Laut, Liberdade e Autoritarismo,

Na mira dos cidadãos de bem

Livro narra a repressão aos dissidentes sexuais e de gênero durante a ditadura e suas formas de resistência

01fev2022 | Edição #54

Quem abrisse um dos jornais de maior circulação nacional no dia 12 de janeiro de 2018 leria, em uma breve nota, que o candidato à presidência de um pequeno partido havia escolhido o que falar durante as aparições televisivas a que teria direito. As frases tinham de ser bem escolhidas, já que o então deputado — que pretendia, como dizia a nota, investir nas suas redes sociais — teria curtos dez segundos. Escolheu as seguintes frases: “Em defesa da família brasileira” e “Pelo direito de portar armas de fogo em propriedades rurais”.

Menos de um ano depois, Jair Bolsonaro tomou posse como presidente da República. Em um de seus primeiros atos, já no dia 1º de janeiro, transformou o Ministério dos Direitos Humanos em Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) e nomeou Damares Alves, pastora e advogada, chefe da pasta. De slogan de campanha, a família foi alçada ao status ministerial de forma inédita. Em 2020, inclusive, Damares criou o Observatório Nacional da Família, que buscaria “dar visibilidade à família como primeiro e fundamental contexto de constituição integral da pessoa, cenário privilegiado para a transmissão de valores e primeiro sistema de proteção social para seus membros”.

Contra a moral e os bons costumes: a ditadura e a repressão à comunidade LGBT, de Renan Quinalha.

A defesa da família não é algo sem precedentes na história recente do país. Meio século antes, como nos conta Renan Quinalha em Contra a moral e os bons costumes, a retórica de proteção da família também mobilizava o governo militar, tendo grande ressonância na sociedade civil. Havia uma “preocupação marcada da ditadura brasileira com a pornografia, o erotismo, as homossexualidades e as transgeneridades”, que não só seriam ameaças aos valores éticos e morais, mas também à ordem e à segurança. Sob tal justificativa, a perseguição e a violência contra dissidentes de gênero e sexualidade foram concretizadas por meio de diversos mecanismos institucionais e se deram em paralelo àquela contra opositores políticos do regime.

Quinalha não imaginava uma nova ascensão autoritária e conservadora ao governo federal depois de terminada sua pesquisa. Contudo, os movimentos da nova direita e a eleição de Bolsonaro redimensionaram a importância de sua investigação. Apesar das semelhanças, trata-se de momentos diferentes. Não só meio século e uma conformação formalmente democrática da política separam os dois períodos históricos, mas também a arquitetura específica dos aparatos censores já não existe mais e as justificativas oficiais utilizadas para a restrição às liberdades sexuais e artísticas foram reconfiguradas, hoje escorando-se mais em uma retórica religiosa. Por outro lado, examinar em detalhe as formas de operação da ditadura pode ajudar a compreender o processo de agora, que recaracterizou certos instrumentos de perseguição e atualizou outros. A análise dos dois períodos indica que a mobilização de pautas morais não é lateral aos projetos autoritários colocados em marcha no Brasil, mas sim parte integrante desse autoritarismo. 

O livro traça um mosaico das diferentes formas de repressão sexual e de gênero mobilizadas no longo período da ditadura, desde as táticas de violência “da esquina” — como as constantes rondas policiais e detenções arbitrárias — até aquelas reproduzidas nos processos administrativos e judiciais, inclusive como resposta às reivindicações do conservadorismo moral de diversos grupos sociais. Somam-se a isso os relatos de pessoas LGBTQIA+ atingidas pelas diferentes instâncias do regime, impedidas de permanecer em certos espaços, detidas, violentadas e processadas. 

Pessoas LGBTQIA+ optavam por se automutilar para ser enviadas a hospitais e não a delegacias 

Também são contados a gênese e o desenvolvimento do “movimento homossexual” e de veículos de comunicação críticos produzidos por e para a população LGBTQIA+. A narrativa revela como, apesar da brutal perseguição, articulações coletivas se organizaram em espaços de reconhecimento das existências dissidentes do sistema cis-heteronormativo e de reivindicação de direitos desse e de outros grupos sociais invisibilizados. Ao final, também reúne uma seleção potente de fotos que ilustram o período. 

