mais de trinta livros para editoras brasileiras e estrangeiras e recebeu prêmios como os da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil (FNLIJ), o da Associação de Escritores e Ilustradores de Literatura Infantil e Juvenil (AEILIJ) e o Northern Lights, do jornal noruguês Nordlys.

Uma de suas marcas é a escolha por personagens negros, mesmo em narrativas que não tematizam a negritude ou as relações étnico-raciais. A paleta de cores em tons terrosos é bem frequente em suas ilustrações, assim como elementos e seres da natureza, como pássaros, flores, árvores e montanhas. Uma forte presença feminina também se nota em seus desenhos e pinturas, retratando força e delicadeza que vão da transparência rendada aos turbantes de amarração peculiar.


Origem, de Anna Cunha

Origem, sua estreia em livro cuja autoria se dá nas imagens e também no texto e no projeto gráfico, conserva boa parte de suas marcas como artista visual, em uma combinação que parece superá-las ao revelar uma consistência poética intensificada, principalmente, pela fusão das linguagens.

O livro é publicado pela editora Maralto, que surge no mercado a partir da venda da Positivo para a Arco Educação, em 2019, trazendo em seu catálogo livros que priorizam a conexão entre literatura e artes visuais, promovem a cultura da infância e não são classificados por faixa etária. É justamente nesse cruzamento que se encontra Origem, que canta o tempo e a infância, para além de determinismos cronológicos, e se destina a públicos de todas as idades.

Tempo vivo

Trata-se de uma obra de poesia em órbita pelo universo mitopoético, unindo tempo, espaço e encantamento. Uma ode ao “tempo vivo”, como sugere a epígrafe colhida de Bartolomeu Campos de Queirós. Lançado em meio a uma pandemia que ceifou milhares de vidas, o livro canta o tempo presente anunciado com espanto por Drummond, canta o espaço no nada inaugurado com maestria por Guimarães Rosa, a inutilidade das coisas na dicção de Manoel de Barros, a esperança feita verbo ao lado de Paulo Freire. Está em boa companhia o leitor que ainda encontra, em Origem, ecos não tão longínquos da poética do devaneio, de Bachelard, ao cantar a infância não como tempo-espaço, mas como núcleo cósmico que reaparece em nossos sonhos: “Meditar sobre uma origem, não é isso sonhar? E sonhar sobre uma origem não é ultrapassá-la?”.

Trata-se de poesia em órbita pelo universo mitopoético, unindo tempo, espaço e encantamento

Todos esses que cantam com Anna já fariam fraterna sua poética, mas ela está irmanada, ainda, com os primórdios, quando a palavra ainda não era e os instrumentos rudimentares ecoavam cantos outros: “O coração batia simplesmente./ As palavras descansavam,/ inacabadas./ Linhas por atear”. Esse tempo por parir aparece no corpo da mulher grávida de constelações, belamente ilustrado. Aparece, ainda, em símbolos que remetem a outras gêneses, tempos cíclicos e eternais: a maçã do paraíso perdido e a serpente que come a própria cauda.

É nesse “tempo longe, esquecido”, em que o fabuloso “era uma vez” é substituído pelo “sempre de novo a primeira vez”, que surge o menino descalço, “plantado na sombra de uma árvore. Por destino”. A imagem do menino em posição fetal, com coração-semente de onde brotam raízes feito artérias a irrigar o chão, é uma das mais belas do livro. É a partir daí que o verbo brincar ingressa no texto com força geradora: “Brincar era nascer/ imensamente./ Sem cessar”. Várias definições de brincar surgem ao longo do poema, sempre associadas à ideia de criação, de linguagem primeira, de encantamento: “O mundo se maravilhava/ antes de haver compreensão./ Brincar era/ a assombrosa miragem/ de nomear”.

Brincar, nesse livro, é “coisa séria”, na melhor acepção que a palavra séria possa ter: ação fundadora. Brincar é experimentar, criar, crescer, viver. Brincar não é, aqui, algo imediatamente associado a alegria. “Neste lugar sem coisas,/ a alegria esperava.” Causa certo estranhamento a ausência da alegria em um tempo de infância, brincadeira, criação. Há também algo de contraditório na marca dessa ausência seguida de imagens que mostram um menino em plena e livre dança, menino-pássaro a “incendiar a nuvem, alastrar o azul”. O leitor pode se perguntar se nesse tempo inaugural a alegria já era proibida ou apenas seu nome é que era ainda desconhecido e ela se fazia corpo e movimento não nomeados, mas intensamente vividos.

Nas páginas finais do livro, as relações entre viver e nomear, entre ser, estar e se expressar vão ficando mais estreitas: “No princípio, no nada, tudo ainda é./ Fresta da palavra”. Fresta é uma boa palavra para acompanhar a leitura de Origem. É nos entremeios que se pode ver e escutar melhor a poética que funde palavra e imagem, sem que uma se sobreponha à outra, em uma interação fraternal que emociona e faz pensar nas desejadas — e por vezes difíceis — coexistências.

Vale um aviso importante sobre o desfecho de Origem: é preciso avançar para além da página que parece indicar o final da história e folhear aquela com a ficha catalográfica para encontrar a última imagem do livro. Não há perigo de estragar a surpresa do leitor descrevendo aqui a imagem porque nada se compara a vê-la: um corpo- -menino funde-se ao mar, sem palavra alguma que possa nomear tal encontro. Voltando algumas páginas, depois do alumbramento que a imagem final proporciona, pode ser que estes versos ecoem de outra forma: “O princípio é a sede./ Raiz procurando mar”.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Cristiane Tavares

É crítica literária, coordena a pós-graduação Livros, Crianças e Jovens: teoria, mediação e crítica no Instituto Vera Cruz (SP).

 

Matéria publicada na edição impressa #56 em fevereiro de 2022.