Literatura,

Memória atrofiada

Autora que ‘pensa em russo’ e ‘escreve em alemão’ viaja pela Polônia em busca dos seus antepassados judeus

01jul2019 | Edição #24 jul.2019

“Eu preferiria não”, versa a primeira frase do primeiro livro de Katja Petrowskaja. Como Bartleby, o escrivão, ela preferiria não se submeter, sobretudo ao apagamento de uma memória que ainda nem é sua, ou do seu povo — e que povo? Ela não se sente judia ou russa, tampouco ucraniana ou mesmo ligada à Polônia das histórias de criança, pátria dos antepassados que ela ignora e que tanto sofreram sob o nazismo. É em alemão, então, que ela escreve essa história sobre a busca de uma história. Pária existencial, seu esforço é por realizar o testemunho do vazio que só a memória recontada preenche. E a empreitada começa ali, numa estação em Berlim, no trem rumo à Varsóvia das gerações esquecidas.

“Pensava em russo, procurava meus parentes judeus e escrevia em alemão”, conta a narradora homônima. Como Georges Perec, ela padece dessa “ânsia de sair em busca do que havia desaparecido”, angústia vertida num texto misto de autobiografia fortemente genealógica e ensaio existencial. Pois “o sentimento de perda surgia sem aviso prévio em meu mundo, de resto feliz”, ela diz. “Ele pairava sobre mim, abria as asas, e eu ficava sem ar e sem luz por causa de uma falta que talvez nem existisse.” 

Ao perguntar pelo nome da bisavó, ela ouve do pai: “Talvez Esther”. Como talvez? É assim que ela empreende uma ofensiva sobre essa memória familiar composta de cacos e ruídos, uma árvore cujos galhos balançam longe do tronco. Bisavôs, avôs, tios-avôs eram judeus e soviéticos ao mesmo tempo. Muitos eram poloneses, ucranianos, austríacos. Mas “sob suspeita estavam todos, razão pela qual as famílias sofriam de certa atrofia da memória”, de modo que encolhiam, “ramos inteiros caídos no esquecimento”. Deliberadamente esquecidos por medo do Estado, dos vizinhos, do futuro.

Quem nos conta é a menina que cresceu num bloco de apartamentos soviéticos de Kiev brincando de comunistas contra fascistas, imersa na crença do poder do Estado soviético, que esmaecia a despeito da memória de Lênin. Ela relembra a roupa viva das camponesas, a receita do kwaz de tia Lida, a memorabília e o doce de ameixa — tudo dividido entre antes e depois da Segunda Guerra, que ceifou comunidades judaicas inteiras, tanto pelo nazismo quanto pelo antissemitismo ucraniano, polonês e soviético. Mas isso não basta. Petrowskaja quer fazer falar os mortos.

O esforço genealógico acaba por desvendar uma história sobre a humanidade recente

A busca por raízes judaicas é um leitmotiv da literatura ocidental ao menos desde o boom das narrativas de testemunho após o Holocausto. Mas o que faz Katja Petrowskaja é de outra natureza. Ela busca um sentido às falhas em sua memória genealógica. Tarefa árdua, sisífica. Numa passagem que serve de metonímia do livro e da história, ela conta como Sísifo tentou enganar a morte e foi punido por Tânatos a passar a eternidade levando uma pedra colina acima, para vê-la rolar eternamente morro abaixo. 

O leitor que segue a narrativa, fragmentada como a memória que se busca, viaja com ela por campos de concentração, ruas pavimentadas por nacos de túmulos judeus, prédios reconstruídos, cemitérios, arquivos públicos e seus guardiões da memória, memoriais judaicos e a própria mente confusa de quem escreve uma versão da história com caquinhos do passado iluminados pelas angústias do presente. Cada descoberta é matizada pela noção de que toda reconstrução do passado é, se não ficcional, subjetiva.

Um ponto a que se apegar

A procura pelos parentes espalhados pelo mundo é a força motriz da narrativa. Na parede da Catedral do Exército Polonês em Varsóvia, onde jaz a lista dos assassinados pelo nazismo, ela busca os parentes que imagina ter tido. Pois ela só se sente judia quando se une aos milhões mundo afora em busca de uma lápide, um nome em um monumento, uma placa — ou Babi Yar, a ravina onde seus parentes foram massacrados com o restante da população judia de Kiev em 1941: 33.771 mortos. Ao que ela se pergunta: “A partir de que número o ser humano desaparece?”. E o faz no campo de concentração de Mauthausen, Áustria, onde até 300 mil prisioneiros foram assassinados. Mas milhares parecem menos que catorze, pensa, pois é um número palpável — no caso, o número de judeus enforcados numa macieira ao pé de um precipício, como presente ao filho do comandante Himmler, ali de visita na primavera de 1941. 

A autora estudou literatura na União Soviética e nos Estados Unidos e se mudou para a Alemanha em 1999, onde passou a escrever para jornais. Talvez Esther foi resultado de anos de pesquisa e de uma bolsa do governo. Lançado em 2014 na Alemanha, foi traduzido para diversas línguas. É fácil compreender por quê. O esforço genealógico acaba por desvendar uma história — em parte mitológica, autofabulada, em parte agudamente real — sobre a humanidade recente. Ela abre os “arquivos metafísicos” da memória, mescla os “nossos” e “eles”, “os outros”. 

Havia os trabalhadores da fábrica de sapato de Odessa, o físico nuclear expurgado pelos comunistas, o tio que, no auge do socialismo, nascera com o nome de Gertrud, abreviação de Geroi Truda, herói do trabalho. Havia o avô revolucionário, que mudava o nome da mãe a cada formulário da burocracia soviética, até que ela ganhasse o nome de Anna Kariênina e a personagem de Tolstói se tornasse bisavó da narradora. 

Havia a bábuchka Rosa, que, de tanto ensinar crianças surdas-mudas, já velha, falava com as mãos, num gestual que derrubava talheres pelo chão. Rosa fora incumbida de cuidar de duzentas crianças sobreviventes ao cerco a Leningrado; e, cega, escrevia no escuro sem trocar a folha de papel, trançando frases umas sobre as outras “como a renda tecida em crochê”. Como um “fio de Ariadne”, a escrita em palimpsesto de Rosa se torna “um ponto onde se apegar”.

O “judaísmo de internet” da narradora é honesto: toda sexta de manhã ela lê, em seu iPhone, uma das cartas dos prisioneiros de guerra soviéticos — acompanhando os trajetos de um campo de concentração a outro. O passado insondável é tocado pelo absurdo da modernidade.

Essa é uma narrativa sobre guerras e fatos que moldaram a percepção contemporânea sob a ótica do histórico para si. Mas até que ponto ela é fidedigna? Pouco importa. A autora imagina o diálogo da bisavó com soldados nazistas. Deixada sozinha após a invasão nazista a Kiev, a bábuchka, que mal andava, desceu os andares do prédio, caminhou entre soldados e perguntou o que devia fazer. A resposta, fabula a autora, foi seu fuzilamento. Foi assim que a história se passou? “Talvez.”

Quem escreveu esse texto

Willian Vieira

É jornalista e fez doutorado em letras francesas pela USP.

Matéria publicada na edição impressa #24 jul.2019 em junho de 2019.