Literatura,

Um anticristo na União Soviética

Romance filosófico cria paralelos entre as maldições do Velho Testamento e os desvios do sonho soviético

14nov2018

Bem mais interessante que a batalha editorial em torno do legado comunista é o surgimento, cada vez maior, de escritores que ficaram injustamente esquecidos nos escombros culturais da Guerra Fria. É o caso de Friedrich Gorenstein (1932-2002), que, a julgar por este Salmo, é um dos grandes autores soviéticos, juntando-se ao time que já conta com Mikhail Bulgákov, Varlam Chalámov e Vassili Grossman.

Sua trajetória é singular e está refletida no corpo deste “romance-meditação sobre os quatro flagelos do Senhor”. Dois de seus temas, à parte a crítica evidente ao totalitarismo stalinista, são a questão judaica e a orfandade. O pai do escritor, professor de economia, foi fuzilado em 1937 quando tentava fugir de um Gulag. A mãe, uma educadora, morreu de tuberculose em 1943, depois que ela e o filho foram evacuados de Kiev por conta da invasão nazista. Gorenstein, então com onze anos, viveu num orfanato e depois foi criado por uma tia; muitos dos personagens de Salmo passam pelas mesmas agruras por que passou.

Ele próprio judeu, coloca como figura central ninguém menos que o Anticristo, aqui entendido como irmão de Jesus, e não seu inimigo. É complementar ao Jesus que mostra a outra face, ama seus algozes e perdoa os pecadores. Dã surge na União Soviética para fazer cumprir as maldições previstas na Bíblia, para castigar os opressores e ímpios. O livro é dividido em cinco capítulos. Os primeiros quatro são dedicados aos flagelos citados: espada, fome, luxúria, doença. Cada um se encaixa perfeitamente nos momentos históricos da URSS, tratados com habilidade e ironia pelo autor, nunca publicado em seu país. Foram dezesseis romances, algumas peças e dezesseis roteiros de cinema, dentre eles dois de Tarkóvski (Andrei Rublev e Solaris).

O formato do romance é único e complexo. Sua leitura, inquietante. Ora navegamos por turbulentas divagações filosófico-religiosas, ora mergulhamos em histórias trágicas, cativantes. Não à toa, o autor foi muito comparado a Dostoiévski, com o qual dialoga frequentemente, sobretudo quando trata da questão judaica. É preciso notar que os flagelos da narrativa se dirigem não só aos nazistas e stalinistas, mas também aos judeus assimilados, que renegaram suas origens, como o crítico de arte Ívolguin.

Ídolos da Babilônia

Na “Parábola do irmão perdido”, somos transportados para uma pequena aldeia da Ucrânia em 1933, período da coletivização, quando milhões de camponeses pereceram sem ter o que comer. Seguimos a trajetória da pequena Maria, que vai perdendo mãe, irmãos, até se perder na prostituição e se encontrar, carnalmente, com o Anticristo, num episódio cuja consequência irá se manifestar no capítulo final, “Parábola do cálice quebrado”, em que as histórias anteriores confluem para um mesmo ponto. Curiosamente, aqui ele trata da idolatria aos líderes soviéticos: o Anticristo, que por vezes deixa seus olhos flamejarem e espalharem a morte, mas que normalmente atua mais como um observador crítico, vê a estátua “de um homem bigodudo, com as maçãs do rosto tipicamente asiáticas, lembrando os ídolos da Babilônia”; reflete que nesse caso até o ateísmo seria melhor, um “ateísmo saudável, maternal”.

Na parábola seguinte, acompanhamos as desventuras de outra menina. Os nazistas invadem o barraco de sua família e a expulsam, deixando na casa “uma porção consistente e saudável de bosta ariana, por meio da qual, ao lado das medições de crânio, seria possível determinar a raça ariana”. O capítulo, cheio dos horrores já conhecidos, tem muito dessa ironia redentora em relação ao racismo.

A luxúria, fraqueza maior e mais difícil de combater, à qual o próprio Anticristo sucumbe mais de uma vez, é o tema do terceiro capítulo, quase um conto gótico de adultério. No quarto, Aleksándr Kukharienko é acusado de participar de um complô separatista na Bielorrússia, em 1949. Aqui Gorenstein trata mais diretamente dos expurgos stalinistas. No denso episódio final, que coincide com o interesse dos jovens soviéticos pelo renascimento do cristianismo, um dos personagens recria alquimicamente a queda do Éden. Nada mais adequado como epílogo para este romance fantástico, um ponto fora da curva na maré de lançamentos sob a égide do centenário da Revolução de 1917. 

Quem escreveu esse texto

Daniel de Mesquita Benevides

É jornalista e tradutor.