Utopia autoritária

Para Quinalha, a pretensa segregação do exercício do poder autoritário entre os campos das censuras política e moral, propagada tanto pelos agentes repressores da ditadura militar quanto, posteriormente, por parte da literatura historiográfica, teria tido o efeito de “despolitizar’ a censura moral” e “apresentá-la como a-histórica”. Os mecanismos de repressão empregados nos dois campos tiveram suas especificidades, mas convergiram para os mesmos fins censores. Além disso, a ideia presente na historiografia de que a repressão sexual seria mero “apêndice da problemática mais ampla e central da política ideológica do regime” deixava de lado a forte aliança entre o autoritarismo e o conservadorismo moral. Contra isso, o autor não destaca apenas as diferenças entre os campos, mas também suas aproximações e articulações, em prol de uma compreensão mais abrangente das políticas abertas ou implícitas do período.

Essa compreensão abrangente converge para a ideia de uma “utopia autoritária” que o governo militar pretendia materializar. O autor reconstrói as tramas da pretensão de disseminar nas diversas esferas da sociedade brasileira — tanto institucionais quanto da sociedade civil — um projeto autoritário que tinha como um dos eixos uma determinada concepção de gênero e sexualidade. 
Por um lado, os encaminhamentos de processos de censura política e moral eram diversos. A repressão política recorreu à violência bruta extralegal e aos processos judiciais, muitas vezes buscando ocultar os rastros de suas ações. Por sua vez, a repressão moral parece ter ativado outra dimensão perversa do controle social: o “saneamento moral” e a “higienização social”, privando as pessoas LGBTQIA+ de ocuparem os espaços urbanos. Relatos da imprensa da época traziam a ideia da automutilação como estratégia empregada por pessoas LGBTQIA+, em especial mulheres trans e travestis, para fugir da violência policial. Diante de batidas ostensivas e detenções desprovidas de qualquer base jurídica, elas optavam por se ferir para ser enviadas a hospitais e não a delegacias.

Ao contrário da repressão diretamente política, não havia nenhuma intenção da polícia em esconder esse tipo de ação, que ocorria frequentemente em locais movimentados de cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Para o autor, essas operações policiais apresentaram uma “coerência e uma sistematicidade” desde a década de 60 até os anos finais da ditadura que revelam que, mais do que exterminar, o objetivo da repressão a essa população era disciplinar e controlar as dissidências sexuais e de gênero, bem como regular seu acesso aos espaços públicos.    

Além disso, a repressão moral se dava majoritariamente nas instâncias administrativas, sem ecos exitosos no fórum judicial. Aqui reside outra diferença entre a censura política e a cultural: os órgãos administrativos públicos de censura a produções artísticas e jornalísticas contavam com funcionários próprios e datavam de antes do período militar. Eram, portanto, altamente organizados e faziam parte do aparato burocrático estatal desde ao menos 1934, quando foi criado o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural, subordinado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Já na ditadura, nas décadas de 60 e 70, as instituições foram ampliadas e adaptadas ao novo momento: foram criados o Conselho Superior de Censura e a Divisão de Censura de Diversões Públicas. O primeiro encarregava-se da análise de recursos do Departamento de Polícia Federal (DPF) e a segunda, que passou a fazer parte do DPF quando criada, funcionava como uma assessoria técnico-policial.

Por outro lado, Quinalha revela como os temas morais e políticos eram igualmente mobilizados pela doutrina da segurança nacional empregada pelos militares. Eles mobilizavam essa doutrina para apontar como inimigos internos todos aqueles que atentavam contra a ordem política, social e moral. Assim, por exemplo, disseminavam a ideia de que as homo e transexualidades seriam uma “subversão sexual supostamente planejada pelos comunistas para destruir a família e os valores morais da sociedade brasileira”. Assim, a patente discriminação sexual também empreendida por setores da esquerda era apagada das narrativas oficiais. 

