Laut, Liberdade e Autoritarismo,

O risco da reeleição

Na espiral do autoritarismo, reconduzir um autocrata à presidência pode o ser ponto de não retorno

27set2022 | Edição #62

Esta é a eleição mais importante desde a redemocratização. Não por vivermos mais uma crise social e política em nossa história, mas por estarmos no limiar quase definitivo de um processo de erosão democrática: a reeleição de um líder autoritário. Foram quase 1400 dias de terror e escárnio de um primeiro mandato. Depois de pelo menos 1898 atos autoritários — número que alude apenas a atos reportados pela grande mídia entre 2019 e 2021, e registrados pela Agenda de Emergência do Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo (LAUT) —, hoje nos encontramos em um misto de paralisia e repulsa.

Uma das táticas mais sofisticadas de governos que implementam projetos autocráticos é a produção massiva de atos formais e informais para desinstitucionalizar o Estado, desmontar suas estruturas de controle e submeter agentes estatais à vigilância e à intimidação. Nunca foi tão importante diagnosticar com clareza o significado desse processo e apontar suas consequências para o exercício das liberdades, e, a partir disso, assumir posição política firme.

Nesse período, escalamos a níveis surpreendentes de normalização do inaceitável. 685 mil mortes por covid-19, 657 mil novas armas nas mãos de CACs, 61 milhões de brasileiros no mapa da fome e 147 pedidos de impeachment depois, seguimos sem reações institucionais à altura. Assistimos ao incremento da violência, do desemprego e da desigualdade, do desmatamento amazônico. Aos fantasmas da inflação, do derretimento do poder de compra e da fome. Até o sarampo e a poliomielite voltaram. Ainda buscamos recursos para nos ressensibilizar diante de um sistema de reprodução da brutalidade em massa.

Diante desses fatos, imaginar novos futuros é mais necessário do que nunca. O mais sombrio deles já está bem esquadrinhado na cena internacional: reeleger líderes autoritários como Bolsonaro pode ser uma sentença de morte às democracias. Esse é o tema do relatório “O caminho da autocracia: estratégias atuais de erosão democrática”.

O significado da reeleição

Os primeiros mandatos de líderes autoritários costumam ser ensaios gerais antidemocráticos. Não é tese banal, mas marco de aprofundamento de autocracias contemporâneas. Costurar projetos autoritários com outros atores sociais e políticos demanda tempo e energia — o que um primeiro mandato não é capaz de fornecer. Premiá-los com novos mandatos é um convite para acelerar, aprofundar e consolidar tais projetos.

Processos de autocratização também se pautam pela emulação de estratégias. É o que mostra a comparação entre países que lideram essa onda ao redor do mundo. Apesar das especificidades locais, eles seguem padrões gerais já testados e bem-sucedidos em outros lugares. Países onde um líder autoritário se elege tornam-se laboratórios para experimentação, e seus casos de sucesso viram receitas de exportação.

Com a chancela eleitoral renovada, líderes autoritários podem eviscerar instituições e a própria cultura democrática

Uma lei anti-ONGs russa de 2012, por exemplo, serviu de base para uma lei análoga húngara de 2017 sobre o registro e transparência financeira dessas organizações. A versão húngara vigorou até maio de 2021, quando o parlamento a revogou após a Corte de Justiça Europeia tê-la julgado discriminatória e violadora de direitos humanos. Mesmo revogada, porém, serviu de plataforma para a proposição de ao menos dois projetos de lei poloneses para a regulação do registro e financiamento de ONGs em 2020.

Com a chancela eleitoral renovada, líderes autoritários podem impactar profundamente e eviscerar estruturas, instituições e a própria cultura democrática. Ainda que encontrem resistências da sociedade civil ou de outras instituições, ganham mais vigor para produzir alterações substanciais nos regimes políticos. Não por acaso, índices internacionais reportaram quedas vertiginosas na qualidade democrática de países como Hungria e Turquia com a reeleição de seus primeiros-ministros e presidentes autoritários, o que se radicaliza no caso indiano. Na Polônia, o declínio substancial já ocorreu no primeiro ano de mandato, mas índices apresentam quedas acentuadas no curso do segundo mandato.

Um dos índices mais usados para medir a qualidade democrática é calculado pelo instituto sueco Varieties of Democracy (V-Dem). Regimes políticos, segundo essa metodologia, são classificados numa ordem decrescente de qualidade, em quatro graus: democracias liberais, democracias eleitorais, autocracias eleitorais e autocracias fechadas.

Com base nessa análise, em 2019, a Hungria se tornou uma autocracia eleitoral — e em abril do ano anterior, Viktor Orbán foi reeleito pela terceira vez consecutiva como primeiro-ministro. Na Turquia, o processo é mais antigo: ainda em 2013, no curso do terceiro mandato do então primeiro ministro Recep Tayyip Erdoğan, o país regrediu e se transformou em autocracia eleitoral. Na Polônia, mais precoce no processo de autocratização, a narrativa se acelerou: ainda no primeiro ano de exercício do mandato inaugural do presidente Andrzej Duda, o país decaiu de uma democracia liberal para democracia eleitoral. Já na Índia, a autocratização é mais radical: ainda no final do primeiro mandato do primeiro-ministro Narendra Modi, o país passou para uma autocracia eleitoral.

Espaço cívico e segurança

Quando se observam as mudanças em políticas públicas específicas, a situação não é menos estarrecedora. Elas reforçam o diagnóstico de que a reeleição é um ponto de virada da autocratização. O relatório do LAUT descreveu as mudanças em três políticas: educação, espaço cívico e segurança pública. As três têm importância estratégica para que líderes autoritários contenham dissidências e sufoquem a crítica.

