Laut, Liberdade e Autoritarismo,

A erosão democrática

Livro discute a raiz reacionária do bolsonarismo e sua permanência na política brasileira

28out2022

Quais são as raízes ideológicas do bolsonarismo? Como explicar sua adesão por parte considerável da população brasileira? Como enquadrar o governo Bolsonaro na tipologia de regimes políticos? Uma derrota eleitoral de Bolsonaro significa o fim do bolsonarismo? Para os autores de Linguagem da destruição, o bolsonarismo é um movimento que enxerga em Bolsonaro seu principal líder, mas que não se resume a ele. Uma derrota sua nas urnas não significa, automaticamente, que o bolsonarismo deixará de existir na política brasileira, ou que suas bases não estarão mais presentes em agires sociais e lógicas econômicas.

O contundente título do livro sintetiza seu argumento central: Bolsonaro possui um projeto claro de governo pautado pela destruição das instituições democráticas e do pacto constitucional de 1988. Entre os métodos por ele empregados a linguagem é o principal, tendo por finalidade última a transformação de qualquer crítico do governo em inimigo e desafiando os parâmetros até então observados no período pós-redemocratização. 

Cada autor assina um capítulo do livro com uma abordagem distinta para compreender o bolsonarismo. O cientista político Miguel Lago explica a resiliência eleitoral de Bolsonaro, cujo governo nunca esteve abaixo dos 20% de avaliação popular boa ou ótima, ainda que o país enfrente graves crises econômica, política e sanitária. Para Lago, a oposição política tem dificuldades de enfrentar de forma eficaz o bolsonarismo, não conseguindo enxergar, ouvir ou sentir bem as estratégias políticas do presidente. O “império da opinião” — ideia de que opiniões pessoais, estudos científicos e posicionamentos de autoridades e órgãos internacionais têm o mesmo valor opinativo — seria responsável por fomentar o negacionismo e a propagação de desinformação, ambos muito utilizados pelo presidente. 

No projeto bolsonarista de destruição, a produção contínua de crises é o modo de gerir o Estado brasileiro

Lago também defende que mudanças estruturais decorrentes da hiperconectividade digital e da influência do neopentecostalismo seriam responsáveis por alterar a relação entre representado e representante. Esse fenômeno teria aberto espaço para que desejos políticos antes vistos como politicamente incorretos, por conterem preconceitos explícitos, agora encontram em Bolsonaro uma figura política que os chancele e legitime. 

A historiadora Heloisa Starling investiga as raízes ideológicas do bolsonarismo, argumentando que este não corresponde nem ao conservadorismo nem ao liberalismo. Ela sustenta que o reacionarismo é a ideologia política do presidente e de seus seguidores, movimento que se esforça constantemente para regressar a vida política a um “passado idealizado”. A utopia regressiva de Bolsonaro se alimenta e se espelha na ditadura militar brasileira, cujos valores, práticas e ideais são frequentemente exaltados pelo ex-capitão. Para Starling, no projeto bolsonarista de destruição, a produção contínua de crises é o modo de gerir o Estado brasileiro: ora o presidente ataca o sistema eleitoral e os demais poderes — sobretudo o STF e o Congresso —, ora ameaça as liberdades de expressão, informação e imprensa, ora ainda deslegitima opositores políticos. 

O filósofo Newton Bignotto investiga tipologias de regimes políticos e diz que o governo Bolsonaro não pode ser efetivamente enquadrado no fascismo ou no populismo, mas contém traços de ambos. O desejo do presidente de substituir a ideia de um “partido único” pelas Forças Armadas e a montagem de um aparelho estatal de propaganda e combate ideológico são traços que o aproximam do fascismo. Ele também se dirige a seus seguidores como o “povo brasileiro”, de forma direta e sem intermédio das instituições políticas, por meio das redes sociais e de suas lives semanais. Esse traço de dividir a população em “o povo” e “os inimigos”, bem como a burla das instituições para uma comunicação direta e o uso de teorias da conspiração como chave analítica de organização social, são traços que o aproximam do populismo contemporâneo.

Lentes do direito

Uma possível complementação às chaves analíticas do livro vem do direito. A perversão das instituições jurídicas está no centro deste momento mundial de autocratização de democracias, conduzidas por líderes democraticamente eleitos, mas com pretensões abertamente autoritárias — caso de Brasil, Índia, Hungria, Polônia e Turquia. O direito é mobilizado por esses governos para enfraquecer as instituições democráticas de forma interna aos sistemas político e de justiça, por meio de alterações constitucionais, nomeações atécnicas para cargos estratégicos e redução de mecanismos de freios e contrapesos. A ação do governo brasileiro já foi diagnosticada como um “infralegalismo autoritário”, dado o uso pelo Executivo de medidas provisórias, decretos, portarias e nomeações que deturpam o funcionamento das instituições políticas.

O bolsonarismo constituiu uma nova linguagem que é truculenta e transgressora, legitima a passagem da violência verbal para a física e política e revela sintomas do atual estágio de mal-estar da democracia brasileira. A retórica bolsonarista, mais do que apenas discurso e simbolismo, mescla um dizer-fazer marcado por contornos tênues, em que se torna difícil distinguir quando o discurso termina e a ação se inicia. A frequente transição entre os poderes informal (discurso, simbolismo) e formal (medidas legais e oficiais, políticas públicas) aparece como um dos principais traços do bolsonarismo, de modo que discurso e ação política não podem ser compreendidos isoladamente. 

Uma derrota de Bolsonaro não significa o fim do bolsonarismo nem do seu legado de erosão democrática. A ampla adesão popular reflete bases sociais, culturais, políticas e econômicas que existem e persistem na nossa sociedade, demandando um senso de urgência por novos mecanismos de defesa e reconfiguração da democracia brasileira. 

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Fernando Romani Sales

É mestre em Direito, pesquisador do Laut e autor de STF e direito à educação (Editora Dialética).