Os temas morais, na verdade, eram encarados como “duplamente ameaçadores” pelos agentes da ditadura. Não só “representavam uma das artimanhas dos ‘subversivos’ para atacar a integridade do país e a segurança nacional”, mas também violações de uma “dimensão ética do pacto social” imposto pelo regime. Como afirmou Alfredo Buzaid, jurista que ocupou o cargo de ministro da Justiça, em texto de 1970, as subversões morais, alvos de uma censura juridicamente permitida e legitimada “em nome dos princípios cristãos, do decoro público, da família e da salvaguarda da juventude”, mereceriam “o mesmo tratamento que as subversões políticas”.

Quinalha é bem-sucedido ao investigar as aproximações entre o campo moral e o político e analisar a “politização da moralidade e dos costumes” com vista a um “projeto global de controle imposto pelo regime autoritário”. Uma das hipóteses trabalhadas por ele é a de que, em contraste com a abertura política “lenta, gradual e segura” anunciada pelo regime ditatorial, o “direito ao prazer e ao orgasmo amplo, geral e irrestrito” não teria sido uma possibilidade viável. Incorporadas no lema acima proposto por um dos veículos de comunicação LGBTQIA+ mais presentes na ditadura, o Lampião da Esquina, criado em 1978, as reivindicações das sexualidades e gêneros dissidentes não foram alçadas à pauta da liberalização política ao final da ditadura. Ao contrário, o autoritarismo político declinante se serviu igualmente de uma potencialização do autoritarismo na moral e nos costumes. De fato, direitos políticos foram sendo adquiridos pelos cidadãos, em meio a demandas de uma sociedade civil mais estridente. Apesar disso, a Divisão de Censura de Diversões Públicas e o Conselho Superior de Censura não abriram mão da sanha persecutória na década de 80 — embora tenham alterado suas estratégias. 

Circulava a ideia de que as homo e transexualidades seriam uma subversão planejada pelos comunistas

Não se pode, contudo, traçar um quadro único dessa tendência. Se alguns exemplos que o livro explora sugerem a compensação da abertura política com o enrijecimento do controle moral, também outros sugerem o relaxamento da censura como um “imperativo por pressão da sociedade civil e da opinião pública”. Com a progressão dos anos, a produção cultural nacional e a importação de produções estrangeiras se mostraram fatos consumados, e a tematização dos desejos e prazeres sexuais inundou jornais, revistas, peças e filmes. Muitos, inclusive, combinavam a transgressão heteronormativa com a crítica política, evidenciando a artificialidade do corte proposto pelo regime militar no tratamento de questões políticas e morais. 

Diante da inexorável tematização dessas questões, ao fim do período ditatorial as agências censórias administrativas parecem ter chegado a um compromisso inglório: não se manteria mais o caráter repressivo policial de outrora, mas uma dedicação ao combate de “excessos” contra a moral e os bons costumes. Casos exemplares serviriam de guia não só para manter a aparência de controle social em meio à proliferação da contracultura sexual, mas também para incitar cidadãos a exercer eles próprios o papel de censores. Como defende Quinalha, “talvez esse esforço de educar cidadãos como se fossem censores tenha sido um dos legados mais perversos da ditadura no campo da sexualidade e dos costumes”. 