No guarda-chuva do espaço cívico foram catalogadas diversas intervenções, seja para desidratar agendas de protesto social ou para promover pautas de ONGs aliadas. As estratégias de dirigismo e controle regulatório, por um lado, e de vigilância e ataques a liberdades civis, por outro, tiveram destaque. Governos asfixiaram financeira ou administrativamente algumas organizações ao editar novas regras de financiamento e nomear administradores compulsórios — como aconteceu com a ONG Free Citizens of Poland Foundation ainda no primeiro mandato de Andrzej Duda. Fora isso, promoveram atores até então subalternizados, como o instituto polonês Ordo Iuris, fundado por um braço da rede ultracatólica brasileira Tradição, Família e Propriedade (TPFP).

Também se restringiu o direito de protesto dos cidadãos, tanto por reformas legislativas ou constitucionais, quanto por meio de atuação ilegal da polícia (que coleciona mortes violentas no caso indiano). Criaram-se obstáculos à livre atuação de ONGs (como as voltadas a acolher migrantes na Hungria, sufocadas pela aprovação do “Pacote Anti-Soros”), e adotaram um discurso de vilanização de críticos, fermentando suspeitas de conspiração inimiga. No caso da Hungria, não só a Constituição passou a prever exceções ao livre direito de protesto (condicionado pelo respeito à “vida privada e familiar”) a partir de 2018, como também foi criada uma jurisdição administrativa especial para julgar casos de banimento de protestos e assembleias.

No campo da educação, os desafios vão muito além do silenciamento de manifestações cidadãs. Localizamos, na educação básica ou no ensino superior, tentativas de controle político-ideológico, revisionismo histórico-científico, interferências na autonomia universitária e ataques à liberdade acadêmica. Sob a alcunha da “ideologia de gênero”, governos buscam limitar o ensino de questões de gênero e sexualidade. Alteram currículos escolares e livros didáticos, em prol de relatos heroicos e nacionalistas, além de propagarem narrativas oficiais laudatórias — como a ideia de refundação polonesa desde a queda de avião que matou o presidente do país em 2010. Interferências na autonomia das universidades e de seus corpos docentes também são frequentes, a exemplo da nomeação irregular de reitores no segundo mandato de Erdoğan e da investigação contra acadêmicos por suposta violação de legislação antiterrorista no segundo mandato de Modi na Índia.

A estratégia inclui a criminalização de formas de vida, a construção discursiva de inimigos internos e o endurecimento de penas

No campo da segurança pública, duas estratégias combinadas de atuação se destacaram: a vigilância e o populismo penal. Contratar softwares de espionagem, coletar e armazenar dados pessoais de maneira abusiva, restringir o acesso à internet e alargar competências investigativas policiais compõem o arsenal da primeira estratégia apontada. Quase todos os governos observados se utilizaram do software Pegasus para monitorar opositores, por exemplo.

O catálogo da estratégia do populismo penal inclui o aumento do policiamento e da militarização, a criminalização de formas de vida, a construção discursiva de inimigos internos e o endurecimento de penas e as restrições à cidadania. O governo húngaro, por exemplo, construiu um muro na fronteira do país com a Croácia e a Sérvia durante o segundo mandato de Orbán.

O paradoxo da justificação

Por meio dessas estratégias, governos autoritários cultivam uma cultura do medo, do antagonismo e fomentam a autocensura. O silenciamento geral os permite economizar capital político. Ao mesmo tempo em que tais líderes se eximem da justificação de investidas antidemocráticas, atacam todos os pressupostos sobre os quais democracias liberais se fundam — como a inclusão de minorias, o pluralismo e até a lisura do processo eleitoral.

Como propôs Rodrigo Nunes na Feira do Livro da Quatro Cinco Um, em referência ao seu novo livro Do transe à Vertigem: ensaios sobre bolsonarismo e um mundo em transição (Ubu, 2022), o que Bolsonaro quer — e, poderíamos dizer, também Modi, Orbán e Duda — é o retorno a um estado de natureza em que prevalece a soberania do mais forte. Minorias impotentes sucumbem a maiorias no gozo de seus “direitos” de discriminar e violentar. Num contrabando conceitual, chamam isso de liberdade.

Não será simples conter o processo de autocratização em curso no Brasil, nem reverter o legado do governo Bolsonaro. O cenário é de alarme. O erro de diagnóstico, deliberado ou involuntário, sobre crise da democracia, e a apatia moral e política resultantes já nos fazem avistar o abismo.

O gabinete da desinformação e do ódio, com sua estrutura massiva de comunicação à margem da legalidade, está a postos para “hackear” as eleições (ou “hackear” o próprio sistema político, como diz Marcos Nobre em seu novo Limites da democracia: de junho de 2013 ao governo Bolsonaro, Todavia, 2022).

Às urnas. E isso é só o começo.

Editoria especial em parceria com o Laut

LAUT – Centro de Análise da Liberdade e do Autoritarismo realiza desde 2020, em parceria com a Quatro Cinco Um, uma cobertura especial de livros sobre ameaças à democracia e aos direitos humanos.

Quem escreveu esse texto

Marina Slhessarenko Barreto

Bacharel em direito, é mestranda em ciência política pela USP.

Conrado Hübner Mendes

Professor de direito da USP, é autor de Constitutional Courts and Deliberative Democracy (Oxford).

Matéria publicada na edição impressa #62 em julho de 2022.