‘Talvez o esforço de educar cidadãos como censores tenha sido um dos legados mais perversos da ditadura’

Hoje, o acionamento das pautas morais parece ter ganhado novos sentidos. Flávia Biroli e Débora Quintela usam o conceito de “moralismo compensatório” para interpretar a conjugação do avanço neoliberal e da destruição de políticas públicas à mobilização de agendas “familistas”, não só encabeçadas pelo MMFDH, mas também nas Relações Exteriores e Educação. Em Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política (Autêntica, 2021), elas defendem que, desde o governo Michel Temer, ao mesmo tempo que o Estado se retira da função de principal garantidor de direitos como a saúde, a educação e a assistência social, a família passa a ser o “âmbito privilegiado para a proteção e para o controle”, justificando a ativação de agendas conservadoras de regulação de desejos e sexualidades. Suas reflexões dialogam com o proposto por Melinda Cooper em Family Values: Between Neoliberalism and the New Social Conservatism (Valores da família: entre o neoliberalismo e o novo conservadorismo social, ainda sem tradução para o português). A aposta da autora, que investigou o entrelaçamento entre as políticas neoliberais e as conservadoras no contexto norte-americano, é de que o avanço do neoliberalismo exige um reposicionamento da família enquanto locus principal de cuidado, educação e assistência.

Emancipação

A partir de um desvelar de histórias que se deram em outro tempo, Quinalha também nos mostra como, apesar da violência e da repressão, nas rachaduras do regime ainda foi possível para os dissidentes sexuais e de gênero estabelecerem pontos de encontro e de troca. Em paralelo à violência física e à censura intelectual, a população LGBTQIA+ pressionou por outras formas de vida e desejos, produzindo novas pautas políticas e morais.

O 1º Encontro de Grupos Homossexuais Organizados e o 1º Encontro Brasileiro de Homossexuais, realizados em 1980, foram um marco nesse sentido. Como é comum na preparação de qualquer espaço coletivo — mais ainda em um período de aberta repressão política —, a trajetória até a efetiva realização dos eventos, bem como seus debates e a posterior continuidade da mobilização, não se deram sem disputas e obstáculos. O livro nos localiza em alguns passos dessa organização e revela como o caráter dos grupos foi se transformando gradualmente. Desde as primeiras reuniões de “entendidos”, realizadas em 1976, em que se desenvolveram  espaços de acolhimento e apoio, os movimentos se transformaram, ao fim da década de 80, em vozes atuantes politicamente e engajadas com o processo de redemocratização do país.

Em paralelo à violência física e à censura intelectual, a população LGBTQIA+ pressionou por outras formas de vida e desejos, produzindo novas pautas políticas e morais

Em paralelo a tais organizações — e com ligações diretas com elas —, no fim dos anos 70 floresceu também outro espaço de diálogo produzido por e para pessoas LGBTQIA+: o Lampião da Esquina (1978-81). O jornal, o primeiro de tematização abertamente homossexual, foi um importante espaço de ventilação de ideias, tratando aberta e criticamente de diversos assuntos importantes do período. Contudo, a abertura de brechas para “erotizar a subversão” — como cunhado pelo ChanacomChana, outro veículo de mídia independente, voltado para o público lésbico — não passou despercebida aos olhos do regime, mesmo durante seus anos finais. As publicações e alguns de seus membros sofreram perseguições institucionais, que visavam a sufocar e desidratar seus integrantes e seu financiamento para impedir sua circulação.

As histórias desses coletivos e organizações nos apontam como emergem as possibilidades de um novo existir, mais democrático e construído por muitas mãos 

Apesar das dificuldades e dos obstáculos, as histórias desses coletivos e organizações nos apontam como emergem as possibilidades de um novo existir, mais democrático e construído por muitas mãos. Como escreve Jota Mombaça em seu livro de ensaios-experimentações Não vão nos matar agora (2021): “Àquelas de nós que olhamos de perto a rachadura do mundo, e que nos recusamos a existir como se ele não tivesse quebrado: eles virão para nos matar, porque não sabem que somos imorríveis. Não sabem que nossas vidas impossíveis se manifestam umas nas outras”. Resgatar, registrar e divulgar as histórias de violência e de resistência das pessoas dissidentes sexuais e de gênero, como faz Contra a moral e os bons costumes, talvez seja um primeiro passo para a legitimação atual e urgente de novas maneiras de existir, emancipatórias para todes.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Matéria publicada na edição impressa #54 em outubro de 2021.